segunda-feira, 4 de junho de 2012

O Litígio

Buongiorno, Buteco! Nesta segunda-feira pretendo falar pela última vez de algo relacionado com Ronaldinho Gaúcho. Então, aproveitando o final de semana sem partidas disputadas pelo campeonato brasileiro, pensei em dar um panorama a respeito do que o Flamengo enfrentará na reclamação trabalhista proposta nesta última semana. Adianto desde logo que não tenho em mãos o contrato celebrado entre o Flamengo e o atleta e me baseio nas notícias divulgadas pela imprensa. Logo, não são impressões definitivas e nem muito menos absolutas. Vamos a elas.

I) Justiça do Trabalho x Comum: direitos de imagem, segundo o artigo 87-A da Lei 9615/98 (Lei Pelé), têm natureza civil, mas podem ser considerados, a depender das circunstâncias, complemento salarial ou mesmo de natureza trabalhista pela Justiça do Trabalho. A advogada do atleta ajuizou uma reclamação trabalhista na Justiça do Trabalho porque pretende descaracterizar o contrato de direitos de imagem como tal com base no artigo 9º da Consolidação das Leis do Trabalho, segundo o qual "serão nulos de pleno direito os atos praticados com o intuito de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação." Outra vertente possível será simplesmente argumentar, ao invés da fraude, que se tratava de um complemento salarial. Em qualquer das alternativas, o argumento provavelmente será o de que o Flamengo não utilizava a imagem do atleta, ou a utilizava muito pouco, e daí a fraude trabalhista está caracterizada, evidenciando que existia entre clube e atleta unicamente uma relação de trabalho. O Flamengo, a seu turno, mostrará que tentou utilizar a imagem do atleta, que porém não compareceu a eventos para os quais foi chamado para esse fim, talvez caracterizando os episódios como indisciplina. A discussão, aqui, será teórica e também envolverá produção de prova. Se o Flamengo vencer, desmoronará a tese da advogada e a maior parte do valor pedido terá que ser novamente cobrado, só que na Justiça Comum. Em se tratando de um atleta desse status, é natural e aceitável a existência de um contrato de direitos de imagem; a proporcionalidade entre o valor do contrato e os salários é que será estudada. Fragiliza a tese do Flamengo a pouca utilização da imagem do atleta, ao passo que sua recusa em comparecer a eventos de publicidade enfraquece o seu próprio pleito.

II) Rescisão, Liminar e Justa Causa: a mora do clube em relação a direitos trabalhistas por período superior a três meses gerou o direito pelo atleta à rescisão (artigo 31 da Lei 9615/98). A liminar foi concedida em razão disso, independentemente da discussão relativa à natureza trabalhista ou não da parte de seus vencimentos intitulada direitos de imagem. Explicando melhor: parece que são devidas parcelas outras que não apenas os direitos de imagem. O Flamengo irradia via imprensa notícias de que em juízo buscará comprovar episódios de indisciplina do atleta. Ao meu ver, é uma estratégia útil, mas para comprovar concorrência de culpa ou culpa recíproca para a rescisão. O clube, ao que parece, teve oportunidades para rescindir o contrato por indisciplina, porém quedou-se inerte. Se houvesse rescindido, nem por isso deixaria de ser devedor de salários. Os salários não pagos no período em que o atleta esteve a disposição, ainda que cometendo indisciplinas, são devidos, e, se estão em atraso, geram direito à rescisão. Portanto, é difícil e improvável a reversão da liminar, embora não seja impossível.

III) Valor pedido pelo atleta: há dois cenários possíveis. O primeiro, o pior possível, em sendo verdadeira a notícia veiculada pelo jornalista Lúcio Castro, da ESPN Brasil, segundo o qual o Flamengo, por intermédio de sua presidente, ao assumir o contrato de direitos de imagem da Traffic, comprometeu-se com cláusula cujo teor garante ao atleta, em caso de descumprimento do contrato por falta de pagamento, o direito ao restante do valor que seria devido até o final do contrato. A cláusula em questão foi estipulada em função do disposto no artigo 28, § 5º, III da Lei 9615/98 (Lei Pelé), que impõe a previsão de cláusula penal para a hipótese de não cumprimento do contrato; só não precisava ter termos tão desvantajosos para o clube. Neste ponto é interessante observar que o artigo 479 da CLT dá direito ao trabalhador com contrato com prazo determinado dispensado sem justa causa o direito ao que receberia até o final do contrato pela metade. A jurisprudência entende inaplicável o dispositivos aos atletas de futebol profissional. Portanto, o Flamengo, para cumprir a Lei Pelé e inserir uma cláusula penal no contrato, comprometeu-se com uma cláusula que dobra o rigor do dispositivo celetista, inaplicável aos atletas de futebol, no contrato mais caro celebrado com um atleta na história do futebol profissional do clube. Novamente aqui destaco a importância de argumentar a culpa recíproca para a rescisão do contrato, de modo a evitar a cláusula, mas o ideal é chegar a um acordo com o atleta e evitar o julgamento e o risco da condenação. O segundo cenário, o qual a essa altura, sinceramente, considero o menos provável, é o de inexistência da cláusula, e nesse caso seria improvável o valor pedido, eis que não faria sentido a cobrança dos valores do contrato sem a contraprestação do serviço.

