sexta-feira, 22 de julho de 2022

Alfarrábios do Melo

Campeonato Brasileiro 1975, Semifinal.

Primeiro tempo. Falcão recebe livre na ponta esquerda, tabela e dá um passe açucarado para Lula, que entra pelas costas de Toninho Baiano e emenda com efeito, sem chance para Félix. A bola ainda bate na trave antes de morrer nas redes.

Segundo tempo. Falcão se livra de Edinho com um giro e deixa para Jair, que de primeira descobre Carpegiani. O camisa 10 colorado dá um drible desmoralizante em Silveira e, com um sutil toque na saída de Félix, estabelece o placar final de 2-0 para o Internacional.

O Fluminense e sua Máquina de Francisco Horta, diante de 97 mil torcedores no Maracanã, está eliminado do Brasileiro. Com Rivelino e tudo.

Como usual nas derrotas traumáticas, as vozes que clamam por reformulação e reforços erguem-se em uníssono. Torcedores, conselheiros, associados e dirigentes tricolores reconhecem que, apesar de forte, o time mostrou deficiências que se revelaram fatais na trajetória do Brasileiro, como foi cruelmente evidenciado pelo chocolate gaúcho. É necessário contratar.

Mas há um problema. Não há dinheiro.

A bala de prata de Horta, a contratação de Rivelino, exauriu as finanças do clube. O adágio “compra, que a torcida paga” revelou-se de alcance bastante relativo, e a capacidade de investimento do tricolor agora parece irremediavelmente limitada.

Mas não há limites para a febril imaginação de Francisco Horta. O dirigente acena para uma solução que remete a uma desconcertante simplicidade: “se não posso comprar, eu vou trocar”. Trazer reforços, livrar-se de nomes desgastados, movimentar a cena esportiva carioca e, com isso, proporcionar robustas arrecadações. Dinheiro. Business. Na fértil mente de Horta, tudo parece claro como água.

A questão é combinar com os demais.

Trocas de jogadores possuem elevado potencial de ferir suscetibilidades. Uma palavra mal colocada, uma nota de jornal com sentido dúbio, e tudo vai pelos ares. É preciso deixar tudo bem amarrado, sincronizado, organizado. Para isso, persuasão e confiança são fundamentais.

Sabendo disso, Horta inicia sua empreitada pelo caminho mais fácil. O clube com quem mantém a melhor relação, pelas amizades e parentesco. O clube no qual desfruta praticamente de livre trânsito por suas dependências, retribuindo com favores e gentilezas (por exemplo, deslocou pessoal para ajudar na montagem de um arquivo documental). O clube com quem certamente poderá desenvolver um diálogo assertivo na implantação da ousada ideia da troca. O clube por quem nutre genuíno sentimento de admiração e noção de sua grandeza e potencial de gerar dinheiro.

Sim. Horta começará pelo Flamengo.

O rubro-negro não vive momento muito diferente do tricolor. Eliminado após perder para o Santa Cruz (1-3) em pleno Maracanã, num jogo em que tinha a vantagem do empate, o Flamengo mostrou um time talentoso, com várias joias brutas, mas ainda padecendo de mentalidade mais competitiva, o que restou demonstrado pelo “oba-oba” e pelo desprezo aos pernambucanos antes da partida. Alguns jogadores estão desmotivados e claramente em fim de ciclo. A renovação deve seguir, mas alguns nomes de peso precisam chegar, para servir de pilares.

Parece o cenário perfeito para uma troca.

O encontro se dá em um jantar num restaurante no Leblon. Horta e o flamengo Hélio Maurício conversam amigavelmente por horas, alinhavando necessidades, problemas e trocando sugestões e propostas. Depois de muito discutirem, conseguem chegar a um esboço que julgam adequado.

A troca deverá envolver três jogadores de cada clube. Preferencialmente titulares, ou com potencial para tal. Não haverá dinheiro envolvido, a transação será inteiramente “no pau”, ficando cada clube responsável pelas luvas e pela taxa de 15% de negociação referente aos jogadores que chegarem. Não há empréstimo. Serão transferências definitivas de passe. “Compras”.

