Salve, Buteco! O Flamengo finalmente vai sair da pré-História em nível de gestão. Com a contratação de José Boto e a reestruturação do Departamento de Futebol, parece que finalmente o clube decidiu entrar no Século XXI. Como disse o presidente eleito Luiz Eduardo Baptista, o "Bap", a figura do vice-presidente de futebol simplesmente não existe nos maiores clubes do mundo, os quais são geridos profissionalmente.
Somente uma variação da "Síndrome de Estocolmo", conhecido mal que muitas vezes aflige reféns de sequestradores, gerando uma anômala empatia com seus algozes, pode justificar um torcedor defender que o clube seja mantido refém do amadorismo e da mistura dos interesses institucionais com os pessoais, inclusive os de ordem político-partidária, de alguns de seus dirigentes.
Vejamos algumas declarações do novo dirigente profissional de futebol do Flamengo, José Boto, começando pela entrevista ao Bola da Vez, da ESPN, em 2020:
"O brasileiro é muito completo, no ponto de vista técnico, de intuição. Acho que é um jogador que entende perfeitamente o jogo e aquilo que precisa fazer no jogo", exaltou Boto, em entrevista ao programa Bola da Vez, da ESPN, em 2020.
"O que falta é intensidade quando se joga na Europa. E intensidade não é correr muito, é a velocidade que se joga e a velocidade que se tem para pensar. É nisso que a gente insiste para que eles melhorem. Porque todo o resto o jogador brasileiro tem", disse Boto.
Em entrevista à ESPN em 2020, José Boto expressou que não estava surpreso com o excelente trabalho de Jorge Jesus no Flamengo: _’Sinceramente, não me surpreende, porque conheço ele, a valia técnica e tática dele e, principalmente, uma coisa que, conhecendo o futebol brasileiro como conheço, eu sabia que ele ia dar essa intensidade, esse foco, a concentração constante naquilo que é o jogo, ele conseguiu rapidamente transmitir isso aos jogadores do Flamengo. Isso, mais do que os aspectos técnicos ou táticos, que fizeram a diferença,’_ disse o dirigente à época.
Agora, a entrevista concedida ao Footure no mesmo ano:
Footure: O que pensa sobre a prática do futebol de rua?
José Boto: O futebol de rua é fundamental para o desenvolvimento do talento dos jogadores. Não só de sua parte técnica, como o tamanho da sua parte cognitiva do jogo, pelo fato de não haver nenhuma diretriz, não haver adultos presentes a crerem que o jogo possa ser jogado da forma deles. Acaba por ser um fator de aprendizagem excelente e, por isso, o Brasil também ter tantos jogadores de qualidade acima da média tem muito a ver, na minha opinião, com esses fatores. Na Europa, isso não está tão presente porque, talvez, por sorte, não tenhamos tantas classes desfavorecidas, mas, por outro lado, porque a pressão das grandes cidades não dá espaço para que os filhos, sozinhos, na rua, brinquem e, nesse caso, joguem futebol. Nós temos uma pessoa, em Portugal, que é reconhecida mundialmente, que é o Vítor Frade. Ele tem uma frase e eu costumo repetir muito: “O futebol não se ensina, o futebol se aprende”. E essa é uma frase que tem muito a ver com isso tudo que estamos falando agora, porque o futebol pode ser jogado de diversas formas e, quando nós estamos a ensinar, normalmente estamos a ensinar o nosso futebol, aquilo que é o nosso entendimento do jogo. A rua nos dá a tentativa e erro, que é um dos fatores de crescimentos seja a área que for. É o deixar errar para aprender, e a rua nos dá isso. Nós podemos errar, não temos ninguém a cobrar do nosso erro e, por isso, o futebol de rua será algo tão importante.
Até que ponto um jogo sem regras e limitações favorece?
O futebol de rua favorece porque te dá criatividade, te dá experimentação. Te dá a sabedoria de com quem está a jogar, sem influência dos adultos. Porque, para mim, mais importante do que as regras do jogo, o que não há é uma influência dos adultos naquilo que é a percepção do jogo. Como não há cobrança do erro, o jogador não tem problema nenhum em errar, experimentar, tentar e voltar a tentar. Isso não se passa quando há a presença do treinador adulto, que é sempre aquela cobrança do erro – não há em todos, mas nós sabemos que a maior parte dos treinadores da base querem replicar aquilo que é o futebol profissional.
