domingo, 29 de setembro de 2013

Alfarrábios do Melo

O calor é infernal.

Todos transpiram. Todos os que se espremem e se acotovelam em busca de alguma mínima nesga de cimento onde possam se acomodar e, transidos de ansiedade, aguardar a espera do apito que em breve soará o veredicto inapelável, inexorável.

O abismo está à beira. Ao alcance de um simples, mero, prosaico e banal empate.

Como que prevendo o pior, o Flamengo, num ato que recende ao vão desespero dos extremo-ungidos, abandona seu palco de tantas vitórias e glórias e vai se apequenar em um “alçapão” de interior, procurando dispor de uma torcida aguerrida e hostil, quem sabe vencer “na marra” antes do suspiro derradeiro.

Ou simplesmente fugir. Tentar tornar o vexame algo menor, anônimo.

A situação é amplamente dramática. A equipe se arrasta sem rumo, sem reação, sem brio, sem nada, soterrado há vinte e quatro torturantes rodadas na região dos quatro piores times, os eleitos à conspurcação, à degola física e moral, ao enxovalhamento absoluto de qualquer resquício de honra e dignidade.

Indiferentes, os jogadores dedicam-se a fustigar-se mutuamente em guerrilhas de vaidades onde os interesses da instituição são simplesmente ignorados. Patotas, grupos, panelas vicejam como fungos e carcomem todo e qualquer sopro de disposição contido na vontade férrea do veterano mestre, que, com sucessivas rodadas de atraso, enfim desiste e entrega seu boné.

Agora faltam três jogos. Partidas dificílimas, contra alguns dos melhores do país. Qualquer tropeço é a morte, o fim da agonia de uma torcida já condenada ao rebaixamento prévio há meses.

Sem opção, recorre-se a um nome conhecido. Um curandeiro. Um bombeiro.

Sem que um mísero treinamento seja comandado, o grupo é reunido, uma longa conversa, algumas declarações bombásticas, uma fala mais grossa aqui, um outro grito ali e, entre alguma dose de otimismo, um mínimo de esperança e muito ceticismo, o time está pronto para a primeira batalha. O adversário está nas primeiras colocações, vem praticamente completo e seu retrospecto recente contra o rubro-negro é totalmente favorável.

O alçapão está cheio. Pleno, repleto, exala o fanatismo dos que acreditam, que têm fé. Contra todas as expectativas, todos os prognósticos, todas as sentenças, simplesmente têm fé. Creem na salvação apenas porque amam e acreditam na força do Flamengo, de alguma forma sabem que, nos estertores, a salvação, a reviravolta, a ressurreição virá. E, mais uma vez, o clube se erguerá altivo, orgulhoso, forte.

E o calor é infernal.

* * *

Dentro de campo, todos suam. O suor de alguns ferve de calor, de cansaço. Outros suam gelado, de nervosismo, de medo.

Menos o garoto.

Calmo, frio, o jovem exprime vivacidade apenas em seus olhos agudos, que espreitam a autoconfiança do adversário, a apática ansiedade de seus colegas, ajuntamento que compõe tudo, menos um time. Taciturno, não fala. Não sente o menor sinal de receio. Parece tomado de estranha tranquilidade, com a certeza de que hoje viverá um dia especial. Seu dia.

Mesmo sem jogar.

A partida começa, o Flamengo, com o ânimo injetado pelo novo comandante, parte com coragem, de “peito aberto”, tenta sufocar o oponente, perde algumas chances, beija a trave. O adversário, mais calmo, não se abala e aos poucos começa a controlar as ações da partida. Para o oponente, o empate serve. Para o Flamengo, é a morte.

A atmosfera é densa, pesada, sufocante. Todos sentem o calor, a pressão, o nervosismo.

O treinador reclama, brada, esbraveja, conversa com os auxiliares. Olha para os reservas, vários viram a cara, evitam o olhar confrontador.

Menos o garoto, que não lhe desvia os olhos suplicantes e determinados.

Desde cedo, o jovem já mostrava personalidade e petulância. Nos treinamentos com os profissionais, nunca foi de tirar o pé, e nem alguns esbarrões preventivos dos mais experientes o intimidavam. Xingava e gritava como se capitão fosse, isso em treinos. Lançado quase como um último recurso no jogo anterior, foi bem em campo, um dos poucos a se salvar da acachapante derrota. Mas o novo treinador, sem conhecer direito o elenco, preferiu recorrer aos mais rodados, aos mais velhos.

O garoto não se incomoda. Está ali. Pronto. Mentalmente joga junto, parece completamente concentrado e absorvido com a partida. Não conversa com ninguém, nada fala.

Mas seus olhos faíscam de fome.

Muitos parecem tremer diante do oponente, que agora cresce no jogo e já mantém o Flamengo longe de sua área. Time qualificado, treinador consagrado, apenas não podemos nos humilhar, pensam alguns, inclusive nas arquibancadas.

Mas esse não é o Flamengo do garoto, que cresceu ouvindo as histórias do Flamengo de Zico, do Flamengo campeão do mundo, que viu o Maestro Júnior esmerilhar a bola e fazer do Flamengo o maior, viu os meninos de Carlinhos subjugarem todo um país. O Flamengo do garoto não tem medo de ninguém. O Flamengo do garoto é capaz de passar por cima de qualquer adversário, em qualquer campo, qualquer situação, quaisquer que sejam as circunstâncias.

O garoto enxerga o adversário e apenas vê onze potenciais presas prontas para o abate. Sente ferver-lhe o sangue, transir-se de inconformismo e uma inexplicável vontade de cravar os dentes ao pescoço daquele rival petulante, que toca uma bolinha indolente, julgando-se inatacável. O garoto quer sangue, quer dançar nos despojos e nas vísceras expostas de um inimigo que ele clama por exterminar, destruir.

O jogo já vai pelo segundo tempo. O adversário, nitidamente superior, possui pleno domínio das ações e prepara o bote final. Desnorteado, o treinador percebe que precisa mudar o quadro, precisa agir, e rápido. Mas, conhecendo poucos, não terá como distinguir qual daqueles jovens anônimos estará preparado para mudar o jogo.

“Põe ele”, o experiente goleiro reserva aconselha ao ouvido do comandante, apontando para o garoto de olhar febril.

Sem dizer uma palavra, o garoto olha fixamente para o treinador e se levanta.

Felipe Melo vai começar o aquecimento.




“O Flamengo derrotou o Internacional em Juiz de Fora por 1-0, com um gol de cabeça de Felipe Melo, resultado considerado fundamental para a briga contra o rebaixamento em 2001, pois deixou o time a três pontos da salvação, conseguidos na última rodada, quando venceu o Palmeiras, também em Juiz de Fora, por 2-0. O time encerrou o campeonato na 24ª colocação, exatamente à frente dos quatro rebaixados.”