Definida a sistemática, parte-se para a questão mais sensível: os nomes. Puxa-se daqui, pondera-se dali, resmunga-se para cá, pontua-se para lá e, enfim, chega-se a um denominador mais ou menos comum.

A troca é praticamente selada ao final do jantar. Agora, é manter o sigilo e amarrar com os jogadores, para depois lançar a bomba na imprensa, que já está assanhada com a divulgação (autorizada) de uma foto dos dois Presidentes reunidos no restaurante, antes do jantar.

No entanto, a coisa vaza do modo mais prosaico. O garçom que passou a noite servindo os dirigentes “dá com a língua nos dentes” e, todo pimpão, revela “em primeira mão” os nomes dos jogadores que serão trocados. E, no dia seguinte, o Rio de Janeiro inteiro já sabe de todo o teor do “Fla-Flu da troca”, como o negócio é chamado.

O goleiro Renato, o lateral-esquerdo Rodrigues Neto e o atacante Doval saem do Flamengo, que recebe o goleiro Roberto, o lateral-direito Toninho Baiano e o “falso” ponta-esquerda Zé Roberto.

Não é algo a esmo. Há certa lógica aí. Renato, experiente herói de 1974, já vive processo de desgaste e começa a ter sua condição de titular ameaçada pela ascensão do jovem Cantarele. Rodrigues Neto, também com anos de clube, não mantém boa relação com o treinador Carlos Froner, com quem coleciona atritos e discussões, a ponto de ser tachado de “criador de caso” por parte da Diretoria. Parece precisar mudar de ares. E, por fim, Doval, que tem aparecido com mais destaque em colunas sociais e publicações “de fofoca”, que pontuam supostos excessos com a noite e com mulheres, do que propriamente por seu desempenho em campo.

Do lado tricolor, Toninho Baiano, lateral de boa técnica e excepcional vigor físico, é um dos que caem em desgraça após a derrota para o Internacional e está sem clima nas Laranjeiras. Zé Roberto, um ponta “tático” que faz muito bem o trabalho de fechar o meio, antes titular absoluto, não consegue mais se firmar na equipe e vive sendo barrado por Mário Sérgio. E, por fim, o jovem Roberto, talento revelado no Campo Grande, não esconde sua insatisfação pela falta de oportunidades decorrente da condição de titular absoluto de Félix.

O vazamento por pouco não “mela” o negócio. Zé Roberto não esconde a mágoa por não ter sido consultado antes, no que considera um desrespeito pelos vários anos dedicados ao seu clube do coração. Toninho, embora animado com a transferência (declara-se Flamengo fanático), não gosta que a coisa tenha sido divulgada sem acerto prévio das bases contratuais.

Também há a reação das torcidas. Inicialmente, o Flamengo parece mais contente com as trocas, em função do alto desgaste dos jogadores que estão saindo. A torcida tricolor não recebe bem a transação, chegando a ser emitida, por um grupo de torcedores organizados, uma nota de protesto pela saída de jogadores em um negócio “que poderia ser mais bem conduzido”, eufemismo indicativo que o inconformismo tem mais a ver com o destino dos citados.

De qualquer forma, após demora de algumas semanas (alguns jogadores somente definem seus contratos após as férias), todos os seis acabam aceitando a troca e se dizem “motivados” e “empolgados” com seus novos empregadores. Consuma-se, assim, uma das mais rumorosas negociações de compra e venda da história do futebol carioca.

Mal se sabe que é apenas o início.

NO QUE DEU

Como imaginado por Horta, a rumorosa troca balançou as estruturas do futebol carioca. Não se falou de outro assunto naquele verão, tendo sido a edição de 1976 uma das mais esperadas e badaladas da história do Campeonato do RJ. O movimento não se restringiu à negociação com o Flamengo. Horta, após processos bem mais penosos, trocou com o Botafogo os meias Manfrini e Mário Sérgio, recebendo o ponta Dirceu, e, em troca do zagueiro Miguel, enviou para o Vasco o lateral Marco Antônio, o volante Zé Mário e o jovem zagueiro Abel.

