segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Pós-Verdade, Campeonato Brasileiro, Grêmio e a Semifinal da Libertadores

Salve, Buteco! A sequência de oito vitórias seguidas do Mais Querido do Brasil foi interrompida no sábado pelo empate por 0x0 com o São Paulo, no Maracanã. Uma soma de fatores impediu a conquista dos três pontos: a necessidade de poupar os laterais e o meia Gérson, o campo pesado pela chuva, que aumentou o desgaste da maratona e ainda dificultou trocar passes e imprimir velocidade à partida, e, para piorar, o Mais Querido enfrentou também a conivência do árbitro Rafael Traci com a irritante cera feita pela equipe paulista. Especialmente no segundo tempo, toda hora havia um jogador do São Paulo estirado em campo e a maca entrou várias vezes, paralisando a partida e quebrando o ritmo de jogo rubro-negro. Como se tudo isso já não bastasse, todos esses obstáculos coincidiram justamente quando enfrentamos a segunda defesa menos vazada do campeonato, que sofreu apenas 15 gols, 8 deles como visitante.

De fato, a primeira linha "bambista" possui uma notável capacidade de se recompor em velocidade e rapidamente se posicionar em maioria frente ao ataque adversário, o que, no contexto do jogo de ontem, impediu o Flamengo de concluir a gol nos contra-ataques que conseguiu encaixar no primeiro tempo. Mas não era só essa a dificuldade: toda vez que o Flamengo partia de seu próprio campo com a bola, encontrava uma agressiva marcação ora já em sua intermediária, ora a partir da intermediária adversária, a qual nem sempre conseguia transpor. A estratégia foi semelhante a que vi o Vasco da Gama de Vanderlei Luxemburgo adotar no Mané Garrincha, a qual na ocasião dificultou as ações rubro-negras. Porém, quando o Flamengo conseguiu transpor essa faixa do campo e o jogo se concentrou dentro ou nas imediações da grande área são paulina, exerceu pressão por vários minutos. Vocacionado para o ataque, quanto mais próximo ao gol o time do Flamengo se sente mais confortável.

As melhores chances para cada lado foram criadas no segundo tempo, mas o setor ofensivo rubro-negro sem dúvida produziu muito mais, o que inclusive caracteriza a diferença mais marcante entre as duas equipes. As boas defesas de Tiago Volpi podem ter separado o Flamengo dos três pontos, porém tive a impressão que os nossos jogadores estavam sempre algumas frações de segundo atrasados nos lances decisivos ou tomavam decisões que não pareciam ser as melhores. Cansaço, campo pesado, catimba do adversário, precaução ou distração por conta da Libertadores?

Dou o meu palpite: qualquer um que já disputou uma pelada de casados x solteiros sabe que as chances de contusão com gramado pesado são maiores, o que só aumenta uma ansiedade de 35 anos... O Flamengo esteve abaixo de seu rendimento por todos esses fatores (não sei qual preponderou) e por sua cabeça já estar em Porto Alegre.

De qualquer maneira, quarta-feira saberemos na vera se o time não quis forçar mais o jogo ou se faltou pernas aos nossos jogadores.

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Vivemos a época da pós-verdade; do jornalismo pós-verdade, da política pós-verdade e das relações humanas, interpessoais e profissionais, norteadas pela mesma ideologia, que ignora a análise objetiva dos fatos e insiste no discurso retórico até que seja assimilado como a expressão da verdade. O  importante é um fato ou ideia parecer ser verdade e não ser verdadeiro. É um mecanismo de domínio dos fatos por meio do discurso, atualmente amplamente utilizado para controle das massas, inclusive pelas redes sociais. Apelos às emoções e a exploração das crenças pessoais dão os contornos desejados aos fatos, que perdem a sua objetividade.

O jornalismo é um dos ramos em que a pós-verdade mais vem crescendo. No âmbito esportivo, e no futebol brasileiro, que nos interessa, agora sob o formato da pós-verdade, o futebol brasileiro ainda é o melhor do mundo, o jogador brasileiro ainda é o mais talentoso e os nossos treinadores estudiosos e competitivos no cenário internacional. A Seleção Brasileira é amada por nosso povo e exemplo de credibilidade nacional. No pós-verdade do futebol brasileiro, o Flamengo continua a ser o grande inimigo; não pode ganhar, se ganhar é beneficiado pela arbitragem e contra o Flamengo tudo pode, tudo vale e tudo é justificável.

