quarta-feira, 8 de junho de 2016

Alfarrábios do Melo

“DOSIS SOLA FACIT VENENUM”

Saudações flamengas a todos,

Os péssimos resultados colhidos nos últimos 18 meses, e as circunstâncias que os ensejaram, motivaram uma miríade de discussões acerca dos mais distintos sintomas de falta de competitividade do elenco como um todo. Identificou-se e debateu-se intensamente a carência de “alma” rubro-negra no jeito de jogar do time, o que gerou a produção de variados textos e conversas, com interessante riqueza de ponderações e argumentos, alinhados ou não ao diagnóstico. Uma vez que o tema soa exaurido (até porque a equipe tem esboçado um rascunho de entrega e concentração nas partidas mais recentes), pergunta-se:

E quando a instituição se nega a vencer?

Flamengo e Palmeiras, dois dos elencos mais caros do futebol brasileiro (e, portanto, em tese adversários DIRETOS pelo título ou vaga na Libertadores), próximos na tabela de classificação, fariam aquele que se convencionou denominar, pelo jargão convencional, “jogo de seis pontos”. O Flamengo, com classificação melhor, detendo o mando de campo e em ascensão anímica, decorrente de dois bons resultados recentes, reunia uma série de elementos positivos, capazes de transformar essa partida em um interessante marco inicial para um salto rumo ao protagonismo ansiado há vários cachos de anos.

Entretanto, o time do Palmeiras, treinado por um dos profissionais mais respeitados e qualificados do país (ao menos em termos táticos), composto por alguns jogadores de qualidade técnica interessante, com uma equipe trabalhada há algum tempo, e portanto um oponente qualificado, seria um adversário duro, árduo, especialmente diante de um Flamengo ainda buscando encontrar seu caminho, explorar o potencial de um elenco ainda desajustado.

Era o tipo de ocasião para o torcedor jogar junto.

Como em 2005, quando Jônatas, China, Rodrigo Arroz e Da Silva derrotaram o estrelado Santos de Robinho, Deivid e Ricardinho. Ou emulando o ano anterior, em que Douglas Silva, Gauchinho, Whelliton e Dimba venceram o favoritíssimo São Paulo de Lugano, Cicinho, César Sampaio e Luís Fabiano em Volta Redonda. Ou 2012, em que o Engenhão viu um combalido e manco Flamengo passar por cima de Ronaldinho Gaúcho. Ou 1982, que, com dez jogadores e atuando muito mal, o rubro-negro virou de forma espetacular um jogo que perdia para um Atlético-MG, em poucos minutos, ao som do samba do Império (“bumbum paticumbum prugurundum”). Ou em outras e outras e mais outras ocasiões em que, com um time inferior ou em situação de inferioridade, a vitória foi perseguida e sorriu para o rubro-negro.

Porque a torcida deu a mão. E ajudou a inflamar o time. Que ganhou na marra.

Esse é o ponto. O Flamengo erige-se gigantesco, vencedor, dotado de uma força descomunal, quando traz sua torcida para o campo de jogo. Quando se dão as mãos. Quando se cria o amálgama que o transfunde com sua gente, formando uma e uma só entidade, um só espírito, que joga, pulsa, ferve, briga. E vence. Não importa se no Maracanã, na Ilha do Governador, na Gávea ou na Rua Paissandu.

Decerto, esse fenômeno, que fez da torcida do Flamengo algo referencial, deveria ser estimulado, à guisa de elemento intrínseco à grandeza do clube, norteador inclusive de sua identidade.

Tornemos ao domingo. Debrucemo-nos sobre o acontecido:

Flamengo e Palmeiras, dois adversários diretos, enfrentaram-se no Estádio Mané Garrincha, em Brasília-DF, num jogo que daria ao vencedor uma das vagas no tal G4. Eis que o Flamengo, cuja equipe encontra-se, pelas circunstâncias já mencionadas, em um patamar inferior, ABRE MÃO de uma vantagem competitiva importante, ao CONCEDER a área mista do estádio ao acesso de torcedores de qualquer clube. O Palmeiras não atuava na cidade há muitos anos, o que evidentemente criou um contexto de demanda reprimida, com potencial de captação de vários torcedores do clube.

O Flamengo SABIA desses detalhes. E não contente em aceder, ESTIMULOU a enchente verde, pelo que se depreende das vozes de seus dirigentes e pela prática já tornada recorrente em seu histórico recente, mesmo em jogos no Maracanã.

O estádio recebeu cerca de 55 mil torcedores. Paulistas mais renitentes falam em meio a meio. A diretoria do Flamengo menciona 30% de palmeirenses. Seja com quem esteja a verdade, TRINTA por cento representam DEZESSETE mil torcedores adversários ocupando assentos que poderiam E DEVERIAM ter outra destinação.

O Flamengo entrou em campo VAIADO, segundo relatos de cronistas que cobriam a partida. Um time em formação, que precisava se afirmar, começando a demonstrar sinais de espírito de luta (e, portanto, capacidade de atrair o torcedor), que poderia ser pego no colo por uma torcida ávida de vitórias, subiu no gramado sob APUPOS do inimigo. Isso naquela que deveria ser sua casa.

O desfecho foi previsível. Atuando inteiramente à vontade, o adversário apenas em poucos momentos perdeu o controle do jogo, e chegou a uma merecida e justa vitória. Naturalmente, não foi o estádio rachado que decidiu o jogo para o lado verde. Mas a falta da torcida flamenga certamente tirou da partida um elemento que poderia ser um diferencial ao nosso favor.

Daí, torno à pergunta do início do texto: O Flamengo quer vencer?

