segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Como Chegamos a Esse Ponto?

 


 Bom dia, Buteco. O que faz um treinador receber uma equipe campeã de tudo e fazer dela um saco de pancadas e uma das defesas mais vazadas do campeonato? Passei a semana refletindo até a respeito da índole do povo espanhol, visceral e profundamente apaixonada por algumas causas e ideias. Não é a toa que a Espanha tem sérias divisões e ao menos dois movimentos separatistas, o basco e o catalão. O chamado "País Basco" produziu até mesmo um violentíssimo movimento terrorista, o Euskadi ta Askatasuna ou "ETA", que aterrorizou o país durante décadas. É de lá o tradicional Athletic Bilbao, clube muito bem sucedido em número de títulos espanhóis até a década de 50. A identidade cultural com o País Basco, contudo, levou-os à opção de preferir a diminuição e passar à irrelevância no futebol contemporâneo a admitir o "absurdo" (aos seus olhos) da contratação de jogadores estrangeiros. 

A Catalunha jamais produziu um grupo extremista como o ETA, mas também possui uma identidade cultural muito forte, tendo produzido maravilhosos artistas como Salvador Dalí, Joan Miró e astros da ópera como Josep Carreras e Montessar Caballé. Sua identidade com o futebol é profunda, mas se desenvolveu muito nas duas passagens de Johann Cruyff, como jogador e treinador do Barcelona, as quais deixaram ideias inspiradoras para Pep Guardiola, seu ex-atleta, que desenvolveu um estilo de jogo o qual, para os catalães, passou a ser uma das formas de expressão cultural do seu povo. Talvez isso explique o porquê de seu maior clube, o FC Barcelona, e seu ex-treinador, expoente maior da filosofia, não compreenderem o alcance e a profundidade da crise na qual se encontra esse estilo de jogo, por mais louvável e bonito que seja.

É curioso observar que Guardiola, para desenvolver esse sistema, também se inspirou em Marcelo Bielsa, argentino que, da mesma forma, foi influenciado por Johann Cruyff e é adepto do conceito e sua filosofia acima dos resultados. Guardiola, Bielsa, a Espanha e a Argentina possuem uma inegável identidade cultural que se expressa por formas parecidas por via do futebol. É de Pep a célebre frase de que prefere perder a vencer contrariando seus princípios. Quando me recordo da paixão da torcida argentina por sua seleção, Diego Maradona e Marcelo Bielsa (cada qual delas em sua devida proporção), não me surpreendo com o fato da colonização do nosso vizinho sul-americano ter sido espanhola.

Povos idênticos, na paixão pelo ilusório e na fuga do lado nada edificante de seus ídolos e idolatrias. Bem diferentes do brasileiro e sua postura crítica, ácida e sarcástica em relação a seus maiores artistas, políticos e atletas.

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Como podem Jorge Jesus e Domènec Torrent terem por influência Johann Cruyff? Seria absurda qualquer comparação entre os trabalhos de ambos no Flamengo. O ponto que quero destacar é justamente o cultural e como esse fator pesou nas distintas leituras da Laranja Mecânica de 1974 por parte do Mister e do Guardiolismo. Os portugueses estão bem mais próximos do pragmatismo alemão, de Jupp Heynckes e Jurgen Klopp, que também se inspiraram no mestre holandês. Por exemplo, quando Filipe Luís, lateral esquerdo veterano, informou ao Mister que não tinha mais pique para jogar da forma que o treinador português estava lhe pedindo, JJ, de forma maleável, adaptou o esquema ao perfil de seu talentosíssimo e experiente lateral, sem dúvida um dos pontos de sustentação da equipe. Quando o centroavante de área que tanto pediu não chegou, após o insucesso da negociação com Mario Balotelli, o Mister, novamente se mostrando maleável e capaz de se adaptar às circunstâncias, resolveu-se com Gabigol e formou a melhor dupla de atacantes brasileiros do século, a qual o catalão tratou de descartar desde o início para implementar o seu 4-3-3 posicional, tudo em nome de sua "sacrossanta" filosofia, quem sabe em busca da aprovação do mentor. Enquanto o Mister, no Flamengo, sempre operou o milagre da multiplicação, o catalão só causou redução e destruição.