Além do Brasil, outros países são beneficiados pelo futebol de rua?
Não, até porque não podemos dizer que é só a questão do futebol de rua. Tem outra questão importante, que é o quadro de referências, ou seja, quem é que os jovens imitam? O fato de os jogadores brasileiros, que são jogadores criativos, tecnicamente muito fortes, faz com que os jovens tentem imitar isso. Tu não extrai tanto jogador como extrai do Brasil, e isso tem muito a ver com o quadro de referências.
Buscando o quadro de referências dos uruguaios, não é o mesmo que o dos brasileiros. Os brasileiros querem imitar o Neymar e os jovens do Uruguai querem imitar o Suárez. O fato de você ter um quadro de referências mais técnico, mais criativo, é igualmente muito importante ou tão importante como é jogar na rua. Nós temos essa experiência, por exemplo, na Ucrânia, que, historicamente, os jogadores não são dotados tecnicamente, mas as últimas gerações, muito por influência dos brasileiros que jogam no Shakhtar, estão fazendo com que apareça uma geração de jogadores mais técnicos do que existia uns anos atrás. Portanto, essa questão, para mim, também é fundamental.
Qual a sua ligação com o futebol brasileiro? Por que a grande procura do Shakhtar Donetsk por brasileiros?
Há uma questão histórica e cultural, no Shakhtar, com os jogadores brasileiros. Há 15 anos, o Shakhtar começou a trazer alguns jogadores brasileiros de uma forma não pensada, ou seja, não era uma questão estratégica, foi uma questão conjuntural, mas o sucesso desses jogadores fez com que passasse a ser uma estratégia porque não só esses jogadores se adaptam perfeitamente àquilo que são as ideias do Shakhtar, que é um futebol ofensivo, um futebol criativo. Os jogadores brasileiros têm essas características que se adaptam ao estilo de jogo, mas, por outro lado, ao longo dos anos, o Shakhtar foi percebendo que o fato de termos uma história com os jogadores brasileiros, que depois tenha sucesso desportivo e, ainda, do Shakhtar saem para grandes clubes europeus, faz com que o mercado brasileiro seja um mercado aberto. Eu passei 12 anos no Benfica e, quando cheguei ao Shakhtar, percebi claramente o porquê da aposta em brasileiros. E, dando um exemplo, o Shakhtar consegue, no Brasil, ir buscar jogadores da Seleção Olímpica sem muitas dificuldades. Os jogadores estão perfeitamente abertos a irem jogar pelo Shakhtar. E estão abertos porque sabem que é uma boa porta de entrada na Europa, sabem que o Shakhtar recebe bem esses jogadores. Por outro lado, eu não consigo ir buscar, em Portugal ou Espanha, o mesmo tipo de qualidade.
Com o crescimento exponencial da tecnologia no futebol, como seguir encontrando jogadores dentro das periferias antes de scouts e times europeus? Por isso que, se calhar, o Brasil tem 1.600 jogadores espalhados pelo mundo inteiro e outros países nem a metade chegam. Essa é uma discussão grande, mas o Brasil, por causa de características sociais e culturais, tem muito presente da “miséria” e, por isso, produz tantos jogadores. Nós não conseguimos encontrar nenhum país, a nível mundial, que consegue fazer duas seleções só com jogadores de fora do Brasil. Isso diz muito daquilo que é a produção dos jogadores e talentos no futebol brasileiro.
Como aliar o poder da tecnologia com a vontade de jogar futebol?
