domingo, 8 de junho de 2014

Alfarrábios do Melo


Barrado.

A decisão sai assim crua, seca, sem margem a questionamentos.

“Está barrado. Vai ter que esperar outra oportunidade. Em Salvador, o time será outro.”

Resignado, o craque vai se dirigindo ao vestiário após o treino, enquanto organiza em sua cabeça o desenrolar dos acontecimentos que levaram o treinador àquela atitude forte, extrema.

Há vários meses, talvez anos, o Flamengo vive um momento difícil. Começa a ser tragado por uma realidade que cobra do clube boas práticas de gestão, há muito abandonadas no clube. A estrutura que catapultou o clube ao protagonismo internacional, criada há algum tempo, já dá sinais de saturação e desgaste. E o resultado se reflete dentro do campo, com participações pífias em torneios nacionais e regionais.

E o processo de crise tem se intensificado nos últimos meses. Correntes políticas se engalfinham a facas e porretes. Nem mesmo a própria comissão técnica do futebol se entende, rachada entre os que preferem a efetivação de medalhões, e até a contratação de mais estrelas, e os que defendem a efetivação dos jogadores da base, que nitidamente são de boa qualidade. O processo leva à formação de grupos, panelas, patotas de jogadores que não se toleram entre si, boicotes visíveis dentro do campo, o pior ambiente possível. Como resultado, o time faz o pior Estadual dos últimos 15 anos, e não há perspectiva de melhora a curto prazo.

O craque, que sempre soube se manter à margem desse tipo de guerrinha, vai se lembrando de tudo isso, enquanto ganha o rumo do chuveiro. Normalmente falante e sorridente, está sério e soturno. A rigor, anda farto.

O fracasso no Estadual traz consequências. Cabeças rolam. O treinador, boicotado pela ala dos “jovens”, é o primeiro a rodar. Todo pimpão, o treinador dos juniores (apontado como o principal fator de desestabilização do elenco, por querer impor a escalação de seus pupilos na marra) se auto-anuncia como o substituto, já traçando planos para o time profissional. Sonho que dura 24 horas, quando é demitido junto com o diretor que o respaldava. Vem um profissional de fora, um “manager” boquirroto que, ignorando completamente a realidade financeira e histórica do clube, prega que a solução é “vender os 11 e trazer 11”. 

E, fora os nomes que começam a ir e vir em blocos, pouca evolução se percebe dentro de campo. As derrotas continuam ali, vivas, frequentes.

Alguém se aproxima do craque, é um dirigente. “Soube o que aconteceu. Olha, a gente pode fazer o seguinte, arrumamos uma lesão, damos no jornal que você sentiu uma contratura e pronto. O treinador topa. Acho que nesse arranjo a gente lhe preserva.”

“Não. Eu estou barrado, não é isso? Não tenho que esconder nada”.

É evidente que o craque está aborrecido e não gostou da decisão. Ninguém gosta de perder a vaga no time. Mas o que mais o incomoda é que, poucas semanas antes, o experiente ídolo já havia decidido se aposentar. Não renovou o contrato recentemente encerrado. Desfrutou sua família, os jogos da Copa, a tranquilidade de quem sabe que construiu uma história bonita e sólida. No entanto, a própria diretoria do Flamengo, alguns torcedores, amigos e até jogadores se revezaram numa romaria praticamente diária, buscando demovê-lo da decisão de encerrar a carreira. Com efeito, seria um desperdício deixar de apreciar por mais um tempo o seu futebol de alto nível técnico e competitividade, tão em falta nesses tempos áridos. E o argumento definitivo veio de um diretor, que acenou com a perspectiva do craque, com o seu peso e sua força, aglutinar em torno de si uma liderança que seria capaz de pacificar e acalmar as diversas e estridentes vozes que não vinham deixando o elenco sair do lugar.

E agora, a barração.

Fora do time, preterido por um volante caneludo, desses que correm muito, marcam muito, suam muito mas reúnem imensa dificuldade de lidar com a bola. A bola, ora a bola, mero detalhe. O que importa é a força, a “ocupação de espaços”.

