quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Alfarrábios do Melo

O jogo está prestes a começar.

Mais um Flamengo x Vasco, o enésimo em quase quarenta anos de futebol. Daqui a pouco se fará meio século de paixão rubro-negra, vem um pensamento que se vai em átimo, rebentado pelo espocar de duas vozes que brotam do televisor. Vozes familiares, que provocam reações bastante conhecidas. Sensações que não pretende reviver, não na tarde de hoje. Com efeito, tudo o que não precisa é ter que suportar as ilações melífluas da dupla flu-botafoguense, aferrada à sua “neutralidade” pouco sutil, que convida o espectador à partida que está próxima a ter início. Não, obrigado. E desliga o volume.
No entanto, também não deseja imergir no tal “silêncio ensurdecedor” de clichê. Quer se concentrar no embate, no time, no ambiente. De certa forma, sente falta do clima do jogo, do som do estádio, de todo o ambiente que cerca um jogo de bola. Mesmo que periférico, semi-amistoso. “Se eu apostasse, cravaria 0-0, tá toda cara”, pensa. Olha para o celular que vibra nervoso, mensagens pipocando, como sói acontecer em todo dia de Flamengo. E vem o estalo.

Com a ajuda da Internet, vai ouvir no rádio.

ROLOOOU A BOOOOLA...”

À sua frente, a tela da TV vai mostrado que vinte e dois jogadores vão brigando entre si e com a bola, protagonizando um já esperado espetáculo chafurdado em um pantanoso lodaçal de mediocridade, numa ópera-bufa onde a repetição do mantra “não perder” assume contornos quase religiosos. Mas parece pouco se importar. Sua atenção, sua existência, o eixo de sua essência anímica está direcionado para o som ritmado e sincopado que ora sai do aparelhinho pousado ao seu lado. É como se reencontrasse velhos conhecidos, amigos de longa data. O Garotinho e o Canhota. Sim, a idade já pesa. Um luta contra as limitações impostas à sua outrora enérgica voz. O outro se dedica a não muito mais do que tecer considerações desairosas a jogadores, treinadores, árbitros e tudo o mais que lhe vem à mente, numa pouco espontânea tentativa de mostrar-se rabugento. É como se a cruel devastação do tempo, que reduz a um esquálido rabisco o que em outros tempos havia sido o “Clássico dos Milhões”, estenda-se também às cabines do rádio. Mas não interessa. O impacto das divagações reflexivas começa a se impor. E não demora a perder o interesse pela partida, que vai se arrastando, automática. Agora o que importa são os jargões, as expressões, o ritmo ainda frenético das ondas do rádio.

É FALTA… PAROU, PAROU, PAROU!”

Agora é um garoto imberbe nos seus sete, oito anos. E não é fácil viver o Flamengo a tantos quilômetros do Rio de Janeiro. Jogos pela televisão são raros, somente em momentos decisivos ou amistosos que reúnam algum atrativo. A primeira vez que vê o Flamengo é na final do Tri, contra o Vasco. Aquelas camisas rubro-negras, de uma beleza ofuscante… O Flamengo ganha de 3-2, num jogo dramático, é campeão. O menino crava e grava nas retinas o momento do primeiro encontro. Outros demorarão.

Tempos de garimpar qualquer informação. O rádio da casa é monopólio de um zeloso e ciumento pai, que nem sempre está em casa, atuando em plantões. Donde, qualquer coisa serve. É o caso da chamada para a Loteria Esportiva no início do Fantástico, onde os resultados do domingo são anunciados. Várias e várias vezes é ali que descobre se o Flamengo ganhou ou perdeu. Se ganhou (como quase sempre acontece), anima de ficar acordado para ver os gols mais tarde. Do contrário, vai dormir por ali mesmo, algo frustrado.

Diferente é quando o pai está em casa e se aboleta na poltrona, rádio em punho, ouvindo uma transmissão de voz possante, rochosa, que troa uma mal, ou nem disfarçada, paixão de ser rubro-negro. Que narra ataques flamengos em galope, como uma cavalaria de herois prontos a acossar e a se apoderar do território inimigo. São tempos áureos, embalados a Jorge Cury. Ou a Waldir Amaral, Edson Mauro, Doalcey Camargo.