Isso é um problema gravíssimo. Há pouco tempo, o Pablo Aimar disse algo que eu fixei bastante, em que ele diz: “Eu sou a última geração que via jogos completos”. Porque, hoje, os jovens tem muita dificuldade em assistir ao jogo durante 90 minutos, preferem ver um resumo, ver os gols, do que estarem sentados vendo um jogo inteiro. Isso tem, como é óbvio, graves problemas para a prática do futebol porque, se tu prefere estar em casa jogando PlayStation ou olhando os resumos dos jogos do que estar na rua jogando ou vendo um jogo inteiro, isso vai refletir naquilo que é o teu gosto pelo jogo. Hoje, as pessoas estão mais interessadas naquilo que é a parte acessória do jogo, as vidas dos futebolistas, quanto é que eles ganham, as roupas que eles usam, os carros que eles têm do que propriamente em jogarem como eles. Esse é um problema grande, mas, também, é um problema da sociedade, não é um problema exclusivo do futebol. E que não é de fácil resolução. O jogo perdeu alguma da sua beleza muito devido aos modelos ultradefensivos, jogadores muito formatados e pouco criativos e, como é óbvio, isso também tira o interesse do próprio jogo. Passará muito por todos nós, que estamos ligados ao futebol, fazer um esforço para tornar o produto de jogo mais atrativo.
Escolinhas de futebol substituem o futebol de rua?
Não. É a minha opinião e que, também, é a opinião de muitos especialistas. Eu não sei se vocês sabem ou se já viram a decisão que o Bayern tomou de acabar com os escalões de sub-9, sub-8 e sub-7 porque acha que o fato de tentar especializar as crianças desde muito cedo não é benéfico não só para o conhecimento deles como crianças e, especialmente, para o crescimento como jogadores. O fato de não lhes dar espaço e tempo para eles conhecerem outras atividades físicas, de estarem muito pendentes de adultos e treinadores, chegaram à conclusão de que não é benéfico para o crescimento da criança como jogador.
No início da década, a França intensificou a prática do futebol nos subúrbios. Na última Copa, 8 dos 23 convocados foram criados nas periferias, como Mbappé, Pogba e Kanté. Vencer a Copa foi coincidência ou consequência?
É consequência, até porque o modelo de formação francês sempre foi um modelo muito rico naquilo que era o desenvolvimento dos jogadores. Foi, até ganharem a Copa de 98 e a Eurocopa de 2000, com aquele projeto de Claire Fontaine, que era espetacular, em que não havia competição até os 14 anos para que os jovens tivessem a melhor liberdade. Nos últimos anos, eles tiveram essa visão de perceberem, como tem muita “miséria” nos subúrbios das grandes cidades da França, que um projeto bem alicerçado, de trazer esses jovens para a prática do futebol, poderia ser benéfico para a nível social, mas, também, benéfico a nível do próprio futebol.
Também no mesmo ano, José Boto deu as seguintes declarações ao jornal AS, da Espanha, reproduzidas pelo Globo Esporte:
- Primeiro, acredito em departamentos pequenos porque a informação circula mais rápido. É uma questão de gerenciamento de tempo, desde o momento em que você vê o jogador até o que decide. Quanto mais tempo o jogador que te interessa joga e se destaca, mais você vai pagar. Os clubes têm que pensar que um departamento de scout não é para gastar dinheiro, é para economizar.
- Muitas vezes, é tão importante quanto quem você traz e quem você impede o seu clube de trazer. Gastar dinheiro com olheiros é economizar dinheiro no final. Também somos o contraponto para as ideias de treinadores que querem trazer "seus" jogadores, ou protegemos o clube da influência de empresários. Temos que evitar contratar por contratar.
Finalmente, uma longa entrevista concedida a Bruno Andrade, ainda no ano de 2019, para o site GOAL:
Os atacantes costumam saber na ponta da língua quantos gols já marcaram na carreira. Você, como scout, sabe quantos jogadores indicados foram contratados?
Não tenho a mínima ideia [risos]. Foram oito agora no Shakhtar e talvez 25 ou 30 no Benfica. Digo isso por alto mesmo, porque nunca fiz essa conta.
O balanço é mais positivo ou negativo?
Olha, acho que é mais positivo.
O Shakhtar Donetsk há anos é conhecido por contratar muitos brasileiros. De uns meses para cá isso cresceu de forma ainda mais significativa, sendo que muitos dos reforços são jovens com menos de 20 anos. Por quê?