De nada adiantam os argumentos do craque. Em sua visão, renderá muito melhor atuando como um meia, só que mais recuado. Tem a noção de que não consegue mais, por óbvio, acompanhar o ritmo de garotos com pouco mais da metade de sua idade. No entanto, sabe que sua visão aguda de jogo e habilidade muito acima da média são fatores capazes de desequilibrar partidas. Atuando recuado, é capaz de rodar bolas, fazer lançamentos agudos, ditar o ritmo das partidas. Tal como em sua carreira na Europa, onde seu futebol foi elogiado e aclamado. Mas no Brasil, a cupidez tática vigente divide o meio-campo em meias ou volantes. Sem meio-termo, sem variações. Outro dia, revelou ter atuado de líbero na Itália. Pronto, o meteram de zagueiro. São coisas que desgastam, desanimam.

Mas o veterano craque não cai na armadilha. Sabe que é uma referência, um nome ouvido, respeitado. Um espelho, cujo comportamento e reações certamente serão replicados pelos jovens ora em formação, ou mesmo por outros jogadores já formados. Queira ou não, é uma liderança, e tem a plena noção de que o papel de líder traz enormes responsabilidades. Ao menos ao líder positivo.

O craque rechaça a ideia de simular contusão. Aceita a reserva sem reclamar. Sem um ai. Vê com naturalidade o treinador bater no peito e bradar macheza aos microfones. Não confabula, não conspira, não geme. Simplesmente acata. Aos jornais, os protocolares “vou buscar reconquistar meu espaço”, “foi opção do treinador, respeito”, entre outras declarações inodoras.

E assim se faz.

A partida em Salvador é difícil, a primeira de um mata-mata. O adversário vem motivado, acaba de eliminar o campeão carioca, e já tem a base da equipe que a seguir será semifinalista do Brasileiro. É tido como o favorito. O estádio recebe um bom público, embora pudesse encher mais. O Flamengo começa bem, abre o placar, mas a seguir cede o empate. Na volta do intervalo, o adversário passa a controlar o jogo, dominar, pressionar.

É quando o craque é chamado. “Vai você.”

E, tranquilamente, o craque aquece e entra. Com a aura que só os jogadores de primeira linha possuem, em poucos minutos muda completamente o panorama da partida. Transforma uma derrota provável em um empate lamentado, embora o 1-1, para fins de regulamento, não seja tão ruim.

No entanto, independente do placar, chama a atenção pela beleza e plasticidade do seu jogo. Não comete um erro a olho nu. Roda, gira, canta, torna-se o dono da partida. De repente, é como se pairasse acima dos outros 21 coadjuvantes, que se limitam a contemplar a forma como põe no bolso a difícil e traiçoeira arte de jogar futebol. Dengosa e carente, a bola se aninha a seus pés e lhe declara amor. E, obediente, faz o que o seu mestre manda. Aceita fazer parte do verdadeiro recital que se tornam aqueles vinte derradeiros minutos de jogo na Fonte Nova. O craque, como uma criança, vai se divertindo, comandando, orientando, brincando. Regendo.

Qual um genuíno maestro.

* * *

Durou apenas 65 minutos a barração de Júnior, que recuperou a posição na partida seguinte, o jogo de volta contra o Bahia, pela Copa do Brasil-90, vencido pelo Flamengo por 1-0. Júnior voltou a ser titular e referência da equipe. Além disso, com a profunda reformulação levada a termo no final do ano, recebeu da nova diretoria a função de comandar e liderar o grupo de garotos que, com alguns reforços, passaria a representar o Flamengo dali em diante. Com notável competência, conduziu o grupo à conquista do Estadual-91 e do penta Brasileiro em 1992.





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Os Alfarrábios entrarão em recesso no período da Copa do Mundo, retornando em 20 de julho. Espero que, até lá, tenhamos um Flamengo saneado, renovado e reforçado.