sábado, 7 de junho de 2014

O Primeiro Tricampeonato






Irmãos flamengos,

estamos em época de muita especulação. Como não aprecio muito esse disse-que-disse de bastidores, aproveito a oportunidade para prestar uma sincera homenagem ao primeiro Tricampeonato do futebol profissional do Clube de Regatas do Flamengo, conquista que completa setenta anos em 2014.

O texto é de Mário Filho. Longo, mas que compensa, e muito, pela profundidade, e pela fidelidade do retrato traçado em suas linhas a respeito do que foi aquela decisão, disputada no antigo estádio da Gávea, em 29 de outubro de 1944, com mais de quarenta mil presentes, e vencida pelo Flamengo por 1x0, gol de Agustín Valido, aos 41 minutos do segundo tempo.

Deve-se lembrar que o time do Flamengo teve sérios problemas antes da decisão. Domingos da Guia já não integrava o elenco, pois fora vendido; Modesto Bria, vitimado por uma furunculose generalizada, jogaria no sacrifício; Valido, que inclusive havia parado de jogar há um ano e meio, e fora chamado apenas para disputar os jogos finais, estava com 39º de febre; Pirilo também encontrava-se gravemente doente; Zizinho idem.

Além disso, o adversário, Vasco da Gama, vivia momento muito melhor, consolidando o time que viria a ser cognominado “expresso da vitória”, e que formaria a base com a qual a seleção brasileira se sagraria vice-campeã mundial em 1950.

Como se vê, as circunstâncias eram bastante adversas.

Podemos perceber da leitura que o Flamengo já era uma alucinação naqueles anos de 1944. Imaginemos o que eram o Rio de janeiro e o Brasil em 1944. Era outra cidade; era outro país.

O post será composto por passagens que selecionei para os amigos.

Sem mais preâmbulos, revivamos a história através dos olhos perscrutantes de Mário Filho.

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A Caminho da Gávea

“Acordei, eram nove horas. Fui tomar café e, depois do café, cheguei à janela. Lá vinha um bonde Gávea, arrastando-se. Gente pendurada nos balaustres, como cachos de bananas. Devia surpreender-me mas não me surpreendi. Aquilo, pelo contrário, pareceu-me a coisa mais natural do mundo.

O povo das arquibancadas tinha de amanhecer na Gávea, para poder arranjar lugar. Não se tratava só de comprar uma arquibancada, de entrar. O mais importante era tomar os pontos estratégicos do campo. Daí a necessidade de chegar cedo e em massa. Um torcedor, hoje, se multiplicava. Não se sentia um indivíduo: sentia-se multidão e era arrastado por ela. A multidão atrai, como um ímã. É um chamado irresistível. 

Os que estão pendurados nos bondes vieram de lugares diferentes. Não se conhecem e são mais que irmãos.

Eu me senti envolvido pelo ambiente do match, fiquei com pressa. E era cedo, muito cedo ainda. 

Havia uma cadeira, na tribuna de honra do Flamengo, com o meu nome. Ninguém poderia sentar-se na cadeira, a não ser pata tomar conta. Quando eu chegasse, encontraria o lugar: não havia perigo de ficar de fora. O que me apressava, porém, não era o perigo de perder o lugar, era outra coisa. 

Eu queria ver a Gávea, o mundo de gente na praça, as bandeiras desfraldadas ao vento, queria ouvir as buzinas dos carros, os gritos sem nem para que, horas antes do jogo, de Flamengo ou de Vasco.

No Jardim Botânico, os bondes lembravam vagões e mais vagões de trem, engatados. Os automóveis iam a passo. E eu me excitava, querendo estar no campo logo de uma vez. Saltei na praça (Santos Dumont, na Gávea, distante cerca de um quilômetro da sede do Flamengo). 

Todo mundo corria. Eu não tinha necessidade de correr. Aquela gente corria porque não tinha um lugar marcado; a minha cadeira estava à minha espera. Apressei o passo por nada, devia ser porque todos corriam. Quando dei por mim estava correndo. Cheguei cansado ao portão do Flamengo.