O Shakhtar, de fato, sempre teve a tradição de trabalhar forte no Brasil, temos uma ligação que já é histórica. Muitos brasileiros tiveram sucesso no clube, então a aposta no mercado brasileiro continua alta. O fato de agora termos contratado muitos jovens, sobretudo depois que cheguei, tem a ver com a necessidade que o clube sentiu de renovar um pouco a equipe. Não estamos pensando nessa temporada ou na próxima. Estamos pensando no futuro, projetando de dois a três anos. Temos contratado "segundos jogadores" para que em breve fiquem prontos para substituírem aqueles que têm hoje jogado com mais frequência.
Vocês já demonstraram que têm condições financeiras para contratar as principais promessas do Brasil. Mas por que esses jogadores ainda preferem os clubes mais tradicionais? Vinicius Junior, Rodrygo, Lucas Paquetá...
A nossa aposta tem sido em "segundos jogadores", jogadores mais jovens, todos com capacidade de crescer e evoluir. Apostamos neles. O problema é que os jogadores que estão mais feitos, como o Lucas Paquetá, Rodrygo... quando digo feitos, quero dizer que atuaram no time principal com regularidade. Esses, no caso, rapidamente atingem valores enormes de forma muito rápida, valores que nós não queremos pagar no momento.
Mas vocês têm o dinheiro para isso, certo?
Sim, temos. Mas essa não é a aposta do Shakhtar. Não vejo o nosso clube pagando 30 ou 40 milhões de euros por um jogador. Além disso, os jogadores que atingem esse patamar já têm clubes de campeonatos mais atrativos de olho, clubes que pagam o mesmo que nós. Um jogador como o Paquetá, por exemplo, se tiver que escolher entre a liga italiana e a liga ucraniana, vai preferir a liga italiana. É normal. Nós temos percebido cada vez mais isso, por isso estamos trabalhando na antecipação. Queremos contratá-los antes que alcancem esse patamar.
O que é um grande risco…
Sem dúvida. É sempre um risco, visto que estamos trabalhando com potencial, e não com um jogador que já deu provas no time principal de que pode ter um rendimento de alto nível.
O fato de o Shakhtar Donetsk investir tanto em jovens brasileiros se adequa ao seu perfil de trabalho?
O Brasil é o país que mais talento produz na atualidade e, se bobear, desde sempre. É um país que tem talentos em quase todas as posições. Se fizermos agora aqui um rápido exercício, seguramente vamos encontrar jogadores de todas as posições nos principais clubes da Europa. O país continua produzindo esse talento, e espero que nunca pare. O brasileiro é um jogador que, pelo perfil técnico, se encaixa muito naquilo que é o estilo de jogo do Shakhtar, que é um jogo muito ofensivo, de um time que joga com espaços reduzidos. O mercado brasileiro é uma prioridade para nós. Conheço muito bem as seleções de base do Brasil, da sub-16 à sub-20. Existem muitos jogadores ali que nos agradam, mas prefiro não revelar os nomes [risos].
Por que vocês apostam pouco ou quase nada em jogadores brasileiros que atuam na defesa? O clube, por exemplo, nunce teve um goleiro ou um zagueiro brasileiro...
Somos obrigados por regra a jogar com quatro ucranianos no time titular, e dentro do clube há anos também está instituído que esses quatro precisam ser preferencialmente jogadores de defesa. A criatividade e a ofensividade nós buscamos no estrangeiro. Mas isso também não quer dizer que no futuro o clube não possa contratar um goleiro ou zagueiro brasileiro, vai depender muito das nossas necessidades.
Hoje o treinador do Shakhtar é português [Paulo Fonseca], o que seguramente é uma grande vantagem para os jogadores brasileiros. Mas por que o clube ainda não teve um treinador brasileiro? Nunca pensaram nisso?
O Shakhtar, vale lembrar, teve um treinador que ficou no cargo durante muito tempo [de 2003 a 2015], o Mircea Lucescu, que teve muito sucesso. O Lucescu saiu e logo entrou o Paulo, que já está conosco há três temporadas e tem obtido sucesso também. O fato de não pensarmos num treinador brasileiro, e digo isso sem qualquer tipo de análise mais detalhada, até porque nunca conversamos sobre isso internamente, acho que tem muita a ver com a imagem ruim que o treinador brasileiro tem na Europa. Não há brasileiros na Europa hoje. Existe, sim, uma má imagem.
