Campeonato Brasileiro 1975,
Semifinal.
Primeiro tempo. Falcão recebe
livre na ponta esquerda, tabela e dá um passe açucarado para Lula, que entra
pelas costas de Toninho Baiano e emenda com efeito, sem chance para Félix. A
bola ainda bate na trave antes de morrer nas redes.
Segundo tempo. Falcão se livra de
Edinho com um giro e deixa para Jair, que de primeira descobre Carpegiani. O
camisa 10 colorado dá um drible desmoralizante em Silveira e, com um sutil
toque na saída de Félix, estabelece o placar final de 2-0 para o Internacional.
O Fluminense e sua Máquina de
Francisco Horta, diante de 97 mil torcedores no Maracanã, está eliminado do
Brasileiro. Com Rivelino e tudo.
Como usual nas derrotas traumáticas,
as vozes que clamam por reformulação e reforços erguem-se em uníssono.
Torcedores, conselheiros, associados e dirigentes tricolores reconhecem que,
apesar de forte, o time mostrou deficiências que se revelaram fatais na
trajetória do Brasileiro, como foi cruelmente evidenciado pelo chocolate
gaúcho. É necessário contratar.
Mas há um problema. Não há
dinheiro.
A bala de prata de Horta, a
contratação de Rivelino, exauriu as finanças do clube. O adágio “compra, que a
torcida paga” revelou-se de alcance bastante relativo, e a capacidade de investimento
do tricolor agora parece irremediavelmente limitada.
Mas não há limites para a febril
imaginação de Francisco Horta. O dirigente acena para uma solução que remete a
uma desconcertante simplicidade: “se não posso comprar, eu vou trocar”. Trazer reforços,
livrar-se de nomes desgastados, movimentar a cena esportiva carioca e, com
isso, proporcionar robustas arrecadações. Dinheiro. Business. Na fértil mente
de Horta, tudo parece claro como água.
A questão é combinar com os
demais.
Trocas de jogadores possuem
elevado potencial de ferir suscetibilidades. Uma palavra mal colocada, uma nota
de jornal com sentido dúbio, e tudo vai pelos ares. É preciso deixar tudo bem
amarrado, sincronizado, organizado. Para isso, persuasão e confiança são fundamentais.
Sabendo disso, Horta inicia sua
empreitada pelo caminho mais fácil. O clube com quem mantém a melhor relação, pelas
amizades e parentesco. O clube no qual desfruta praticamente de livre trânsito
por suas dependências, retribuindo com favores e gentilezas (por exemplo, deslocou
pessoal para ajudar na montagem de um arquivo documental). O clube com quem
certamente poderá desenvolver um diálogo assertivo na implantação da ousada
ideia da troca. O clube por quem nutre genuíno sentimento de admiração e noção
de sua grandeza e potencial de gerar dinheiro.
Sim. Horta começará pelo Flamengo.
O rubro-negro não vive momento muito
diferente do tricolor. Eliminado após perder para o Santa Cruz (1-3) em pleno
Maracanã, num jogo em que tinha a vantagem do empate, o Flamengo mostrou um
time talentoso, com várias joias brutas, mas ainda padecendo de mentalidade
mais competitiva, o que restou demonstrado pelo “oba-oba” e pelo desprezo aos pernambucanos
antes da partida. Alguns jogadores estão desmotivados e claramente em fim de
ciclo. A renovação deve seguir, mas alguns nomes de peso precisam chegar, para
servir de pilares.
Parece o cenário perfeito para
uma troca.
O encontro se dá em um jantar num
restaurante no Leblon. Horta e o flamengo Hélio Maurício conversam
amigavelmente por horas, alinhavando necessidades, problemas e trocando sugestões
e propostas. Depois de muito discutirem, conseguem chegar a um esboço que julgam
adequado.
A troca deverá envolver três
jogadores de cada clube. Preferencialmente titulares, ou com potencial para
tal. Não haverá dinheiro envolvido, a transação será inteiramente “no pau”,
ficando cada clube responsável pelas luvas e pela taxa de 15% de negociação
referente aos jogadores que chegarem. Não há empréstimo. Serão transferências
definitivas de passe. “Compras”.
