segunda-feira, 1 de março de 2021

O Treinador

 

Salve, Buteco! Conquistado o octacampeonato brasileiro, o final da temporada traz o momento propício para analisar o trabalho do nosso treinador e conversar sobre as prováveis consequências da sua continuidade no clube. Quando o Flamengo anunciou a contratação de Rogério Ceni, aos 10 de novembro de 2020, escrevi este post enumerando vantagens e desvantagens em sua contratação. Como vocês podem constatar, acertei algumas previsões e errei outras. Acho que os meus maiores acertos foram o ajuste do sistema defensivo, a organização tática do time e a dúvida quanto ao confronto contra os argentinos, ao passo que os maiores erros foram a fé no conhecimento de Ceni sobre o São Paulo e Fernando Diniz, que não serviu para absolutamente nada, e a previsão dos goleiros voarem baixo.

Desde o começo ficou claro para nós, torcedores do Flamengo, que falar sobre Ceni remeteria inevitavelmente aos seus tempos de São Paulo e ao episódio da "Taça das Bolinhas", como a foto daquele mesmo post tratou de demonstrar. Posso afirmar que, até deixar os gramados como atleta, Rogério Ceni foi uma das figuras mais antipáticas ao Flamengo que pude testemunhar em meus mais de 45 anos acompanhando futebol. Contudo, preciso confessar a vocês que, curiosamente, essa imagem se desfez para mim antes mesmo do Mais Querido contratá-lo. O desprendimento ou desapego que Ceni demonstrou, em relação ao seu histórico como atleta de ponta, quando aceitou seguir a carreira de treinador no Fortaleza, após a demissão do São Paulo, chamou-me imediatamente a atenção e reverteu em mim a imagem de arrogante que dele tinha.

Explico: o ex-atleta, especialmente aquele que tem experiência em clubes e competições de ponta, quando é bem sucedido na carreira de treinador consegue agregar uma gama de conhecimentos que vão muito além da teoria, apreensível por qualquer um que dedique tempo para estudar seriamente o esporte. O efeito aumenta ainda mais quando se trata de um atleta de ponta, destaque individual na profissão (geralmente com grandes títulos conquistados). Como o ex-atleta de ponta coloca em risco o prestígio que angariou em seus tempos de gramado, são poucos os que aceitam "começar por baixo", daí não surpreender serem bem mais comuns exemplos de ex-atletas de menor expressão que se tornam treinadores de sucesso após passarem por um período de crescimento profissional em clubes menores, como nos casos de Luiz Felipe Scolari e Vanderlei Luxemburgo. 

O desapego de Ceni, assim como o de Hernán Crespo, infelizmente, é bem menos recorrente. Logo, analisando os acontecimentos por esse ângulo, vejo um Ceni mais maduro, transigente e responsável do que nos tempos de atleta, com uma visão crítica sobre as limitações da formação dos treinadores brasileiros e a necessidade de buscar conhecimento no futebol estrangeiro. Aliás, vejo margem para seu crescimento como treinador, justamente por seu evidente interesse pelo aprimoramento. Além disso, também enxergo nele uma enorme vontade de acertar no comando do Flamengo. Na verdade, a mim parece que o Ceni deu absolutamente tudo de si para a conquista desse título e seria muito injusto não destacar esse ponto.

Entretanto, ao mesmo tempo tenho consciência de que isso é muito pouco para o Flamengo. Aliás, convenhamos, essa é apenas a minha visão particular sobre um específico aspecto da profissão de treinador de futebol profissional. Avaliar o desempenho e as necessidades de um gigante como o Mais Querido envolve considerações bem mais amplas e profundas, que vão além da boa vontade e da coragem do nosso treinador.