ANOOOTEM… TEEEEEMPO E PLACAAAAAR NO MARACAAAAA”

O jogo segue arrastado em um rançoso 0-0. A modorra por vezes é quebrada quando o Canhota provoca risos ao impingir notas “zero” ou “dois” a alguma jogada ou jogador. O fraco desempenho individual e coletivo do Flamengo continua estimulando a insólita viagem ao passado. Agora já é um rapaz e já possui seu próprio rádio. Não mais depende dos horários do pai. Entretanto, não demora a descobrir que ouvir o Flamengo não é uma atividade tão simples. É que o sinal da rádio carioca só eclode ao cair da tarde, por volta das 5 e meia, 6. Como as partidas iniciam às 5, invariavelmente a transmissão “inicia” com os jogos já em andamento, o que provoca uma expectativa torturante em dias de grandes clássicos. O paliativo de tentar notícias de eventuais gols via rádios locais não ajuda a apaziguar os ânimos, muitas vezes atiçando ainda mais o nervosismo. Quando, aos poucos, em meio aos estridentes chiados metálicos, um fiapo de voz começa a se fazer audível, o jovem sente-se esvair pelas entranhas, obcecado por notícias.

Nessa época, já se terá calado o possante Jorge Cury, vitimado por um acidente de carro. É o tempo de Luiz Penido, Luiz Carlos Silva, Antonio Luís, Maurício Menezes e da estrela maior, o Garotinho José Carlos Araújo, que se destaca pelo ritmo alucinante que imprime ao microfone, recusando-se a conceder ao ouvinte um mísero momento de pausa. Os bem-humorados bordões e a postura de Araújo (que é tricolor, mas sabe como poucos estimular o torcedor para quem está narrando) transformam o jogo de futebol em um agradável monólogo, que amplifica vitórias e mitiga (na medida do possível) reveses.

APITE COMIGO GALERA...”

O início, ainda tímido, é em 1987, quando a TV começa a descobrir as possibilidades de um mercado adormecido. O Flamengo, com o tempo, irá se tornar cada vez mais frequente nas telas do país, criando a cultura e o desejo de ser visto, não ouvido. Mas esse processo levará um cacho de anos, sendo, portanto, ainda possível e mesmo necessário se aprofundar no rádio. A mera transmissão das partidas não mais é suficiente, e resenhas como o “Bola de Fogo”, apresentado por Kléber Leite, que comanda cronistas livres para baterem boca exercendo suas paixões clubísticas, começam a se tornar programas rotineiros. Como o Panorama Esportivo, que no tardar da noite traz todo o apanhado do dia dos grandes do Rio de Janeiro. É o auge da interação com o rádio, e o início, ainda insuspeitado, de seu declínio.

VOCÊ AÍ NO VOLANTE, OBRIGADO PELA CARONA QUE ME DÁ, COM A … AO SEU LADO”

O jogo vai chegando ao final. O Flamengo melhora e começa a empurrar o adversário para seu campo. As oportunidades, antes esparsas, começam a pipocar e clarear. Súbito, um gol, estranhamente anulado pela arbitragem. Impossível deixar de recordar Mário Vianna, “com dois enes”, o precursor do comentarista de arbitragem, que, ao pousar os olhos no lance, certamente troaria enfezado e empostado ao microfone: “EEEEEERRRRROU!”. Pouco depois, Vinícius Jr recebe passe açucarado e está para marcar, tenta um toque macio buscando um lance cujo desfecho certamente faria as latinhas ribombarem gritos como GOLAÇO,AÇO,AÇO, ou GOLÃO, GOLÃO, GOLÃO. Mas a chance é perdida, e com ela qualquer perspectiva de reversão de um empate anunciado.

Antes do apito final, ainda se permite uma última digressão. Consolidada a TV aberta e sua cobertura hegemônica no Brasileiro, o rádio ainda se refugia alguns anos nos Campeonatos Estaduais. Mas o surgimento da TV fechada e sua principal variante, o pay-per-view, desfere o mortal e definitivo golpe. Agora, o Flamengo pela televisão deixa de ser um luxo. Não mais é um programa aguardado por semanas. O jogo do Flamengo vira um programa esportivo periódico, exibido uma ou duas vezes por semana. A mais importante das atrações, mas ainda assim um programa de TV.
O árbitro se encaminha para o centro do campo e encerra a partida. Flamengo e Vasco, para surpresa de ninguém, descem ao vestiário sem propriamente lamentar um 0-0 tão desimportante quanto esperado.

Permite-se ainda um muxoxo, uma ou outra observação mal-humorada. E desliga a TV. Pega o celular, cala a janela do rádio. Confere as mensagens.

E vai cuidar da vida.