Acredita que a má imagem do treinador brasileiro na Europa é exagerada ou de fato é merecida?
Tenho uma opinião muito particular em relação a isso. Penso que há aqui várias nuances. A primeira delas é que nos últimos anos o treinador brasileiro desviou um pouco daquilo que é a identidade do futebol brasileiro. A visão do europeu é que no Brasil as equipes são ofensivas, que jogam bom futebol, que jogam para ganhar. Nos últimos anos, no entanto, tivemos um grande número de treinadores que passou a renegar a essência do futebol brasileiro. Treinadores muito defensivos, que pensam muito na organização defensiva e que acabam por deixar alguns talentos de lado. Hoje, no Brasil, tirando o Renato Gaúcho, o Fernando Diniz e o Tiago Nunes, não vemos treinadores que trabalham um futebol vistoso, um futebol moderno, que pressiona e quer ter a bola. Sabemos muito bem que tudo isso é o DNA do futebol brasileiro.
É quase como se o treinador brasileiro não merecesse o jogador brasileiro então...
É quase, é quase... Um pouco isso, sim.
Não faz muito tempo que o Shakhtar foi manchete negativa por causa do "grupinho mimado" que foi criado por alguns jogadores brasileiros, entre eles Fernando, Douglas Costa, Luiz Adriano e Taison. Houve muita crítica, até mesmo dos adversários. Os brasileiros que hoje integram o grupo têm o mesmo perfil ou são diferentes?
Sempre tive como ideia aquilo que foi uma frase criada pelo José Maria Pedroto [antigo treinador português]: "O brasileiro é bom, mas mais do que três juntos acaba virando uma escola de samba". Hoje, no Shakhtar, temos 12 jogadores brasileiros [Ismaily, Maycon, Alan Patrick, Dentinho, Marcos Antônio Bahia, Wellington Nem, Taison, Fernando, Mateus Tetê e Marquinhos Cipriano, além dos naturalizados ucranianos Marlos e Júnior Moraes]. Curiosamente ou não, não nos dão qualquer tipo de problema. São excelentes profissionais. Apesar de serem 12, não há um grupinho fechado. Todos os nossos jogadores estão bem integrados, sejam ucranianos ou estrangeiros. O nosso treinador felizmente sabe integrar toda a gente, o tratamento é igual para todos. A nossa grande preocupação é integrar o mais rápido possível o jogador que vem de fora. Temos um gabinete de apoio ao jogador com pessoas que falam português, por exemplo.
Dos brasileiros que hoje integram o grupo do Shakhtar, qual você vê com maior probabilidade de ser a próxima grande venda?
Todos os jovens brasileiros que temos, em termos de potencial, podem atingir o topo europeu. Mas é preciso ter paciência e tempo. Não quero individualizar, mas penso que temos dois ou três que vão chegar lá mais cedo. Pela forma que jogam, pela mentalidade... Repito: todos têm potencial. Lembro ainda que muitos deles ainda são juniores, como é o caso do Marcos Antônio, o Bahia, de 18 anos, e do Mateus Tetê, de 19. Ambos têm um potencial incrível, então estou confiante que eles vão mostrar isso nos próximos anos.
Chegou a ter alguma decepcção com algum jogador brasileiro? Algum jogador que observou, gostou, possivelmente indicou, mas que no fim nunca atingiu tamanha expectativa?
Também não quero individualizar, mas no Brasil há alguns casos. Vemos surgir com frequência jogadores muito bons tecnicamente, com talento brutal, mas que não se adaptam à realidade do futebol europeu. Vamos falar então de jogadores que são tops e que eu esperava que estivessem hoje num nível superior: Neymar e Philippe Coutinho. São jogadores tops, que têm condições de atingir um nível ainda maior, ou que já deveriam ter atingido esse nível.
Falta técnica ou mentalidade?