***

Há um obstáculo comum na análise da performance de qualquer treinador na atípica temporada de 2020, qual seja, a inevitável dificuldade para contextualizar todos os transtornos que a pandemia de COVID-19 causou para o futebol, desde o calendário e o (inédito) tempo de inatividade até a contaminação de uma grande parte dos atletas. Discutimos exaustivamente o tema neste espaço. Contudo, no caso do Flamengo, havia uma dificuldade adicional, mencionada neste post após a vitória sobre o Coritiba, no Couto Pereira, partida seguinte ao desastre de Goiânia (0x3 para o Atlético/GO). Refiro-me à natural dificuldade de se manter no topo, que o ditado popular diz ser maior do que a enfrentada para até ele se chegar. O paradigma que utilizei na ocasião foi justamente o Liverpool de Jürgen Klopp, já que entre o Mais Querido e os Reds havia as comuns particularidades da conquista simultânea dos títulos nacional e continental, bem como o jejum de conquistas dos títulos continental, no nosso caso, e nacional, no caso dos ingleses. Aliás, o Liverpool encerrou idêntico jejum ao do Mais Querido em 2009, e todo mundo se lembra da catarse que sucedeu aquele título, assim como a tensão que o precedeu. Só vivi algo semelhante na primeira conquista do Brasileiro, em 1980, e, mais recentemente, em 2019, com o segundo título da Libertadores.

Analisando a conquista do octacampeonato sob o mesmo paradigma, a derrocada do Liverpool na Premier League conduz à inevitável conclusão de que o feito do Flamengo é digno de nota, independentemente da qualidade do futebol apresentado haver sido um tanto frustrante. Observem que o Liverpool tem um dos dois melhores treinadores do mundo, que desenvolve um trabalho de longo prazo vitorioso no clube, e tem o melhor elenco da Premier League, a qual é, sem condescendência, o maior centro do futebol mundial. Nem mesmo com essa soberba gama de profissionais qualificados o melhor time do mundo conseguiu manter o nível de atuações, tendo sofrido com goleadas e placares elásticos, assim como alguns resultados para lá de inusitados - 2x7 Aston Villa, 0x2 Atalanta, 0x1 Brighton Rove-Albion, 1x4 Manchester City, 1x3 Leicester e 0x2 Everton. Os quatro últimos resultados inclusive foram sucessivos (!).

Portanto, Amigos, não é fácil, comum e nem muito menos tendência histórica ser campeão por temporadas seguidas sem queda de rendimento, premissa que vale para grandes elencos e grandes treinadores.

***

Ainda dentro das ressalvas contextuais, por questão de justiça devo reconhecer que elas valem tanto para Rogério Ceni, como para Domènec Torrent, bem como que cada um enfrentou adversidades muito complexas e específicas de seus respectivos períodos à frente do Flamengo. Arrisco afirmar, porém, que se Domènec enfrentou, com sucesso, o desafio único e histórico dos confrontos contra Barcelona de Guayaquil, Palmeiras e Independiente del Valle com inúmeras baixas por conta do COVID-19, Ceni herdou, às vésperas dos pesadíssimos confrontos contra São Paulo e Racing pelas Copas do Brasil e Libertadores da América, um trabalho que, se chegou a ser promissor, acabou destroçado pela intransigência e pelo ego do catalão. Ceni, até pela óbvia oportunidade que representava para a sua carreira, não hesitou em pular dentro de um caldeirão fervendo para tentar salvar a temporada do Flamengo.

Se não conseguiu ir adiante nas copas, nas quais cometeu erros facilmente detectáveis, Ceni conseguiu nos conduzir ao octacampeonato com uma postura bem mais transigente e responsável do que a do seu predecessor. Basta observar que as goleadas se foram, tendo por única exceção a terceira partida, contra o São Paulo, no Morumbi (0x3).

