sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

O Novo Treinador - Filosofia x Prática

Salve, Buteco! No dia 15 de janeiro de 2021, O Globo publicou entrevista concedida por Filipe Luís aos jornalistas Carlos Eduardo Mansur e Marcello Neves, da qual destaco o seguinte trecho:

Como executar, por vezes, um plano no qual não acredita?

Jorge Jesus tomava decisões táticas com as quais eu não concordava. Mas não é que ele estivesse certo e eu, errado: não tem isso no futebol. Existe o que funciona. Mas a minha função como jogador era fazer o que ele pedia. Quando acabava o jogo, e costumava dar certo, eu ia conversar com os analistas e perguntava por que foi feito assim, se não era melhor fazer da forma que eu imaginava.

Quando isso aconteceu?

A gente jogou com o Santos do Sampaoli no Maracanã, e foi o jogo mais difícil para nós. Eles tiveram a bola, dominaram, mas ganhamos de 1 a 0. Eu não concordei, porque, na preleção, ele (Jesus) falou: 'Hoje, nós não vamos jogar, vamos lançar bola longa no Bruno Henrique e jogar a partir daí'. A gente estava voando. Por que não confiar na gente? Mas fizemos tudo o que ele pediu. A bola vinha, e lançava no Bruno Henrique. Um jogo mais direto, vertical. Fui conversar com os analistas, perguntar se não poderíamos ter vencido mais facilmente, e eles responderam que o  Santos era o time que mais tinha feito gols com roubadas de bola no último terço do campo. Viu? Tem muitas coisas que eu ainda não controlo.

Futebol, nos dias de hoje, cada vez mais envolve tecnologia e informação no processo de preparação dos atletas para as partidas. O treinador trabalha com uma gama de dados e informações multidisciplinares, advindas de diversos setores do clube e, não raro, até de fontes externas. Em razão disso, especialmente o conhecimento tático e a preparação física, sem prejuízo de outras fontes de conhecimento, passaram a ter um peso bem maior do que tinham no futebol de outrora.

Após comer o pão que o diabo amassou nos piores anos de gestões caóticas e de reconstrução administrativa, financeira e fiscal do clube, o torcedor rubro-negro passou a valorizar todo o processo que envolve a absorção de conhecimento e sua aplicação na preparação e execução de estratégias dentro das quatro linhas, até porque agora o clube passou a poder pagar pelo que há de melhor no mercado sul-americano e até mesmo em patamares mais acessíveis do mercado europeu. Por isso mesmo, o sarrafo para os seus treinadores subiu um bocado.

Ocorre que a teoria e o conhecimento não são suficientes.

No derradeiro jogo do catalão Domènec Torrent à frente do clube, dois adeptos do jogo de posição chegavam ao Mineirão para se enfrentar e pressionados pela falta de resultados. Contudo, a situação do argentino talvez fosse um pouco mais delicada do que a do catalão. É que, naquele mês de outubro, o Atlético Mineiro, até então, havia vencido, por três gols de diferença, dois futuros rebaixados (4x1 Vasco da Gama e 3x0 Goiás), mas colhido insucessos contra todos os outros adversários mais competitivos (1x2 Fortaleza, 1x1 Fluminense, 1x3 Bahia, 0x0 Sport Recife e 0x3 Palmeiras).

Na coluna do dia seguinte, destaquei, citando análise do jornalista André Nunes Rocha (@anunesrocha) no Twitter, que "absolutamente nada explica a marcação em bloco alto logo no início da partida em jogo tão crucialmente decisivo". O time simplesmente não estava preparado para executar aquela estratégia, naquele momento, contra aquele rival. 

Jorge Sampaoli, seis dias antes, havia cometido contra o Palmeiras, então dirigido pelo auxiliar Andrey Lopes, o "Cebola", o mesmo erro de Domènec, tendo por isso sido goleado por 0x3. O mesmo Sampaoli que havia pagado o preço por suas ousadias teórico-ideológicas na Copa do Mundo de 2018, ganhou de presente de Domè o passaporte para terminar a temporada à frente do rival mineiro com a goleada sobre o rival. A metáfora não é exagerada. Afinal de contas, estamos falando da rivalidade interestadual mais acirrada entre torcidas do Brasil.