Não consigo explicar, até porque não trabalhei com eles. São dois jogadores que, do ponto de vista técnico e tático, têm tudo, tudo para estarem num nível de Messi, de Cristiano Ronaldo, ou talvez até num nível maior. Mas, infelizmente, não conseguiram atingir esse patamar.
Tem o desejo de trabalhar um dia no Brasil?
Foi algo que nunca havia antes pensado até ter voltado agora [começo do ano] para o Brasil. Se há uma coisa que me encanta muito no futebol é o talento, e acho que muitas vezes estão destruindo esse talento ao tornar o jogo mais físico, mais defensivo. Aquilo que vejo no Brasil, nas categorias de base, são tantos talentos, tantos... Gostaria muito de trabalhar ali, para aproveitar e valorizar esse talento. Gostaria também de ajudar a vender o talento brasileiro por valores mais altos.
O que você acha que poderia agregar ao futebol brasileiro?
Tem muito a ver com aproveitar melhor as características do jogador brasileiro, respeitar aquilo que é a identidade do futebol brasileiro, que sempre foi um futebol ofensivo e de muito talento. Não é difícil fazer isso. Tendo isso, pensando de forma mais ofensiva, o futebol brasileiro tem tudo para ser muito melhor. O que me dói é ver... Olha, vou dar um exemplo que me chocou muito: ver a seleção sub-16 do Brasil jogando um futebol que realmente não tem nada a ver com o Brasil. Conseguiu colocar a torcida estrangeira que normalmente está a favor do Brasil para torcer contra, tudo isso por causa da forma como estava jogando contra a Espanha. Se um ET chegasse na Terra para ver aquele jogo, um jogo que foi horrível por parte do Brasil, ele diria que a Espanha era o Brasil, enquanto o Brasil era uma equipe da quarta divisão que só dá pancada. A grande questão é: o que tem sido pedido para esses jogadores?
Dos clubes que conhece no Brasil, qual é o que mais se aproxima da sua forma de pensar e trabalhar?
Não tenho um conhecimento tão grande da realidade dos clubes brasileiros. Conheço alguns, tive a oportunidade de visitar alguns CTs. Mas existe sim um clube em especial, pela forma de jogar, pelas ideias das pessoas, que está num caminho muito bom, o Athletico Paranaense. O que o futebol brasileiro pode fazer de melhor é aquilo que o Athletico tem feito. Tem muitos bons jogadores e o time principal joga de uma forma que tem muito a ver com o que é o Brasil. Fiquei espantado também com as condições de trabalho, com o CT que é mesmo muito bom. Acho que, se todos os clubes brasileiros tivessem essa mentalidade, o futebol brasileiro ganharia muito.
Se enxerga trabalhando no Brasil mesmo diante de tantas falhas e diferenças?
Sim, sim... Gosto do país. Enquanto muitos querem sair, eu gostaria de entrar [risos]. Como disse antes, gosto de estar rodeado de talentos. Sou apaixonado por futebol, já fui treinador, então gosto mesmo de ter talentos por perto, o que no Brasil é muito fácil.
Existe muita briga de ego e inveja entre os scouts?
Não. Costumo dizer que, de todas as profissões dentro do futebol, a nossa é a mais unida. Viajamos sempre juntos, trocamos sempre ideias...
Eu, sinceramente, não tinha essa ideia…
Os treinadores, por exemplo, estão sempre espetando a faca uns nos outros, então a relação não é boa. Já a relação dos scouts não é assim. Tenho grandes amigos dentro da profissão, amigos que visitam frequentemente a minha casa. Passamos mesmo muito tempo juntos, acabamos por criar uma segunda família.
Geralmente quem trabalha muito com opinião acaba por passar a impressão de arrogante. Sente que são arrogantes?
Não. Mas é preciso ter presunção e convicção. Isso para alguns pode soar arrogância, é verdade, mas acho que o scout, na sua essência, não é arrogante. Pelo contrário. São pessoas bastante acessíveis, afáveis e, ao contrário do que muitos acham, escutam muito as opiniões dos outros. O nosso trabalho é opinar sobre potenciais jogadores e, consequentemente, lidar com milhões de euros. No fundo, somos os responsáveis pelos clubes gastarem milhões e milhões em contratações.
Foi passado para trás por algum scout que julgava ser amigo?