***

Feitas todas essas ressalvas, tenho para mim que as limitações de Rogério Ceni saltam aos olhos, especialmente quando confrontadas com as necessidades do Flamengo, no patamar que alcançou, especialmente a partir de 2019. Começaram a ficar visíveis no confronto contra o Racing no Maracanã. É que, muito embora a atuação tenha passado longe de ser desastrosa (basta ver as chances de gol desperdiçadas) em um naturalmente tenso confronto de oitavas de final em Libertadores, a opção por Vitinho centralizado e De Arrascaeta pela esquerda justificaram os primeiros questionamentos a respeito da capacidade de discernimento do nosso treinador. Pareceu-me claríssima a inversão de valores nessa decisão.

A partir de então, a dúvida cresceu em mim, a ponto de se transformar em certeza, nas partidas contra Athletico/PR (1x2), Bragantino (1x1) e São Paulo (1x2), todas pelo Campeonato Brasileiro. Na primeira, as substituições simplesmente desintegraram o time; na segunda, por terem sido feitas durante o acréscimo ao tempo regulamentar à segunda etapa, ou seja, quando quem precisa do resultado quer tudo menos interrupções que tiram o ritmo do jogo, chegaram ao limite do exótico, e, na terceira, considerando que um gol do Internacional lhe daria o título, evidenciaram preocupante falta de ousadia em modificar taticamente o time, que conseguiu por apenas poucos minutos se impor ao adversário durante os noventa minutos. O octacampeonato não escapou de nossas mãos por um triz.

O que mais me preocupa não é falta de conhecimento, limitação importante e evidenciada pela decadência nas articulações ofensivas, porém em tese vencível com a qualificação dos assistentes na comissão técnica e a disposição de Ceni para evoluir. O pior defeito do Ceni aparentemente tem fundo emocional. A divertida alusão, feita pela torcida, a um vendedor de carros usados (pelo suor nas camisas de mangas longas arregaçadas) parece encontrar causa em picos de tensão que simplesmente anulam a capacidade de leitura do jogo e de discernimento para tomar as melhores decisões. Não consigo encontrar outra explicação para tantas e seguidas decisões absurdas.

Friso que, na minha ótica, muito embora extremamente complexo, também não se trata de um problema invencível, porém é difícil acreditar que possa ser resolvido e superado com uma Diretoria que, inobstante ser vencedora e, por isso mesmo, histórica, não demonstra ter a menor preocupação com o tema da psicologia no futebol profissional (esporte de altíssimo rendimento).

Diante disso, é difícil não enxergar algumas dificuldades no curso da temporada. Vejam bem, teoricamente, a experiência de ex-atleta de ponta credencia Rogério Ceni para conduzir o Flamengo a mais um título brasileiro no formato de pontos corridos. Todavia, quatro temporadas seguidas (desde 2017) de disputa simultânea do Campeonato Brasileiro, da Copa do Brasil e da Copa Libertadores da América desautorizam qualquer dirigente ou torcedor rubro-negro a, hoje em dia, menosprezar o calendário, tanto mais em uma temporada na qual são previstas convocações que desfalcarão os times em nada menos do que "metade" da Série A.

A julgar pelo comportamento do nosso treinador em momentos de maior tensão, é impossível não temer o desfecho da participação do Flamengo nas copas, principalmente ao se levar em conta esse cenário. E como provavelmente teremos mais uma temporada sem público nos estádios, é justo indagar se a manutenção de Rogério Ceni não pode representar a chamada "economia burra", já que nas copas estão as maiores premiações.

Na teoria, o nosso atual treinador se encontra em patamar bem acima de treinadores como Andrade e Jayme de Almeida (refiro-me às carreiras de cada um como treinador), mantidos após os emblemáticos títulos de 2009 e 2013. Ainda assim, os questionamentos quanto a sua capacidade de conduzir o Flamengo não temporada de 2021 são mais do que cabíveis. Como, pelo jeito, a Diretoria se conduzirá da mesma forma que em 2010 e 2014, resta-nos torcer muito. Ninguém poderá dizer que não foi avisado.

***

A palavra está com vocês.

Bom dia e SRN a tod@s.