sexta-feira, 1 de abril de 2022

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos,

Uma piada muito comum que quase todo mundo ouve quando é criança dá conta de que um sujeito resolve procurar um médico, e se queixa de que está sentindo dores por todo o corpo. Põe o dedo no pé, dói o pé. Aponta o peito, dói o peito. Encosta o dedo na cabeça, dói a cabeça, e por aí vai. Até que o médico, calmo, encerra o caso com o diagnóstico limpo, certeiro. É o dedo que está quebrado.

* * *

Daqui a dez dias, o trabalho de Paulo Sousa à frente do elenco do Flamengo completará três meses. Salvo alguns momentos “empolgantes” contra adversários do quilate de Botafogo, Nova Iguaçu e Bangu, o futebol praticado pela equipe comandada pelo luso tem apresentado característica incolor, inodora e insípida. É um time que marca mal, não faz pressão alta, sai mal com a bola, cria poucas chances de gol (e as que cria normalmente desperdiça), tem mostrado sérios problemas de foco e preparo mental para reagir a adversidades corriqueiras de jogo, e por aí vai.

É um time que não vence e não convence.

Um time em que atacante joga de “ala”, lateral joga de zagueiro, centroavante joga de ponta, zagueiro é responsável pela criação, volante precisa funcionar igual a pistão de carro e meia-atacante não pode, nem por decreto divino, pisar nos lados do campo. Uma azáfama, diria algum compatriota do romântico treinador que gosta de escrever carta bonita.

Não, não tá dando certo.

Entretanto, retroajamos:

Treinador, tido como de bom conteúdo tático, assume. As dificuldades com o novo trabalho logo surgem, assim como defeitos relacionados à execução do esquema de jogo concebido pelo comandante. O desempenho é oscilante, irregular. Como os jogadores são bons, em algumas partidas o time até convence. Mas os problemas e os defeitos estão ali. E impedem que objetivos sejam alcançados. Chega-se a uma espécie de encruzilhada. Sem confiança no trabalho, ou o treinador cede e encontra solução paliativa, ou o fogo da fritura aumentará. Se a opção é pelo paliativo, a escalação é refeita para encaixar alguns jogadores na “carteirada”. Como toda gambiarra, dura pouco. E o desfecho é o mesmo. Cai o treinador e começa tudo de novo.

Com algumas variações, esse tem sido o enjoativo roteiro vivido pelo Flamengo desde que Jorge Jesus, sabe-se lá por qual motivo, resolveu voltar para sua Pasárgada. O culé Domenec, o “sobrevivente” Rogério Ceni e o churrasqueiro Renato Gaúcho (esse já partiu direto pro paliativo, pulando etapas), todos eles sucumbiram ao desafio de desenvolver trajetórias vitoriosas e reconhecidas no Flamengo (Ceni ao menos juntou algumas taças, alegarão seus simpatizantes). Agora, temos o simpático e boa-praça Paulo Sousa, tentando promover seu trabalho de “longo prazo”, de “adaptação necessária”, de “repetições e variações”, num lento, paciente e intrincado artesanato tático cuja aparente falta de senso de urgência soa incompatível com as pretensões, os objetivos e a índole de um clube como o Flamengo.

Provavelmente rodará, em algum momento próximo.

* * *

Sousa se define como um “romântico”. Depreende-se, portanto, que reúne certa sensibilidade no trato das coisas da bola e da vida. Provavelmente externou essa característica quando, após mais uma atuação chocha, apontou para a falta de “fome” do plantel como um todo, sem, evidentemente, apontar nomes, afinal se trata de um cavalheiro.

Discorramos.

O plantel do Flamengo, ou ao menos sua espinha dorsal, é fundamentalmente o mesmo desde 2019, salvo alguns inevitáveis movimentos de entrada e saída. É um elenco que ganhou, em um intervalo de três temporadas, mais títulos do que algumas agremiações autodenominadas “grandes” acumularam em mais de um século de história. Num processo desses, é perfeitamente normal que haja focos de acomodação decorrente de realização pessoal, sensação de estar no topo (ou em “outro patamar”), coisas do tipo. O jogador não se torna “vagabundo” ou coisa do tipo porque passou a se sentir realizado de ter conquistado tudo com a camisa do Flamengo.

Mas é aí que entra o clube.

O fato de aceitar a realidade que um ou outro jogador demonstre acomodação não indica que seja igualmente aceitável que se conviva com ela. Cabe à Diretoria de um clube que se pretende hegemônico, como é o caso do Flamengo, estimular a manutenção de um ambiente encharcado de competitividade e infestado pela ânsia obsessiva de conquistar taças e mais taças, algo como uma droga. E, nesse contexto, elementos que manifestem a falta de disposição de se submeter ao sacrifício contínuo que essa mentalidade exige sejam encorajados a seguir suas carreiras em outros clubes.

Inobstante, é exatamente o oposto do que ocorre no Flamengo de hoje.

Os “jogadores de 2019” são tratados como totens. Alguns reúnem certas regalias, como a certeza da renovação de seus contratos, mesmo sem apresentar rendimento compatível com o que se espera do nível de alguém que atua em um clube protagonista do continente. Com efeito, ao proceder a essas renovações, algumas de forma quase clandestina, a Diretoria transmite a mensagem de que está olhando para trás. Que o Flamengo, embevecido, segue lustrando o bonito e colorido poster dos “campeões de 2019”, agora ao lado dos “heróis de 1981”. Aguardar-se-á mais quarenta anos para que outro poster a eles se junte?

Sim, o elenco do Flamengo é de ótimo nível. Embora não ostente o “patamar” em que muitos dentro do Ninho ainda acreditam estar, possui alguns jogadores de ponta, e a maioria dos seus reservas teria espaço em protagonistas da Série A, alguns deles inclusive como titulares. Mas, com tudo isso, o processo de renovação, de aprimoramento, de busca pela otimização, deve ser constante e perene. E é perfeitamente natural a troca de algumas peças nesse contexto. Um Bruno Henrique, um Everton Ribeiro ou um Diego Alves não terão suas conquistas apagadas ou diminuídas no dia que saírem do Flamengo. Já estão gravados na história.

Mas a história não ganha novas taças.

* * *

Encerro pontuando que há outras questões a serem abordadas, mas desenvolvê-las agora tornaria este arrazoado monótono e enfadonho. Haverá outras oportunidades. De qualquer forma, indaga-se se está valendo a pena aguardar pela melhor “monetização” do Leo Pereira enquanto ele segue entregando gols e derrotas. Ou se passar uma janeira europeia INTEIRA sem reforçar o elenco, mesmo sendo supostamente alertado (ao menos, segundo relatos) de que determinadas posições não dispunham de jogadores adequados para fazer funcionar a intrincada engenhoca do Mister Paulo Sousa Camões. Claro, trazer jogadores era algo secundário, diante da prioridade inadiável da contratação do volante “água de salsicha” Andreas Pereira, cliente da Bertolucci Sports, mesmo faltando seis meses para o fim de seu contrato.

E que tal falar de goleiro? Voltamos a 2017. E os que criticavam de forma mais estridente aquela condição de absoluta ausência de goleiro qualificado no elenco são, hoje, os donos da caneta a contemplar os frangos, as falhas, a indolência e a insegurança dos nossos arqueiros.

Grande problema do futebol é que ele dá voltas.

Boa semana a todos.

PS – amanhã o Flamengo decide mais um título. Até é improvável uma reviravolta, mas a força e o peso da camisa do Flamengo tornam proibitivo emergir qualquer pensamento diferente da confiança e da fé. Mesmo com todos os problemas, que não são poucos. Ao tetra, portanto!