quinta-feira, 17 de junho de 2010

O Processo Judicial da Taça das Bolinhas



É tempo de Copa do Mundo e o noticiário do Flamengo anda parado, sem grandes novidades, além do Zico ter anunciado que dificilmente anunciará algum reforço durante essa semana. Então sobre o que vou falar? Diante dessa dúvida, resolvi tentar abordar um requentado assunto por um ângulo ainda não explorado ou, se já foi explorado, certamente não mereceu a atenção que devia. Refiro-me a como o Sport Recife conseguiu se sagrar campeão brasileiro de 1987 no Poder Judiciário tendo disputado o equivalente à Série B daquele ano.

De fato, discute-se um monte de coisas sobre a Copa União: sobre se o Flamengo e o Internacional deveriam ou não ter disputado o quadrangular com Sport Recife e Guarani; sobre quem é o campeão de fato e o de direito; se o Módulo Verde era ou não o correspondente à Série A de hoje ou se o Módulo Amarelo era mesmo a Série B de hoje em dia. Uma coisa é certa: o Sport Recife obteve uma sentença judicial da Justiça Federal lhe reconhecendo o direito ao título.

Alguém aí sabe o que aconteceu nos autos do processo judicial? É isso que a coluna tentará explicar usando os termos mais simples possíveis, já que a maioria dos amigos do Buteco do Flamengo não possui formação jurídica. Para começar, devo dizer que o Sport Recife foi o autor da ação, que tramitou na Justiça Federal de Pernambuco. Isso aconteceu, apresso-me em explicar, porque a ação, dentre outros réus, que eram Confederação Brasileira de Futebol, Flamengo, Internacional e Guarani, foi movida também contra a União e quem processa judicialmente a União pode fazê-lo em qualquer parte do território nacional (artigo 109, § 2º da Constituição da República).

Da CBF e da União, no lugar do extinto Conselho Nacional de Desportos, o Sport queria o reconhecimento da condição de campeão brasileiro de 1987. Os demais foram considerados partes interessadas por terem disputado as decisões de cada módulo.

Bom, sem ter a pretensão de explicar a vocês os ritos do Código de Processo Civil brasileiro, digo que talvez a única vantagem de ser réu em um processo, de ser processado em juízo, é que a parte ré SEMPRE fala por último. É o princípo constitucional da ampla defesa (CR/88, artigo 5º, LV da CR/88), formado da noção básica e universal de que todo mundo tem o direito de se defender de uma acusação e não tem como fazê-lo em sua plenitude se não puder falar por último, depois do acusador.

E aqui é a parte que, creio, interessa ao torcedor do Flamengo. A sentença do juiz federal Élio Wanderley de Siqueira Filho (http://docs.google.com/fileview?id=0BzkOrcL0SG0wODhkYjlhZDUtM2MxMS00NGM1LWI1MDAtOGJhYTdiYzY4MTlh&hl=pt_BR), como toda a sentença, começa por uma parte chamada relatório, na qual o juiz faz um resumo de tudo o que aconteceu no processo até aquele momento de decisão. E consta no relatório do juiz que, depois de ser regularmente chamado para se defender no processo por um ato de nome “citação”, o Flamengo apresentou sua peça de defesa, de nome “contestação”, e depois fez um pedido de suspensão do processo, não acolhido, não tendo feito qualquer outra manifestação até a decisão final.


Depois disso, o juiz ofereceu às partes a chance de produzir provas, e o Flamengo manteve-se em silêncio; depois, ofereceu às partes a oportunidade de produzir memoriais finais, ou seja, alegações finais sustentando cada qual a sua tese; somente o Sport Recife o fez, tendo o Flamengo aberto mão de falar por último, depois do acusador, no que deveria ser a sua derradeira participação antes da sentença.

Os motivos dessa inércia eu não sei; o que sei é que o prejuízo foi muito grande. Basta lera a sentença, na qual foi acolhido o pedido do Sport e constam algumas “pérolas”, tais como o motivo principal da decisão favorável ao clube pernambucano:

“Ao se inscreverem, o Sport Club Internacional e o Clube de Regatas Flamengo estavam perfeitamente cientes das regras do campeonato. Sabiam, perfeitamente, que estava previsto, no art. 6º, § 2º, o cruzamento entre as equipes vencedoras das Taças João Havelange (Módulo Verde) e Roberto Gomes Pedrosa (Módulo Amarelo). É ilegítima, daí, a sua irresignação intempestiva, quando da realização da última fase (...) para imposição de outro regulamento, casuístico, em desrespeito à vontade da integralidade dos participantes, apenas para antender ao interesse de algumas agremiações.”