Definida a sistemática, parte-se
para a questão mais sensível: os nomes. Puxa-se daqui, pondera-se dali,
resmunga-se para cá, pontua-se para lá e, enfim, chega-se a um denominador mais
ou menos comum.
A troca é praticamente selada ao
final do jantar. Agora, é manter o sigilo e amarrar com os jogadores, para
depois lançar a bomba na imprensa, que já está assanhada com a divulgação (autorizada)
de uma foto dos dois Presidentes reunidos no restaurante, antes do jantar.
No entanto, a coisa vaza do modo
mais prosaico. O garçom que passou a noite servindo os dirigentes “dá com a
língua nos dentes” e, todo pimpão, revela “em primeira mão” os nomes dos
jogadores que serão trocados. E, no dia seguinte, o Rio de Janeiro inteiro já
sabe de todo o teor do “Fla-Flu da troca”, como o negócio é chamado.
O goleiro Renato, o lateral-esquerdo
Rodrigues Neto e o atacante Doval saem do Flamengo, que recebe o goleiro
Roberto, o lateral-direito Toninho Baiano e o “falso” ponta-esquerda Zé Roberto.
Não é algo a esmo. Há certa
lógica aí. Renato, experiente herói de 1974, já vive processo de desgaste e
começa a ter sua condição de titular ameaçada pela ascensão do jovem Cantarele.
Rodrigues Neto, também com anos de clube, não mantém boa relação com o
treinador Carlos Froner, com quem coleciona atritos e discussões, a ponto de
ser tachado de “criador de caso” por parte da Diretoria. Parece precisar mudar
de ares. E, por fim, Doval, que tem aparecido com mais destaque em colunas
sociais e publicações “de fofoca”, que pontuam supostos excessos com a noite e
com mulheres, do que propriamente por seu desempenho em campo.

Do lado tricolor, Toninho Baiano,
lateral de boa técnica e excepcional vigor físico, é um dos que caem em desgraça
após a derrota para o Internacional e está sem clima nas Laranjeiras. Zé
Roberto, um ponta “tático” que faz muito bem o trabalho de fechar o meio, antes
titular absoluto, não consegue mais se firmar na equipe e vive sendo barrado
por Mário Sérgio. E, por fim, o jovem Roberto, talento revelado no Campo
Grande, não esconde sua insatisfação pela falta de oportunidades decorrente da
condição de titular absoluto de Félix.
O vazamento por pouco não “mela”
o negócio. Zé Roberto não esconde a mágoa por não ter sido consultado antes, no
que considera um desrespeito pelos vários anos dedicados ao seu clube do
coração. Toninho, embora animado com a transferência (declara-se Flamengo fanático),
não gosta que a coisa tenha sido divulgada sem acerto prévio das bases
contratuais.
Também há a reação das torcidas.
Inicialmente, o Flamengo parece mais contente com as trocas, em função do alto
desgaste dos jogadores que estão saindo. A torcida tricolor não recebe bem a transação,
chegando a ser emitida, por um grupo de torcedores organizados, uma nota de
protesto pela saída de jogadores em um negócio “que poderia ser mais bem conduzido”,
eufemismo indicativo que o inconformismo tem mais a ver com o destino dos
citados.
De qualquer forma, após demora de
algumas semanas (alguns jogadores somente definem seus contratos após as
férias), todos os seis acabam aceitando a troca e se dizem “motivados” e “empolgados”
com seus novos empregadores. Consuma-se, assim, uma das mais rumorosas
negociações de compra e venda da história do futebol carioca.
Mal se sabe que é apenas o início.
NO QUE DEU
Como imaginado por Horta, a rumorosa
troca balançou as estruturas do futebol carioca. Não se falou de outro assunto
naquele verão, tendo sido a edição de 1976 uma das mais esperadas e badaladas
da história do Campeonato do RJ. O movimento não se restringiu à negociação com
o Flamengo. Horta, após processos bem mais penosos, trocou com o Botafogo os meias
Manfrini e Mário Sérgio, recebendo o ponta Dirceu, e, em troca do zagueiro
Miguel, enviou para o Vasco o lateral Marco Antônio, o volante Zé Mário e o
jovem zagueiro Abel.
