domingo, 10 de janeiro de 2016

Alfarrábios do Melo

Sou catarinense.

Filho de mãe catarinense, neto de candango, tenra infância no Rio, radicado em Salvador.

Pai paraibano. Do Sertão.

Patos. Fica bem no meio da Paraíba, a meio caminho entre Pernambuco e o Rio Grande do Norte. Terceira ou quarta maior cidade do Estado, com seus 100 mil habitantes. É um polo comercial intenso, mas há algumas indústrias funcionando, e a agricultura, especialmente do algodão e do feijão, possui certa expressão.

E é quente. Muito quente. Infernalmente quente.

De Salvador pra lá é coisa de seus 1000 km, pouco mais. De carro, saindo com o sol acordando, chega-se ainda de dia.

Foi o que fiz quando fui conhecer a terra natal de meu pai, por ele ciceroneado.

A estrada chuvosa, cariada em alguns pontos, retardou-nos o percurso, fazendo com que chegássemos à cidade já no alvorecer de uma turva treva. Posto de gasolina, alimentamos o veículo e tragamos um café, algo exangues da dura jornada. Mas, antes do cansaço, a curiosidade é o que nos impele.

“Amigo, sabe quanto foi o jogo?”
“Foi empate, 2 a 2. Gol no último minuto!”
“Foi mesmo? Valeu, obrigado!”

E assim, sem maior formalidade, descobrimos que o time da casa, o Flamengo, empatou com o Botafogo naquela tarde, enquanto viajávamos.

O dia irrompe cintilante, faisca em brasa na janela. Banho, café, jornal. Página de esportes. A última folha, a área nobre da cobertura, está dedicada ao “jogão” disputado no Engenhão na véspera, mostrando detalhes, narrando os principais lances, gols e até exibindo as notas dos jogadores. Na página anterior, a cobertura do campeonato estadual local recebe maior destaque, com um pequeno espaço destinado aos torneios de outros estados e países.

Ganhamos a rua. Um motoboy sem capacete zumbe por perto, o colete fluorescente mal cobrindo o pano negro e vermelho que lhe cobre o tronco. Mais adiante o feirante, engalanado com seu trapo esfiapado, que ostenta às costas o número 43, oferece cebolas. O jornaleiro, blusa branca com o CRF à mostra, acena um sorridente bom-dia. O pivete, camiseta do Imperador, ensaia chutar uns pedriscos, à guisa de bola. E assim irmanados em cores surgem o pedestre, o ciclista, o chaveiro, o ambulante, o office-boy...

Visitamos alguns parentes distantes, conhecemos alguns pontos de interesse. Aproxima-se a hora do almoço. O ponto de encontro é a Casa de Material Esportivo, cujo dono é amigo. Dali pro bar, é o que o sol exige. Forma-se a roda. E a conversa. “Andrade está escalando errado”, “Esse Fernando não joga nada”, “Pet tem que ser titular”, “Esse goleiro está falando muita bobagem”, “Love entrou bem nesse time”, tudo é assunto para aquela mesa, que simplesmente disseca tudo o que é relacionado ao Flamengo, dentro da mais cristalina ótica do torcedor.

“Você tinha que ter visto isso aqui há três meses, no dia do hexa. A cidade parou, virou micareta”. Disso eu não tenho a mais remota dúvida, após duas ou três horas de passeio pelo Centro. Não me é inesperada a demonstração de vigor flamengo. É-me inusitada sua amplitude. Patos parece uma cidade temática, tingida em rubro-negro.

Domingo. Dia de clássico no José Cavalcante. As duas forças da cidade irão se bater em partida válida pelo emocionante Paraibão. O estádio recebe bom público, deve ter coisa de suas 3, 4 mil pessoas, a maioria trajada em Flamengo, mas pode-se ver bom número das camisas locais do verde Nacional e do alvirrubro Esporte. Barcelonas e realmadris da vida também se encontram. A atmosfera é bem tranquila e animada, os espectadores riem, contam piadas, zombam da péssima qualidade dos jogadores. Dois nichos de Torcidas Organizadas se alojam nos extremos das arquibancadas, tocam seus bumbos e gritam seus cantos de ordem, sem serem importunadas. É divertido, animado. Come-se pipoca, algodão doce para as crianças (há várias), amendoim. Há cerveja, água.

O jogo é tão ruim que não pode sequer ser levado a sério. O melhorzinho dos 22 é um lateral-esquerdo que de vez em quando tropeça na bola, mas ainda consegue passar e chutar (ele vai fazer até gol, o jogo terminará 1-1). O público ironiza, assobia, vaia, aplaude jocosamente. Uma determinação judicial proíbe que se falem palavrões no estádio. Segundo alguns locais, depois dessa vedação passou-se a xingar mais. Um quase-bêbado chega perto de um policial e grita, “Ô seu puliça, já que eu não posso, o sinhô faça o favô de mandá esse número 5 tomar no...”, arrancando caudalosas risadas do público e do próprio meganha, que sorri cúmplice. Fala-se da vida, do sogro doente, do prefeito que quer fechar a esquina da Rua X, do padre que quer que as moças vão às missas mais bem vestidas, do açude que está perto de secar, do mangangão que foi preso numa operação da PF, enquanto os atletas no gramado teimam em manter uma estéril e áspera discussão com a bola.

Súbito, troa algo. Começa como um rugido, rapidamente se alastra, qual vagalhão. Em um átimo, todo o estádio está reverberando, gritando, estourando em um gostoso grito. É gol.

Gol do Flamengo. Vágner Love, diz o rádio.

* * *

Abre o tweeter. Roda a tela do aparelho, descobre que o Ceará Sporting, Campeão do Nordeste vai receber as faixas do Flamengo, em um Amistoso no Ceará. Embora não torça para nenhum dos dois, sente-se indignado. Magoado. Triste. Revoltado. Onde já se viu? Por que o Flamengo? O que o Flamengo tem que fazer aqui no Nordeste? Aqui não é o lugar deles. Nordeste é para os nordestinos!
E, imbuído de rancor e ódio, começa a expelir tweets furiosos, praguejando ofensas contra flamengos, não-nordestinos, nordestinos “traidores” e tudo o que lhe vem à cabeça. Quer bater, xingar, cuspir, seus dedos chegam a tremer no teclado virtual.

Depois de desabafar, sente-se melhor. Fez a sua parte para defender a honra do Nordeste. O Nordeste para os nordestinos. Quem não gostar, que se mude para o Sul Maravilha.

Agora mais calmo, levanta-se, toma um banho. Vai dar uma volta no shopping. Relaxa ouvindo musiquinhas do Coldplay. Sente fome. Almoça um Mc alguma coisa e um milk-shake de chocolate. O telefone toca. É a namorada.

“Amor, vamos ao cinema? Quero ver Star Wars.”
“Bora, mas tem que ser na primeira sessão. Hoje tem jogo do Real Madrid na Champions”.
“Tudo bem. Vou levar Zezinho, ele tá doido pra assistir”
“Sussa. Tô passando aí agora.”

O rapaz vai buscar a namorada e o sobrinho. O garoto aparece de bermuda e uma camisa de futebol.

Do Bayern Munique.