Dia de decisão.
O
Maracanã está lotado, engalanado. 70 mil almas se acomodam sobre o
velho gigante de cimento, formando um vibrante mosaico em negro e
rubro, pulsante, fervilhante, rico, em que braços, bandeiras, faixas
e corpos fervem em sincronizada desarmonia, formando um só organismo
vivo. O sol, escaldante, refulge sobre a massa de gente,
revestindo-lhe de um ofuscante brilho escarlate, que cintila diante
das retinas do espectador embevecido, que se vê entorpecidamente
contemplando uma feérica aquarela de sensações. O cenário é
idílico, festivo.
Menos
para um.
Começa
com o anúncio dos times. O Flamengo, mandante, tem seus heróis
cantados, aplaudidos, festejados. O goleiro do adversário é
recebido com vaias protocolares, nada de excepcional. No entanto, eis
que o nome “dele” é proclamado, fazendo irromper um troar
uníssono, que rebenta harmônico, compassado, numa estocada capaz de
ferir de morte o mais indiferente dos cínicos.
“É
ESSE, É ESSE!”

Começa o
jogo. Como em toda final, os primeiros minutos são estudados e
truncados, muito contato físico, correria, disciplina tática, força
e raras chances de gol. A defesa troca passes, a bola chega ao Camisa
4. Sua primeira participação no jogo. O estádio urra de novo,
inflamável.
“É
ESSE, É ESSE!”
Seu
pecado vem de alguns meses atrás quando, numa voadora ensandecida,
destroçou as duas pernas do ídolo maior flamengo. Imolou o santo
maior do altar de uma religião. Tirou de uma nação seu prazer
maior. Transformou em trevas o que era, até então, amor e alegria.
Agora irá pagar.
O Camisa
4 recebe, tenta um passe. Erra. Vai cobrir um companheiro, dá um
bote num flamengo. Erra. Prepara-se para um desarme. Erra. Vai fazer
um lançamento. Erra. E erra e erra. Erra repetida e
sistematicamente. A cada erro, a cada tropicão, está lá a
multidão, enfurecida, inexorável.
“É
ESSE, É ESSE!”

Saída de
bola. O camisa 4 tenta acionar o meio, erra. Na sequência, uma
fulminante troca de passes, bola na área, gol. O Flamengo abre o
placar.

“É
ESSE, É ESSE!”
Está
visivelmente transtornado. A grama, afiada, perfura-lhe os pés, como
facas. A camisa lhe sufoca, verga-lhe as costas. O suor mal escorre,
denso, quente, pesado. O ar fica-lhe preso na garganta, apertando-lhe
em torniquete. Os olhos ardem, incapazes de encontrar qualquer
rabisco de refúgio. Nada naquele inferno se apresenta remotamente
receptivo. Quer gritar, fugir, correr, sumir, acabar com aquele
tormento. Tenta se acostumar, ambientar-se, mas os gritos parece que
aumentam, roam em um rumoroso e insuportável eco, que vai
consumindo, corroendo, estraçalhando suas vísceras.
“É
ESSE, É ESSE!”
O
primeiro tempo vai chegando ao seu final. O Flamengo segue mantendo a
vantagem, continua pressionando, quase amplia. Mas o último apito é
dado com o placar estacionado na contagem mínima. É o intervalo.
Pausa.
Mas passa rápido.
Pode ter
sido o esporro, pode ter sido o breve descanso, pode ter sido algum
traço de brio, o Camisa 4 retorna mais ativo, menos letárgico,
jogando algo parecido com seu futebol usual. Mas isso se esvai com
desconcertante fugacidade. Não dura 5 minutos e voltam os passes
errados, as caneladas, a perna presa. Combativa e nunca desatenta, a
torcida retoma seu mantra, abandonando os pulmões a cada berro,
incapaz de exercitar a clemência.
“É
ESSE, É ESSE!”
Seu time
agora tenta pressionar, mas também parece sentir o impacto do
cenário. Seus companheiros estão nervosos, reclamam da arbitragem,
erram jogadas fáceis. O Camisa 4, já embriagado e farto, começa a
distribuir pontapés, a entrar mais forte. Parece agora querer
desafiar 70 mil almas, como se tirasse as vestes e esmurrasse o
peito, valente. Acerta uma entrada desclassificante no ponta-esquerda
do Flamengo. O árbitro, de conversa, fala três ou quatro palavrões
mas não dá o cartão. O Maracanã vai abaixo, possesso, na insana
fúria dos que querem se fartar dos despojos de seu vilão. Exige
retaliação. Clama por morte.
“É
ESSE, É ESSE!”
Os
jogadores do Flamengo, embora ainda magoados e irritados com a
ausência de seu líder, até então têm evitado recorrer à
porrada. Sabem que, diante do objetivo maior, diante da busca pela
taça, precisam jogar bola e esquecer artifícios extracampo. No
entanto, não alisam. Jamais vão de pé macio, sempre deixam a podre
pro 4. Depois da voadora no ponta-esquerda, um flamengo dá em seu
tornozelo. Põe dedo na cara. Na próxima, quebro. E o Maracanã parece gritar gol.
Em outro momento,
seria só mais uma intimidação normal de jogo. Mas não hoje. Hoje
qualquer hostilidade abala, sufoca. E o Camisa 4 some. De vez. Vai
fazer número ali na lateral, tocar bola pro lado.

“É
ESSE, É ESSE!”
O jogo
chega ao fim. O Flamengo vence por 1-0 e é campeão. Finalmente a
torcida deixa-lhe em paz e vai cantar, feliz, sua taça. O Camisa 4,
após sua pior atuação no ano, vai descendo as escadas, ganhando o
rumo do vestiário. Anda devagar, melancólico, olhar distante, ainda
tentando absorver o que acaba de presenciar. Liberta-se
momentaneamente dos sufocantes grilhões que lhe asfixiaram o ímpeto,
mas sabe que, dali pra frente, nunca mais será apenas um esforçado
e razoável defensor.
A partir
de agora, será um maldito. Para todo o sempre.