Ontem, bastou a tecnologia do VAR anular um gol do Palmeiras para o discurso pós-verdade anti-Flamengo voltar com força na mídia esportiva (ou escrotiva, como preferirem). A guerra de bastidores foi oficialmente aberta, dizem alguns. O grande vilão rubro-negro está por trás de tudo o que é ruim e a pobre Sociedade Esportiva Palmeiras é a vítima da opressão.

A Diretoria do Flamengo não tem mais o direito de fingir que não está vendo.

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Há pouco mais de um ano, detalhei neste post o histórico dos confrontos entre Flamengo e Grêmio. De lá para cá, podemos acrescentar aos números da estatística duas vitórias, ambas no Maracanã e pelo Campeonato Brasileiro: 2x0 em 2018 e 3x1 em 2019. A presença do Grêmio no caminho do Flamengo justo no ano em que pode quebrar o jejum de títulos na Libertadores e mesmo no Campeonato Brasileiro não deve causar surpresa. Os dois times se enfrentaram inúmeras vezes em competições eliminatórias e já decidiram títulos de Campeonato Brasileiro e Copa do Brasil. Na temporada em curso, vão se encontrar em mais 3 partidas, as duas primeiras marcadas para os dias 2 e 23 de outubro, respectivamente em Porto Alegre e Rio de Janeiro, pelas semifinais da Libertadores (3ª oportunidade em que se encontram pela competição), e a última vez em Porto Alegre, pela 33ª Rodada do Campeonato Brasileiro.

Como o confronto revive disputas históricas pela própria Libertadores da América, é bom contextualizar e esclarecer como tudo ocorreu, de modo a que ninguém enxergue um fantasma que definitivamente não existe: o Grêmio, como a grande "asa negra" da Geração Zico, não passa de uma figura mitológica, irreal além das fronteiras do imaginário popular. Vejam bem, atribui-se a Joseff Goebbels, ministro da Propaganda do governo Adolf Hitler da Alemanha nazista, a célebre frase segundo a qual "uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade." A manipulação da verdade não é exatamente uma novidade na sociedade civilizada; apenas foi repaginada na era das redes sociais.

Na verdade (não manipulada), os melhores Flamengos e Grêmios da História se revezaram em títulos nacionais, continentais e intercontinentais entre 1980 e 1983, e nesse ínterim realmente disputaram jogos muito equilibrados, a começar pela conquista rubro-negra, em pleno Estádio Olímpico, do Campeonato Brasileiro de 1982, segundo título nacional do Mais Querido do Brasil, impedindo o bicampeonato brasileiro gremista, campeão em 1981.

Em 1983, pouco antes da transferência do Galinho de Quintino para a Udinese, da Itália, o Flamengo enfrentou o Grêmio pela fase de grupos da Libertadores, novamente no Estádio Olímpico, ocasião em que empatou por 1x1 entrando em campo com Raul, Leandro, Figueiredo, Marinho e Ademar; Andrade, Adílio e Zico; Robertinho, Baltazar e Lico. Três meses depois, com Zico já na Itália, o Flamengo recebeu o Grêmio pela fase de grupos no Maracanã, quando jogou com Raul, Cocada, Figueiredo, Marinho e Ademar; Vitor, Elder e Adílio; Robertinho, Baltazar e Júlio César Barbosa. É claro que o Flamengo perdeu (1x3) e foi eliminado pelo futuro campeão mundial de 1983, mas o contexto rico em detalhes, especialmente sobre a decomposição do time que disputou o primeiro jogo, não costuma ser lembrado.

Na Libertadores/1984, o Grêmio, como campeão da Libertadores/83 e mundial, entrou diretamente na semifinal, quando caiu no mesmo grupo que o Flamengo. As equipes brasileiras venceram sem dificuldades o venezuelano ULA de Mérida (conhecido na época como "ULA de Merda") dentro e fora de casa, e por isso efetivamente disputaram entre si a vaga na final. A partida em Porto Alegre foi um desastre e até hoje é lembrada pela improvisação, feita por Zagallo, do volante Bigu na lateral direita, resultando no pior placar sofrido pelo Mais Querido na competição (1x5). Mérito gremista, que não brincou em serviço. O Flamengo reagiu vencendo no Maracanã por 3x1 (dois gols de Bebeto e um de Andrade) e o empate na pontuação provocou uma terceira partida disputada no Pacaembu, que terminou com o placar de 0x0 no tempo normal e na prorrogação, resultado que, por conta do saldo de gols, classificou a equipe gaúcha para a final em que foi derrotada pelo Independiente de Bochini e Burruchaga.