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A Gávea

A torcida do Flamengo, a que era chefiada pelo Jaime de Carvalho (fundador da Charanga do Flamengo), tomara conta da arquibancada da lagoa. Jaime de Carvalho desfraldara uma bandeira do Flamengo, grande, nova, com as listras pretas bem pretas, com as listras vermelhas sangrando, num mastro de ripas. 

Não era a única bandeira do Flamengo do lado de lá. Havia outra, mais velha, quase desbotada, uma bandeira que tinha tremulado muitas vezes, em outras tardes. De onde eu estava não podia ler os cartazes de pano, esticados. Um deles tinha de ser o “Avante, Flamengo”. 

E eu julguei distinguir as letras do “Avante Flamengo”, o grito de guerra de Jaime de Carvalho.

José Lins do Rêgo me contou que estava na Gávea desde as oito e meia da manhã. Achei até um pouco tarde. José Lins do Rêgo, aliás, disse oito e meia como quem diz duas horas da tarde. Quando ele chegou, a praça (Nossa Senhora Auxiliadora, defronte à sede do Flamengo) já estava cheia. Havia uma fila que nascia no portão das arquibancadas e fazia uma porção de voltas, para envolver o Hospital Miguel Couto.

José Lins do Rêgo foi para o dormitório da garagem. Newton Paes Barreto (médico do Flamengo) estava examinando Pirilo, que fazia caretas de dor. De um lado Pirilo, de outro lado, Valido. ‘Valido está com febre’? – perguntou José Lins do Rêgo. ‘Trinta e nove graus’ – respondeu Newton Paes Barreto. José Lins do Rêgo engoliu fel. O Pirilo de cama, o Valido com trinta e nove graus de febre, como é que podia rir, achar graça em alguma coisa?

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 Entrada do Time do Flamengo

A torcida do Flamengo, do lado da lagoa, mexeu-se. Olhei para onde devia entrar o time do Flamengo. Ainda não chegara a hora do time do Flamengo aparecer. O Vai na Bola (funcionário do clube e torcedor fanático), porém, correu pelo campo, trazendo em cada mão um enorme prato de metal, batendo um no outro, sem parar. Era o aviso para que a torcida do Flamengo se preparasse. 

Foguetes assobiavam, num ensaio geral. E eu senti a presença do time do Flamengo, em campo, muito antes de o ver. É que, do lado de lá, uma língua de fogo agitou-se, antes de uma explosão seca de dinamite, que abalou a estrutura do estádio.

Jaime de Carvalho achara pouco a bomba de São João. Para saudar a entrada em campo, do time do Flamengo, só bomba de dinamite, embora pequena. Bastava tocar fogo no pavio da bomba de pesca, e num instante se ouviria a explosão da dinamite. Uma cortina de fumaça escondeu a torcida do Flamengo.

E eram os clarões da dinamite, que, de quando em quando, escancaravam a cortina de fumaça. A gente tinha a impressão de ver as cabeças dos torcedores do Flamengo, os braços que se agitavam. As bombas de pesca caíam na beira do campo, arrancavam grama, pulverizando-a. E os jogadores do Flamengo, defronte da tribuna de honra, erguiam hurras.


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O Gol do Título

E o Flamengo (já no segundo tempo) atacava mais, e pela esquerda: as bolas passavam por cima, pelos lados. Barqueta (goleiro do Vasco) defendia. Este negócio de atacar mais não resolvia. O que resolvia era o gol, e o gol não vinha. Podia até suceder que o Vasco, atacando menos, marcasse um gol. Quem marcasse um gol seria o campeão.

E o jogo acaba não acaba. O Vevé ia bater um foul. Molas (cartunista argentino) ouviu ‘vai ser agora’. Talvez fosse agora. Vevé bateu o foul. Molas viu a cabeça de Valido subindo. A bola bateu na cabeça de Valido e foi para dentro do gol. 