Os portugueses são naturalmente mais próximos dos brasileiros. A identidade cultural é inegável. Abel Ferreira chegou essa semana ao Palmeiras e na primeira entrevista coletiva tratou de informar que a estratégia mudará de acordo com o adversário e que será preciso ser pragmático, em razão do singular contexto de volta do futebol após a paralisação forçada pela pandemia de COVID-19. Certamente essa identidade cultural levou a Diretoria do Flamengo a considerar nomes como Leonardo Jardim e Carlos Carvalhal antes de optar pelo catalão Domènec Torrent. Teria sido bem melhor insistir em alguma opção de Portugal a rumar para os lados do decadente futebol catalão. Para quem não conhece o histórico da escola portuguesa de treinadores, sugiro a leitura da excelente thread do Leonardo Miranda (@leoffmiranda) no Twitter.

O que talvez a Diretoria não tenha imaginado é que havia contratado um profissional com ego monstruoso, que faz questão de estar completamente alheio à cultura do clube e do contexto que o cerca. Domènec parece se achar um sábio que mudará o jeito de ser do Flamengo e de sua torcida, com sua falsa sapiência. Ao cair no conto do guardiolismo e do estagiário catalão, a Diretoria pode ter comprometido irremediavelmente a temporada e a maior geração do clube depois dos tempos de Zico.

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Já disse, em posts e comentários, que na minha opinião a origem primária dos problemas é física. Vem da tumultuada e desastrada transição e da chegada extemporânea da comissão técnica, às vésperas do início do Campeonato Brasileiro. Piorou ainda mais com o surto de COVID-19 no elenco. Todavia, a administração desse problema por um treinador completamente inconsciente de suas limitações, que considera a sua filosofia de jogo mais importante do que a temporada e o próprio clube, formou a tempestade perfeita. Em minhas mais de quatro décadas como torcedor do Flamengo, jamais havia visto tamanho desapego a resultados e assunção de riscos desnecessários como faz o pseudo-filósofo Domènec Torrent. Diante do histórico defensivo recente, nada, absolutamente nada explica a marcação em bloco alto logo no início da partida em um jogo tão crucialmente decisivo, como bem apontou André Nunes Rocha neste tuíte.

O sistema de jogo, inspirado no "futebol-total holandês", é inexecutável sem o elenco estar em sua melhor forma física, o que, contudo, para a perplexidade geral, não tem a menor importância para a fraude chamada Domènec Torrent. Com todo o respeito à bela cultura catalã, que enalteci no início do post, e aos meus amigos espanhóis, somente um ego monstruosamente irresponsável pode permanecer alheio à total destruição da reputação de um time que venceu tudo antes de sua malsinada chegada ao clube. A multa rescisória de seu contrato deve ser muito alta, para ainda não ter sido demitido. O projeto de treinador catalão não tem sequer a dignidade de chegar a um acordo com a Diretoria para viabilizar o fim de um ciclo que jamais deveria ter se iniciado. Muito fácil filosofar e posar de sábio e bom moço se encostando no alto valor de uma multa rescisória.

É uma pena que essa criatura ainda não tenha tido a oportunidade de conhecer a torcida rubro-negra.

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Quando a demissão acontecer, o que, evidentemente, é apenas questão de tempo, será importante pesquisar profundamente o tipo de filosofia tática e de trabalho do novo treinador. A América do Sul é repleta de filósofos e discípulos de Bielsa e Guardiola.

Porém, pra mim já deu. E pra vocês?

#FORADOME!!


Bom dia e SRN a tod@s.