O Flamengo entrou em campo no Pacaembu com Fillol, Leandro, Guto, Mozer e Adalberto; Andrade, Elder, Adílio e Tita; Bebeto e João Paulo. Um time com bons nomes, mas era como o Barcelona atual disputando uma temporada sem o Messi. Havia perdido o seu brilho. Pode-se argumentar, com razão, que o que fica registrado na História é o resultado final e que faltou competitividade a um Flamengo que, se  não foi um dos melhores da história do clube ou mesmo daquela década, tampouco poderia ser considerado fraco. Ocorre que cada clube tem suas próprias referências e o meu ponto é que jamais vi o Grêmio eliminar de competição alguma os melhores times que o Flamengo teve, mas apenas, com o apoio da imprensa anti e 1x7, fazer um enorme estardalhaço em cima de seus triunfos sobre equipes que, para os padrões rubro-negros, não estavam no primeiro escalão.

"Ah, Gustavo, mas e as goleadas?" O raciocínio é semelhante. O Grêmio realmente já goleou o Flamengo algumas vezes em Porto Alegre. Isso é fato e mérito da equipe gaúcha. Parece-me claro que, historicamente, lá pelos pampas gaúchos leva-se muito mais a sério o confronto do que do lado carioca, o que é lamentável e precisa mudar. Algo parecido ocorre nos confrontos contra o Athletico/PR na Arena da Baixada. Então, quando o Flamengo não se prepara para o confronto, costuma se dar muito mal, o que ocorreu mais vezes do que o desejado especialmente nos jogos pelo Campeonato Brasileiro em Porto Alegre. Por exemplo, nos casos do 2x5 de 1978 e do 1x6 de 1989 (Copa do Brasil), em ambas as situações sem Zico e com o Mais Querido entrando em campo com formações completamente desfiguradas. Comprovando o meu ponto, com o Galinho de Quintino em campo, foi o Flamengo que goleou em 1976 no Maracanã e se sagrou campeão brasileiro no Estádio Olímpico (1982). Quando se prepara para o confronto, o Flamengo não costuma levar desvantagem.

Enfim, o Grêmio é um adversário tradicionalmente difícil e competitivo, que tem grande vantagem especificamente nos confrontos diretos pelo Campeonato Brasileiro em Porto Alegre, a qual, porém, não existe justamente nos confrontos eliminatórios, usualmente levados mais a sério no clube, nos quais o placar atual é 6x6, com um título nacional para cada lado e um detalhe importante: o Mais Querido eliminou o Grêmio nos quatro últimos e com times que, definitivamente, jamais poderiam ser incluídos entre os melhores que tivemos.

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Como ventos do passado não movem o moinho, é bom falar sobre os times atuais de Flamengo e Grêmio, né? Pois bem, vejo muita qualidade no adversário no miolo de zaga, no setor de criação e no ataque. O jogo coletivo é muito bom desde 2016 e aparentemente se deve muito à aposta da Diretoria gaúcha em um modelo de jogo propositivo e ofensivo. Parece também que o auxiliar técnico do treinador é muito bom e o segredo do negócio... Brincadeiras à parte, os destaques individuais são o zagueiro Pedro Geromel, contundido e que provavelmente não jogará a primeira partida, o meia Jean Pyerre, aparentemente também contundido, e o arisco atacante Everton "Cebolinha", nova esperança da torcida brasileira inclusive na Seleção. O meia Luan pode ser o quarto elemento de destaque, a depender de sentir ou não uma incômoda e persistente contusão na planta do pé.

Como escrevi neste post há duas semanas, o Grêmio deve ir para o confronto menos desgastado e apostando muito na imposição física, apesar da inegável qualidade do seu jogo. Jorge Jesus, na coletiva pós-jogo de sábado à noite, bem observou: o Grêmio jogará de igual para igual com o Flamengo, o Grêmio poderá levar o Flamengo às cordas em alguns momentos. Contudo, o Flamengo de Diego Alves, Rafinha, Rodrigo Caio, Pablo Marí, Filipe Luís, Willian Arão, Gérson, Everton Ribeiro, De Arrascaeta, Bruno Henrique e Gabigol está plenamente consciente da importância histórica dessa semifinal. E com todo o respeito ao tradicionalíssimo e competitivo rival gaúcho, é superior tanto individual, quanto coletivamente, desde o sistema defensivo e particularmente nas laterais, até o ataque.

O Flamengo, amigos, que tem o seu melhor time pós-1982, decidirá em casa e tem grandes chances de se classificar para sua segunda final de Libertadores da América. Que a sorte seja rubro-negra e sorria para nós desde Porto Alegre. Os primeiros 90 minutos do confronto serão muito importantes.

Bom dia e SRN a tod@s.