Parecia que todo mundo enlouquecera. José Lins do Rêgo agarrara Luiz Gallotti pelo pescoço e apertava-o de encontro ao peito. Eu me lembrei da finalíssima: ele fizera o mesmo comigo, quase me cegara – um botão do paletó dele querendo varar-me um olho.

Não se via mais ninguém do lado da lagoa. Uma cortina de fumaça de foguetes e de bombas tapara a multidão do Flamengo. Guilherme Gomes (o árbitro da decisão) estava junto da bandeirinha; era melhor deixar a torcida do Flamengo desabafar de uma vez. E a torcida do Flamengo esticava a emoção do gol: continuava gritando, pulando. Quem era Flamengo não podia nenhum outro Flamengo, sem abrir os braços.

Valido chorava. A vontade de chorar fora mais forte do que ele. Enquanto Valido chorava, Tião (companheiro de ataque no time do Flamengo) ria. Tião não sabia chorar, sabia rir. Era um riso enternecido. Tião ria e beijava Valido. Não beijava uma nem duas vezes. Beijava uma porção de vezes, devargazinho, emendando um beijo no outro. E Valido, desfeito em lágrimas, deixava-se beijar, sem um gesto, as pernas fracas, tudo rodando diante dele. Valido estava tão fraco que Tião precisava segurá-lo. Se Tião não o segurasse, ele cairia, rolaria por terra, para chorar melhor, e lá ficar soluçando.

‘Quanto faltava?’ – era a pergunta que todo flamengo fazia. Faltava pouco. Sem contar os descontos, dois minutos. Dois minutos passavam depressa – passaram depressa. Acabados os dois minutos, o jogo não parou. Aí, o tempo começou a se arrastar, nada de Guilherme Gomes apitar. ‘Olha a hora!’ – a multidão gritava para Guilherme Gomes. E Guilherme Gomes olhava para o cronômetro.

‘Olha a hora! Olha a hora!’ – eram os gritos da multidão. O ‘olha a hora’ saía grosso da boca da multidão; de milhares de bocas, ao mesmo tempo, um ‘olha a hora’ que não parecia humano. E Guilherme Gomes voltava a olhar o cronômetro.

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O Fim do Jogo

Quando Guilherme Gomes apitou, agitando os braços, foi como se abrisse as portas de uma prisão gigantesca. A multidão pulou as grades e entrou em campo. Num instante o gramado desapareceu – as cabeças dos torcedores do Flamengo subindo e baixando. Era a libertação de milhares de pessoas. Os grilhões tinham sido partidos com um gesto mágico de Guilherme Gomes. Agora, sim, José Lins do Rêgo podia respirar à vontade, abrir o peito, gritar Flamengo. Grito de vida que voltava, de renascimento. 

Cartazes...Popeye (símbolo do Flamengo criado pelo cartunista Molas) dando o braço à Miss Campeonato e o Almirante (símbolo do Vasco) com a sogra, segurando a cauda do vestido da noiva.

A Gávea era do Flamengo, só do Flamengo. Olhei para o outro lado e vi um homem chorando. Homem não chora. Chora sim: Valido chorou. O homem estava de corpo duro. Endurecera o corpo para não soluçar. A boca fechara-se para os soluções; os olhos, porém se abriam para as lágrimas, que corriam livremente. O homem que chorava não tinha vergonha de chorar na frente de todo mundo. Pelo contrário, orgulhava-se das lágrimas: boas, puras, cristalinas.

Os jogadores do Flamengo equilibravam-se nos ombros da torcida. Biguá (lateral do Flamengo e símbolo da raça rubro-negra) subia e baixava. Torcedores pulavam para apertar a mão de Biguá. Biguá encolhia-se, mas não adiantava. E o peso do corpo de um torcedor arrastava-o para baixo. 