IV) Ainda o valor - atualização: o Flamengo assume publicamente via imprensa dever determinados valores ao atleta por via de seu Departamento Jurídico. Espero sinceramente que eles estejam atentos ao disposto no artigo 467 da CLT, segundo o qual "em caso de rescisão de contrato de trabalho, havendo controvérsia sobre o montante das verbas rescisórias, o empregador é obrigado a pagar ao trabalhador à data do comparecimento à Justiça do Trabalho a parte incontroversa dessas verbas, sob pena de pagá-las acrescidas de cinqüenta por cento". Isso sem contar a posterior incidência de juros índices de correção monetária incidentes sobre o valor já acrescido até a data do pagamento, quando ele vier a ocorrer. Será preciso sangue frio e estratégia para a conta não sair mais cara do que o devido ao final.

V) Estratégia: falando em estratégia, em minha coluna O Processo Judicial da Taça das Bolinhas, aqui mesmo no Buteco Mais Querido, falei a respeito da importância de se contratar um escritório de advocacia para acompanhar casos de importância singular para o clube, como sem dúvida é o desta reclamação trabalhista, em razão do valor pleiteado pelo atleta. O problema de se deixar com o Departamento Jurídico do clube é que sua composição é volátil, sujeita a alterações conforme as mudanças de mandatários na Presidência do clube, e nem sempre os que ocupam o setor são especialistas na matéria discutida no processo. O caso da ação envolvendo o título brasileiro de 1987 e o abandono da defesa do Flamengo é emblemático. Não que eu acredite que algo semelhante ocorra em uma reclamação trabalhista, mas em um caso envolvendo valores tão altos é preciso, primeiramente, primar pela técnica e não por discursos inflamados pela paixão clubística, mesmo porque os magistrados que decidirão a demanda provavelmente não torcem pelo clube ou mesmo não se interessam por futebol. O desenvolvimento da tese, sua maturação durante a tramitação do processo, inclusive nas fases recursais, e principalmente envolvendo questões jurídicas controversas, complexas e ousadas, como será o caso, constituem tarefas que devem ser levadas a cabo pelos melhores profissionais na matéria, e com trânsito da primeira até a última instância da Justiça do Trabalho. A firmeza, maneira de exposição das teses em cada juízo, disposição dos argumentos e enfatização dos mais adequados a cada circunstância é uma habilidade desenvolvida pelos melhores profissionais ao longo dos anos e que faz muita diferença em um processo. Melhor gastar um bom valor com advogados agora do que outro até dez vezes maior em alguns anos.

VI) O Processo: a reclamação trabalhista será julgada por um juiz singular em primeira instância. Da sentença caberá recurso ordinário para o Tribunal Regional do Trabalho do Estado do Rio de Janeiro e do acórdão do TRT/RJ recurso de revista, discutindo apenas matéria de direito (não mais matéria de fato ou de prova) para o Tribunal Superior do Trabalho. Os TRTs, historicamente, costumam ser mais suscetíveis a influências regionais, até por sua localização, e dos clubes, não sendo raros casos de liminares obtidas por atletas sendo suspensas por decisões dos TRTs. A questão é que também não são raros casos em que o TST restabelece a decisão de primeiro grau. De qualquer maneira, imaginar o resultado final desta reclamação trabalhista é pura especulação. O ideal é um acordo com o atleta. Espero sinceramente que, a par do discurso inflamado na imprensa, haja espaço para a razão prevalecer, afastando a possibilidade de condenação judicial do clube.

Bom dia e SRN a todos.