Não, nunca. Sei que isso é uma coisa normal no futebol, já vi acontecer em outras áreas, mas nunca aconteceu comigo no papel de scout. Não vejo ninguém como adversário, vejo todos como colegas de profissão. Felizmente, ninguém me desiludiu.
Fazem muitas apostas - de prever se um jogador vai dar certo ou errado?
Fazemos sempre apostas nos casos em que temos opiniões diferentes. Fazemos apostas, e cobramos. Cobramos mesmo [risos].
Mais ganhou ou perdeu até agora?
Já ganhei algumas vezes, mas também perdi outras [risos]. Tenho um caso, aliás, que envolve um brasileiro: o Dante. Nunca acreditei que o Dante, que na época jogava no Standard Liege, da Bélgica, fosse sair dali, muito menos chegar à seleção brasileira. Chegou à seleção, jogou um Mundial e defendeu o poderoso Bayern de Munique. Na altura, fiz uma aposta com um colega que achava que o Dante fosse chegar mais longe. Olha, veja que isso também não quer dizer que ele era um excelente zagueiro [risos]. Mas, de qualquer forma, perdi a aposta. Vi o Eden Hazard com 16 anos, e logo tive a certeza que seria top dos tops, enquanto alguns amigos tinham uma pequena desconfiança.
Muitos scouts colocam você como um dos melhores scouts do mundo. Concorda?
Sinceramente, não. Sem falsa modéstia, nunca me enxerguei assim. Mas se considerarmos que temos scouts tops, posso dizer que estou entre eles, porque tive a sorte de trabalhar em grandes clubes, principalmente clubes que apostam muito na área de scouting. É natural que o profissional ligado a um clube que aposta muito no scouting apareça mais no mercado e na mídia. O Benfica, por exemplo, sempre apostou muito em jogadores desconhecidos e que de repente viraram estrelas. Um dos meus melhores amigos na área é o Ben Manga, do Eintracht Frankfurt. Talvez o que seja pedido para ele, jogadores de um outro perfil, não seja pedido para mim. Ainda assim, reconheço nele tanta ou mais capacidade.
Já se irritou muito com uma opinião ou indicação que não foi aceita?
Não, não... As pessoas podem ter a ideia de que isso acontece, porque o nosso trabalho é opinar, dizer que determinado jogador é bom ou ruim, mas as pessoas que tomam as decisões e são responsáveis pelo dinheiro têm direito de opinar e podem não acreditar muito na nossa opinião. Nós temos que saber conviver com isso. Isso, sinceramente, não mexe comigo.
É difícil ouvir "não"?
Como tenho convicção daquilo que digo e vejo, quem sai a perder é... Bom, eu faço a minha parte.
Por que o futebol português é inundado com especulações envolvendo o mercado da bola?
Nós, em Portugal, vivemos um pouco uma fase em que as pessoas mais do que gostarem do futebol, gostam de tudo aquilo que gira no entorno do futebol. Os programas esportivos em Portugal falam apenas de arbitragem ou de mercado. Do jogo? Muito pouco. Sinto que os portugueses deixaram de gostar do jogo em si. Se olharmos as redes sociais, somos o país que tem mais de 9 milhões de árbitros e mais de 10 milhões de scouts e gestores de futebol. Todos têm opinião de tudo. A imprensa naturalmente vai atrás disso, vai atrás do que vende. Fizemos uma vez no Benfica uma contagem dos jogadores que a imprensa durante aquele ano colocou como potenciais reforços. Contamos cerca de mil nomes. Mil nomes dentro de uma única temporada. Desses mil, havia uma porcentagem muito pequena de jogadores que de fato nós tínhamos interesse. Contratados, então, muito menos.
Mas a culpa necessariamente não é apenas da imprensa. Os empresários e os dirigentes também têm parcela nisso…
Sim, também tem isso. Mas Portugal é um país interessante na colocação de jogadores, porque todos sabem que os clubes portugueses valorizam e vendem bem. O fato de um jogador ter o nome ligado ao Benfica, por exemplo, faz crescer muito a sua valorização. Porto e Benfica costumam ter muito sucesso na venda de jogadores, então isso é atrativo. O Sporting também.