Quando os torcedores, que carregavam Biguá, chegaram em frente à cerca que dava para a tribuna de honra, alguém abriu o portão baixo, de ferro e fez um sinal. Biguá era como um bicho acuado que encontra um buraco por onde se meter. Atirou-se no chão e quase bateu com a cabeça na cerca de arame, sujando as mãos de terra. Biguá pensava que estava livre, mas não estava: José Lins do Rêgo abriu os braços e apertou Biguá de encontro ao peito. Foi um abraço rápido. ‘Me desculpe, doutor Zé Lins’ – Biguá quis atravessar o corredor da tribuna de honra. Havia mais gente que queria abraçá-lo, rolar com ele pelo chão.

O que acontecera a Biguá acontecera, também, a todos os jogadores do Flamengo. Até Quirino aparecia nos braços da torcida. Valido é que sumira. Onde estava Valido? Agora só se via a multidão, que cobria todo o campo. E cartazes, uma porção de cartazes. E clarins. Do outro lado a banda de clarins; o sino repicando sem cessar. Não se escutava o barulho dos pratos de metal do Vai na Bola. Os sons se misturavam: era a sinfonia da vitória.

Perto de mim um torcedor do Flamengo cantava, sozinho, ‘Flamengo, Flamengo, tua glória é lutar’. Cada torcedor do Flamengo fazia o que lhe vinha na cabeça, sem olhar para os outros. E no fim, tudo dava certo. Era o delírio do Carnaval, noite de terça-feira gorda na Avenida.

Não havia ninguém, no vestiário do Flamengo, que não estivesse chorando e rindo ao mesmo tempo.

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A Festa da Torcida do Flamengo

Só agora o campo se esvaziava. E Jaime de Carvalho correndo de um lado para o outro, avisando todo mundo. A torcida do Flamengo iria a pé, da Gávea até a sede do clube (antiga sede, na Rua do Russel, nº 22, hoje Praia do Flamengo, nº 66, que dista em torno de dez quilômetros da Gávea), como num rancho, a Estação Primeira a caminho da Praça Onze.

Nada de bonde. Os bondes, os lotações, estavam bons para a torcida do Vasco, que voltava de cabeça baixa. O torcedor do Flamengo tinha de levantar a cabeça, de empinar o queixo, de estufar o peito. Nada disso! O torcedor do Flamengo tinha era de se espalhar, de sambar, de pular, de puxar cordão, alegrando todas as ruas, fazendo escancarar todas as janelas. E Jaime de Carvalho, já rouco, continuava a dar ordens.

A multidão encheu a praça. Os lotações fonfonavam. De longe se via os bondes carregados de gente. Os bondes iam para a cidade, levando os vascaínos e os flamengos que não sabiam esperar. A vontade de Jaime de Carvalho era fazer parar todos os bondes. Quem fosse Flamengo que saltasse. ‘Vai na Bola’ batia com um prato de metal no outro, sem ritmo, só para fazer barulho. Os clarins tocavam. Havia gente dançando. 

Os cartazes subiam e baixavam como estandartes. Os cartazes eram os estandartes do bloco do Flamengo. Jaime de Carvalho deu o sinal. Todos a caminho. E a multidão movimentou-se, cantando e dançando.

Os automóveis e os bondes passavam na frente do bloco do Flamengo. Havia gente que saltava para engrossar a multidão, entrar no brinquedo. As janelas se abriam: Jaime de Carvalho tinha certeza de que elas iam se abrir. Abriam-se e enfeitavam-se de sorrisos. Havia flamengos em toda parte: a cidade era do Flamengo. Garotos corriam na frente do bloco – o ‘Vai na Bola’ batendo com os pratos. Gritos de Flamengo de estourar os pulmões – um hino aqui, um samba acolá. 

E a sede do Flamengo ficava longe, quase junto do jardim do Palácio do Catete. O bloco tinha de atravessar o Jardim Botânico, São Clemente, a Praia de Botafogo, a Avenida da Ligação, a Praia do  Flamengo. 

Ninguém, porém, achava longe. Parecia até que a sede do Flamengo era ali.”

Mário Filho: Histórias do Flamengo.