A não ser que esteja comentendo um enorme equívoco, eu sempre li que a previsão de cruzamento entre os vencedores dos módulos Verde e Amarelo surgiu já no curso do campeonato, o que já mostra o quanto o Flamengo precisava de uma defesa consistente e insistente nos autos para trazer luzes à mente confusa do juiz que proferiu a sentença.

Mas o pior estava por vir: acreditem ou não, após a sentença em que se saiu derrotado, o Flamengo não recorreu. Aliás, ninguém recorreu. O processo apenas subiu para o Tribunal Regional Federal da 5ª Região, em Recife, não porque alguém tenha interposto o recurso cabível, o de apelação, mas sim por força de um instituto processual chamado remessa “ex officio”, previsto no artigo 475 do Código de Processo Civil, segundo o qual toda a sentença em que a União seja condenada deve ser imperiosamente apreciada pelo tribunal, ainda que as partes não tenham apelado.

Na decisão, o TRF/5ª Região limitou-se a apreciar aspectos processuais da remessa “ex officio” e simplesmente nada abordou a respeito do mérito (http://www.trf5.gov.br/archive/1997/04/199405000372353_19970424.pdf). Seguiu-se então o que considero uma situação ainda mais constrangedora e vexatória, que foi a interposição de recurso por parte da União para o Superior Tribunal de Justiça em Brasília. Vejam bem: a União Federal, e não o Flamengo, recorreu para desconstituir a sentença que deu o título ao Sport Recife. Um funcionário público defendendo, ainda que indiretamente, os interesses do clube. O recurso não teve seguimento em Brasília (https://ww2.stj.jus.br/websecstj/decisoesmonocraticas/decisao.asp?registro=199800819665&dt_publicacao=23/3/1999).

E assim foi, juridicamente, para o beleléu o quarto título brasileiro do Flamengo, brilhantemente conquistado em campo.

A essa altura vocês devem estar se perguntando quem foi o advogado do Flamengo no processo. Eu não sei. Consulando o andamento do processo na Justiça Federal em Pernambuco (http://ww11.jfpe.gov.br/ – basta clicar em consulta de processos e digitar o número da ação, disponível no arquivo da sentença), e clicando no ícone partes, vejo que, dos três advogados que funcionaram no processo, um deles já foi até candidato à presidência do Flamengo. Longe de mim, porém, criticá-lo, até porque sequer sei se foi ele mesmo a advogado do Flamengo nesse processo, muito menos que tipo de acordo que o advogado, seja ele quem tiver sido, fez com o clube, ou seja, se era apenas para apresentar a contestação, se era ou não para acompanhar a ação até o fim ou mesmo se foi pago para exercer a sua profissão.

Neste ponto, esclareço que sempre vi, em minha carreira, escritórios de outra cidade contratarem advogados ou escritórios de advocacia na cidade em que tramita o processo para acompanhá-lo ou mesmo para nele atuar. Elementar até mesmo para estudantes de Direito. E não teria sido mais fácil para o Flamengo contratar um bom advogado pernambucano, com atuação em Recife, de preferência torcedor do Náutico ou do Santa Cruz? Será que a causa não valia a pena?

O certo é que a ação, que foi ajuizada em fevereiro/1988, ainda na gestão de Márcio Braga, tramitou em primeira instância até 2 de maio de 1994 com a completa omissão do Flamengo na maior parte desse tempo, durante o qual ainda tivemos um biênio de Gilberto Carodoso Filho, outro de Márcio Braga e um de Luiz Augusto Veloso, sendo que foi na gestão deste último que a sentença foi proferida e o Flamengo não recorreu. Agora pensem em quantos advogados que ocuparam o Departamento Jurídico do clube e deixaram a coisa correr solta, sem falar nos presidentes omissos e descuidados com o patrimônio futebolístico do clube...

Até a decisão final do ministro Waldemar Zveiter (pai de Luiz Zveiter, Botafoguense emérito, vejam só o destino...), do Superior Tribunal de Justiça, negando o seguimento do recurso da União já mencionado, a qual foi proferida em 19 de março de 1999, passaram-se mais cinco anos novamente na mais completa inércia do Flamengo, durante os quais tivemos o final da gestão de Luiz Augusto Veloso e ainda dois biênios de Kleber Leite. Finalmente, nos dois anos seguintes tivemos Edmundo Santos Silva no poder e nele escoando o prazo de dois anos para ajuizar uma ação de nome “rescisória”, que poderia eventualmente rescindir o julgado por motivos, por exemplo, como eventual falha em intimações aos réus durante o processo.

Nada foi feito.

Essa é a triste História do processo judicial que retirou absurdamente, no campo jurídico, o quarto título de campeão brasileiro do Clube de Regatas Flamengo.