A torcida do Flamengo, após a boa repercussão inicial, passou a desconfiar da troca, especialmente pela saída de Doval que, apesar dos excessos recentes, havia construído uma relação de quase idolatria, especialmente pela vontade em campo. Muitos não digeriram a ida para o rival. A inclusão do goleiro reserva Roberto também foi contestada por muitos torcedores, mesmo sob o argumento de que Renato, na prática, também já não era titular absoluto no rubro-negro.

O primeiro “encontro” entre os novos times foi marcado para março, dois meses após consumada a troca. Mas, no amistoso pós-carnaval, o protagonismo não ficou com nenhum dos nomes negociados. Brilhou intensamente a estrela de Zico, que, com quatro gols marcados, implodiu a “nova máquina” tricolor, estabelecendo um contundente e humilhante 4-1, num jogo conhecido como o Fla-Flu da “Zicovardia”.

Neste Fla-Flu, apenas Toninho atuou pelo Flamengo, tendo sido elogiado. Roberto foi mantido na reserva de Cantarele e Zé Roberto ficou fora, lesionado no tornozelo após sofrer uma pancada em um amistoso em Rio Grande-RS. Os três tricolores jogaram, salvando-se apenas Renato que, após falhar no primeiro gol, evitou uma goleada ainda maior.

Os dois lados, no entanto, podem alegar que a troca deu bons frutos. O Fluminense, com os reforços, tornou sua equipe mais forte e competitiva, conquistando o bicampeonato estadual após derrotar o Vasco na final (1-0), com gol de Doval no último minuto da prorrogação. No entanto, o sonho do título brasileiro se esvaiu, ironicamente, novamente nas Semifinais, quando o tricolor foi derrotado nos pênaltis pelo Corinthians (1-1 no tempo normal), no Maracanã.

O Flamengo não conquistou nenhum título importante em 1976. Pelo contrário, suas participações no Estadual e no Brasileiro foram pálidas. O goleiro Roberto jamais conseguiu ser um obstáculo sério à titularidade de Cantarele, e permaneceu no clube até 1978, saindo após a chegada de Raul. Já Zé Roberto, após bom início, enfrentou problemas com lesões e com a concorrência dos jovens da base, integrantes de uma geração em quem se apostava muito. Não conseguiu se firmar no time e saiu no início de 1977.

Diferente foi o caso de Toninho. O baiano, desde o começo, tomou conta da posição e, com a chegada do treinador Cláudio Coutinho, tornou-se referência tática e símbolo de um futebol mais moderno e competitivo, silenciando os muitos que ironizavam sua suposta falta de capacidade de compreensão. Chegou à Seleção Brasileira e disputou a Copa do Mundo-1978, com boas atuações. No Flamengo, foi Tricampeão Estadual e Campeão Brasileiro. Saiu em 1980, negociado com o exterior, como um prêmio aos anos de serviços prestados, sempre como destaque.

Mas talvez o legado mais relevante das trocas com o Fluminense de Horta seja um tanto mais sutil. É que, com a saída de Rodrigues Neto, o Flamengo perdeu o titular da lateral-esquerda. Sem confiar no limitado Vanderlei, o clube tentou algumas contratações, como o próprio Marco Antônio, mas a coisa não prosperou. Enquanto buscava no mercado um reforço de qualidade dentro das limitações financeiras do clube, o jeito foi improvisar. E assim, o antigo titular da lateral-direita, sacado para a entrada de Toninho, foi deslocado para a esquerda, ao menos de forma provisória. Mas as atuações foram tão convincentes que o clube desistiu de buscar alguém e resolveu tornar definitiva a improvisação daquele jovem de muita técnica, irreverência, capacidade física e personalidade forte.

E um cabelo black power.

Que parecia um capacete.

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Texto dedicado ao amigo Rocco Fermo