A torcida do Flamengo, após a boa
repercussão inicial, passou a desconfiar da troca, especialmente pela saída de
Doval que, apesar dos excessos recentes, havia construído uma relação de quase
idolatria, especialmente pela vontade em campo. Muitos não digeriram a ida para
o rival. A inclusão do goleiro reserva Roberto também foi contestada por muitos
torcedores, mesmo sob o argumento de que Renato, na prática, também já não era
titular absoluto no rubro-negro.
O primeiro “encontro” entre os
novos times foi marcado para março, dois meses após consumada a troca. Mas, no
amistoso pós-carnaval, o protagonismo não ficou com nenhum dos nomes
negociados. Brilhou intensamente a estrela de Zico, que, com quatro gols
marcados, implodiu a “nova máquina” tricolor, estabelecendo um contundente e
humilhante 4-1, num jogo conhecido como o Fla-Flu da “Zicovardia”.
Neste Fla-Flu, apenas Toninho atuou
pelo Flamengo, tendo sido elogiado. Roberto foi mantido na reserva de Cantarele
e Zé Roberto ficou fora, lesionado no tornozelo após sofrer uma pancada em um
amistoso em Rio Grande-RS. Os três tricolores jogaram, salvando-se apenas
Renato que, após falhar no primeiro gol, evitou uma goleada ainda maior.
Os dois lados, no entanto, podem
alegar que a troca deu bons frutos. O Fluminense, com os reforços, tornou sua
equipe mais forte e competitiva, conquistando o bicampeonato estadual após
derrotar o Vasco na final (1-0), com gol de Doval no último minuto da
prorrogação. No entanto, o sonho do título brasileiro se esvaiu, ironicamente,
novamente nas Semifinais, quando o tricolor foi derrotado nos pênaltis pelo
Corinthians (1-1 no tempo normal), no Maracanã.
O Flamengo não conquistou nenhum
título importante em 1976. Pelo contrário, suas participações no Estadual e no
Brasileiro foram pálidas. O goleiro Roberto jamais conseguiu ser um obstáculo
sério à titularidade de Cantarele, e permaneceu no clube até 1978, saindo após
a chegada de Raul. Já Zé Roberto, após bom início, enfrentou problemas com
lesões e com a concorrência dos jovens da base, integrantes de uma geração em
quem se apostava muito. Não conseguiu se firmar no time e saiu no início de
1977.

Diferente foi o caso de Toninho.
O baiano, desde o começo, tomou conta da posição e, com a chegada do treinador
Cláudio Coutinho, tornou-se referência tática e símbolo de um futebol mais
moderno e competitivo, silenciando os muitos que ironizavam sua suposta falta
de capacidade de compreensão. Chegou à Seleção Brasileira e disputou a Copa do
Mundo-1978, com boas atuações. No Flamengo, foi Tricampeão Estadual e Campeão
Brasileiro. Saiu em 1980, negociado com o exterior, como um prêmio aos anos de
serviços prestados, sempre como destaque.
Mas talvez o legado mais
relevante das trocas com o Fluminense de Horta seja um tanto mais sutil. É que,
com a saída de Rodrigues Neto, o Flamengo perdeu o titular da lateral-esquerda.
Sem confiar no limitado Vanderlei, o clube tentou algumas contratações, como o
próprio Marco Antônio, mas a coisa não prosperou. Enquanto buscava no mercado
um reforço de qualidade dentro das limitações financeiras do clube, o jeito foi
improvisar. E assim, o antigo titular da lateral-direita, sacado para a entrada
de Toninho, foi deslocado para a esquerda, ao menos de forma provisória. Mas as
atuações foram tão convincentes que o clube desistiu de buscar alguém e
resolveu tornar definitiva a improvisação daquele jovem de muita técnica, irreverência,
capacidade física e personalidade forte.
E um cabelo black power.
Que parecia um capacete.
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Texto dedicado ao amigo Rocco Fermo