Não precisa ser um PhD, MBA etc em Gestão de Negócios, ostentar sofisticadas experiências em capacitação profissional, ter estudado em Harvard ou na Sorbonne. Basta ter acesso a qualquer um desses livrinhos de auto-ajuda que se vende em bancas de jornal, desses que ensinam a “encontrar o caminho na vida”, ou a “ficar rico em 15 passos”. Ou, reunindo um mínimo de perspicácia, nem isso. Pois um átimo de bom senso indica que, quando algo não é prioritário, tudo, absolutamente TUDO, se revestirá em um óbice intransponível, um obstáculo inarredável, um subterfúgio construído com palavras bonitas. Tudo será assunto para NÃO fazer.

Donde, futebol, hoje, NÃO é prioridade para o Flamengo. O clube NÃO quer vencer. Não pensa em pagar o preço.

Então entramos na principal competição nacional sem zagueiros, porque tudo é muito caro. Estamos há DOIS anos sem uma alternativa razoável para a falta do Maracanã/Engenhão porque o clube é “perseguido” politicamente. Anunciamos uma reformulação “profunda” no Departamento de Futebol e, decorridos VINTE dias da humilhante eliminação da Copa do Brasil a única mudança é a saída do treinador adoentado, cujo sucessor, após dois interinatos, ainda é desconhecido. Perdemos quase UM MÊS para contratar o tal Gerente de Campo, porque... sabe-se lá porque.

Tudo é a questão da prioridade.

O célebre cientista Paracelsus, lá nos idos do Século XVI, cunhou uma frase lapidar: “O que diferencia o remédio do veneno é a dose.”

Devolver a viabilidade ao Flamengo foi o foco, o objetivo, a missão e a hercúlea tarefa à qual se envolveu todo o clube no período 2013-15. Em prol da transformação do rubro-negro em uma entidade de referência e capaz de assumir, em termos administrativos, seu papel de potência, desfrutou-se de inédita paciência e certa serenidade para assimilar alguns reveses sobremaneira incômodos. Passados três anos há um clube que repousa em um patamar dramaticamente distinto ao da alegada “terra arrasada” de 2012. No entanto, aparentemente certas premissas draconianas ainda insistem em seguir como tônica inegociável e indissociável da atual linha administrativa adotada.

Nosso futebol é farto de exemplos de reestruturação semelhantes que começaram a render frutos em muito menos tempo. Um Grêmio quebrado saiu da Série B em 2005 para uma Final de Libertadores apenas DOIS anos depois. O Corinthians foi rebaixado e em DOIS anos já ganhava Copa do Brasil, ponto de partida para voos maiores. O próprio Flamengo montou um dos melhores times do país TRÊS anos após uma das piores crises de sua história (“acabou o dinheiro”).

Em todas essas histórias citadas, havia o genuíno senso de recuperação a curto prazo, de retomada rápida da grandeza perdida.

Não vemos demonstração dessa sede, dessa ânsia, nos tempos atuais.

Assim, não chegou zagueiro porque “dá pra levar com o que tem” sem comprometer o cashflow. Não importa que “sumidades” como César Martins e Wallace empilhem lambanças jogo sim, jogo também, o que interessa é equacionar a relação dívida/faturamento (aliás, se o jogador for jovem, promissor, barato ou de graça e tiver valor de mercado, vira alvo preferencial, mesmo que mal chute uma bola). Isso de gerente que conheça de campo e de bola não está alinhado à filosofia do clube, que quer alguém que saiba correlacionar o teor de nitratos no suor do atleta com a tendência estatística indicada pela umidade relativa do ar. Atuar no Rio está fora de questão, porque o aporte será insuficiente para equilibrar o budget.

Enquanto isso, o Flamengo abre as portas, estende tapete, arreganha cadeiras e mais cadeiras para os visitantes, toca hino, tira foto, enfim, cria um lindo, edificante e romântico ambiente destinado a fazer dos jogos em SUA CASA uma experiência inesquecível para o torcedor e o jogador paulista. Naturalmente, o time apanha, o torcedor apanha, a instituição apanha. Apanha dentro de campo, fora dele e no tribunal. Mas o que importa é que a meta de arrecadação foi alcançada e o clube foi elogiado na tevê, olha que legal. Somos pioneiros.

Talvez seja o caso de, doravante, propor mandar o jogo contra o Corinthians no Itaquerão. Lá lota e dá dinheiro. A torcida deles enche o estádio e a gente fica com a renda. Vanguarda.

O time? Não interessa. Estão sendo pagos em dia e há um Executivo tomando conta. Trocar dá trabalho, deixa ele lá. E vai ficando, ficando. Resultado? Irrelevante, nas palavras do próprio. E, daqui a uns dez jogos, quando pipocar alguma derrota mais forte, troca-se de novo o treinador. E vamos seguindo a nossa marcha rumo a mais um honroso oitavo, nono lugar enquanto batemos palmas para que os de sempre sigam erguendo taças, enquanto a nós resta apenas praguejar e troar contra os favorecimentos e os invariáveis “erros” de arbitragem de praxe. Oras, ganhar assim é feio.

É feio. O Flamengo “não pode ter práticas ruins só porque outros praticam”.

Talvez ganhar jogos e campeonatos, então, seja uma prática ruim.

Encerra-se aqui somente com uma ponderação: houve uma eleição. Dois grupos, de mesma origem e pensamento semelhante, digladiaram-se com uma mensagem, no fundo, bem parecida. Falou-se ostensivamente em “recuperar o futebol”, “dar atenção ao futebol”, “futebol vai ser prioridade”.

Futebol, senhores, não deve ser concessão de “prioridade” do Flamengo. Futebol é sua ALMA.

Entendam isso, ou perecerão.

Boa semana a todos,