Os clubes portugueses são os únicos, pelo menos que eu tenha conhecimento, que divulgam a lista de scouts e olheiros que estão no estádio. Podemos acreditar nessas listas? Eles estão mesmo ali?
Os scouts e olheiros, de fato, estão lá. As listas são verdadeiras. Já vi muito scout perguntar: "Por que os portugueses divulgam isso? Nunca vi isso em outro lugar". São os próprios clubes que fazem isso, mas desconheço os motivos. É interessante para os clubes que isso seja público, é óbvio. Mas há situações que são curiosas, e rimos disso com frequência. Às vezes temos a seguinte manchete: "O Manchester United está na Luz a observar o jogador X". O Manchester United, na verdade, tem três scouts em Portugal. Três. Um deles está presente em todos os jogos na Luz [risos]. Ele está ali porque é o trabalho dele, não quer dizer que está observando determinado jogador.
Qual foi o seu grande acerto como scout?
Acho que em termos de credibilidade dentro do clube [Benfica] foi o Witsel [hoje no Borussia Dortmund]. Dentro de apenas um ano teve uma valorização enorme de não sei quantos porcentos [foi vendido para o Zenit por 40 milhões de euros]. Isso traz credibilidade.
E o grande erro?
Já admiti isso várias vezes, e até hoje é difícil de aceitar. O meu grande erro foi o Djuricic [hoje no Sassuolo].
Por que ele não atingiu as expectativas?
Talvez questões mentais, o contexto... Às vezes jogadores que não dão certo em Portugal dão certo em outro clube. Há sempre uma espécie de consolo quando um jogador indicado por nós acaba por dar certo em outro lugar, pensamos logo que não nos enganamos. O Luka Jovic, que está muito bem agora no Eintracht Frankfurt, é um exemplo disso. É um consolo para mim saber que o jogador que não deu certo no Benfica acabou por dar certo na Alemanha. O Djuricic, no entanto, não deu certo aqui e em lugar algum. Tem um talento enorme, uma capacidade técnica acima da média, conhecimento grande de jogo... mas não deu.
Existe algum caso em que você precisou insistir para convencer o clube, no caso o Benfica, a contratar um jogador indicado? Um jogador, claro, que veio a dar certo depois…
O próprio Witsel foi um deles. Houve alguma resistência por parte de quem tinha de colocar o dinheiro, porque não conhecia o jogador, porque era bastante caro [foi comprado do Standard Liege por cerca de 8 milhões de euros]. Houve naquele momento alguma batalha para conseguir trazê-lo, mas nada também de outro mundo.
João Félix, a sensação do futebol português no momento, é mesmo acima da média?
João Félix é um dos maiores talentos do futebol português, e acho que muito dificilmente vai ficar em Portugal [no Benfica] por muito tempo. Existe no país, aliás, um efeito bola de neve quando se trata de um jovem talento que interessa a grandes clubes de fora. Ninguém quer perder o jogador, então a disputa acaba por ser muito grande. Às vezes um clube compra determinando jogador sem ter a necessidade absoluta de comprá-lo. Muitas vezes é uma questão de ego. Dito isso, o João Félix é sim um jogador acima da média. Mas também é preciso ter calma, porque é muito novo [19 anos] e precisa de sequência.
Como os Amigos podem perceber, o Flamengo terá no topo da sua estrutura profissional de futebol um dirigente estrangeiro, português, porém profundo conhecedor e apaixonado pelo futebol brasileiro.
Confesso que a escolha em muito me agradou, especialmente depois que pesquisei sobre o profissional. Qualquer suspeita advinda do verdadeiros desastres que ocorreram com Paulo Sousa e Vitor Pereira deve ser afastada. Meus medos simplesmente se foram.
Na verdade, a enorme afinidade de José Boto com o futebol brasileiro é bastante tranquilizadora e não deixa de remeter a que existiu com um certo treinador português que trabalhou com o próprio Boto no Benfica e fez História no Flamengo, deixando muitas saudades.
A palavra está com vocês.
Uma ótima semana pra gente.
Bom dia e SRN a tod@s.