Há exemplo mais recente, fora do Flamengo e envolvendo o nosso grande rival mineiro. O argentino Juan Pablo Vojvoda, também adepto do jogo de posição e, na minha opinião, o treinador mais promissor da América do Sul (entre os mais jovens), responsável pelo monumental trabalho que levou o Fortaleza ao quarto lugar do Campeonato Brasileiro e à semifinal da Copa do Brasil, em um gesto de maturidade reconheceu o erro e a imaturidade da postura exageradamente ofensiva no jogo de ida no Mineirão: "Quando o time perde, acredito que erro. Tenho que decidir. Podia ser com três volantes. Eu assumo a responsabilidade", disse ao Jornal O Tempo, que completou a análise: "O Leão do Pici costuma jogar com três zagueiros, o que não aconteceu nessa quarta-feira (20), após o clube perder Tinga por lesão."

Como Domènec Torrent, Juan Pablo Vojvoda saiu de Belo Horizonte com quatro gols na sacola, mas diferentemente do catalão, que, sempre com posturas inconsequentes, já havia perdido de 0x5 no Equador (Independiente Del Valle) e de 1x4 no Maracanã (São Paulo), o argentino dispunha de mais do que suficientes reservas de crédito para continuar à frente do trabalho.

Voltando às tendências atuais, tenho a impressão de que não há treinador minimamente competitivo que não adote conceitos da mítica Holanda de 1974. A diferença está em como e em qual proporção se aplica essas ideias. A grosso modo, temos a escola do jogo posicional, nascida e construída a partir das passagens de Johan Cruyff por Barcelona, como jogador e treinador, e desenvolvida por pensadores do futebol como Marcelo Bielsa, e a corrente composta por outros adeptos da mesma influência, os quais considero "menos bitolados" e "mais arejados". São os casos dos alemães (Klopp, Heynckes) e... dos portugueses, culturalmente bem mas próximos (e afins) de nós, brasileiros.

Como escrevi nesse post:

Um ano de jogo posicional ensinou ao clube que, além da tática, é preciso ter gestão de elenco e de vestiário. O futebol brasileiro tem uma cultura, goste-se ou não dela. As inovações táticas devem ser acompanhadas de um tratamento que a maioria dos jogadores brasileiros não dispensa.

Por exemplo, jogador brasileiro não não é simpático a bruscas e frenéticas mudanças de posição (percebam a diferença para mudança de função tática). Não é impossível que aceite, só que, antes, o elenco precisa comprar a ideia.

Não se diz impunente a um consagrado zagueiro com crônicos problemas físicos que ele jogará na lateral direita, ou ao volante titular que passará a ser zagueiro. Talvez na Europa não reclamassem, mas no Brasil é diferente.

A ferramenta é ótima, inclusive pela maneira como aproveita a base (não foi bem o caso do Ceni, mas foi o de Domè), porém não se muda uma cultura mais do que secular de uma hora para outra. É preciso haver adaptação.

Não me entendam mal. É possível conciliar o jogo posicional com o pragmatismo, como o jovem Juan Pablo Vojvoda de certa maneira reconheceu, após o desastre do Mineirão. O difícil é encontrar um treinador de jogo posicional que concretamente o faça (risos respeitosos). Como na lista de treinadores portugueses especuladas na imprensa tem um pouco de tudo, dentro das influências da Laranja Mecânica e de Johan Cruyff, inclusive ao menos um adepto do jogo posicional, convém que, logo na reunião inicial, a dupla Marcos Braz e Bruno Spindel explique como funcionam o clube e a torcida, e deixe cada candidato informado a respeito do passado recente.

Mal comparando os desempenhos (não me refiro a títulos) de Domènec Torrent, Rogério Ceni e Renato Portaluppi à frente do Flamengo, chego à conclusão de que, se Renato confirmou o erro da Diretoria ao se distanciar das luzes do conhecimento e da informação, ao mesmo tempo comprovou que teorias mal aplicadas são menos valiosas do que a experiência e a intuição.

O treinador do Flamengo, antes de tudo, precisa ser sábio, a começar por entender, assimilar e se integrar à cultura do clube. A ideologia do Flamengo é vencer, vencer e vencer, e com uma filosofia de jogo preponderantemente ofensiva. 

Bom FDS e SRN a tod@s.