domingo, 5 de maio de 2013

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos.

Já é uma verdade corrente considerar a Taça Guanabara de 1989 como o último troféu de Zico com a camisa do Flamengo. Isso é fato, se considerarmos conquistas dentro do Brasil, ou do Maracanã, seu principal palco. No entanto, após amassar o Vasco naquela final, Zico ainda ergueria outra taça pelo Flamengo antes de encerrar a carreira. É a história que conto hoje. Boa leitura.

O ÚLTIMO TROFÉU DE ZICO

A Gávea ferve.

O time perdeu um Estadual tido como certo para um Botafogo nitidamente inferior. Depois, começou a viver um processo de desmantelamento, com a venda de seu lateral-direito Jorginho para o futebol alemão, e a negociação de sua dupla de zaga titular (Aldair e Zé Carlos II) para os portugueses. Tudo baratinho, a duas mariolas. Como se não fosse o suficiente, o ídolo Bebeto, após semanas de arrastadas negociações, transferiu-se para o Vasco.

Ferve tudo. Literalmente.

O time está em frangalhos. Telê Santana busca juntar os estilhaços de um elenco fragmentado, dá chances a jovens como Júnior Baiano, Marquinhos, Gonçalves e Bujica, reaproveita renegados como Leandro Silva e Nando, traz o vigoroso (e limitado) Márcio Rossini para a zaga, saúda a volta do veterano Júnior, disposto a encerrar a carreira no clube, e vê com apreensão outro retorno, o do atacante Renato e (ao que se diz) seu ex-desafeto.

O torcedor dá de ombros. E protesta. E ferve de ódio.

Enquanto a Seleção Brasileira se prepara para as Eliminatórias, tem início a Copa do Brasil, cujas fases iniciais o Flamengo transpõe sem maiores dificuldades, com quatro vitórias em quatro jogos diante de Paysandu e Blumenau-SC, não sem antes sua torcida queimar faixas e bandeiras na partida de estreia contra os paraenses, provocando um incêndio que por pouco não destrói boa parte das dependências da Gávea. A seguir, uma vitória convincente (2-0) contra o Corinthians no Maracanã, numa partida em que o Flamengo desperdiça muitos gols e a chance de sair virtualmente classificado. Mas, antes da partida de volta, há uma excursão-relâmpago agendada para a Alemanha, para a disputa do Torneio de Hamburgo (Hafenpokal), que faz parte da Festa da Cerveja da cidade. 

Água na fervura.

A viagem, apesar de cansar os jogadores, é fundamental para acalmar um pouco o ambiente interno, bastante abalado com o bombardeio de críticas que muitas vezes emanam de dentro da Gávea. O próprio Telê, que já começa a ter sua permanência questionada, deseja fazer alguns testes na equipe. Júnior fará sua estreia no torneio, atuando pela primeira vez desde 1983 ao lado de Zico pelo Flamengo.


A primeira partida tem como adversário o St.Pauli, equipe simpática, uma espécie de “segundo time” dos alemães, por conta de seu perfil descolado e irreverente. O St.Pauli vem de boa (para seus padrões) campanha na Bundesliga, um décimo lugar, e é tido como um time perigoso e traiçoeiro.

Mas o Flamengo ignora os pretensos obstáculos e vence com certa facilidade, praticando um ótimo futebol, que surpreende e entusiasma o modesto público (7.500 pessoas) presente no Estádio Wilhelm Koch. A presença de Júnior ao lado de Zico dá ao time estabilidade e uma sólida cadência, equilibrando a correria de Zinho, Alcindo e Leonardo. O rubro-negro domina amplamente as ações desde o primeiro momento, e sob aplausos dos alemães faz 2-0, gols de Nando (aproveitando belo passe de Zinho) e Alcindo (de cabeça).

No dia seguinte, os jornais se derretem em loas ao futebol de Zico, que, reconhecem, se não é mais intenso e febril como nos tempos da Seleção Brasileira, conserva a mesma requintada objetividade dos jogadores realmente diferenciados. Com efeito, é impressionante o aproveitamento recente de Zico nos torneios de que participa pelo Flamengo. Em 1988 o Flamengo disputou quatro torneios. Venceu a Copa Kirin (no Japão), com um catado de juniores e jogadores emprestados pelo América, e o Trofeo Colombino (na Espanha). Em ambos o Galinho participou da equipe. Nos dois outros, em que Zico não esteve presente, o Flamengo não obteve sucesso, nem mesmo em um torneio na Itália contra equipes de terceira e quarta divisão. A sanha de Zico por vitórias é capaz de alterar todo o caráter da equipe, por mais ou menos talento de que disponha.

E agora o Flamengo está em mais uma final.

E o adversário é o próprio HSV Hamburgo, o time da casa, que eliminou o Dynamo Dresden, da Alemanha Oriental. O HSV é um adversário bem mais qualificado que o St.Pauli, tendo conquistado o quarto lugar na Bundesliga. Alguns de seus destaques são o defensor Jakobs e o jovem atacante Bierhoff, que irá fazer história na Seleção Alemã alguns anos depois. O estádio recebe cerca de 15 mil pessoas, um público que, apesar de não muito vistoso, está animado e curioso para contemplar o elogiado futebol dos brasileiros do Flamengo. Evidentemente, sorvendo litros e mais litros da mais pura cerveja local.

E o Flamengo começa arrasador.

Mais ambientado e confiante após a boa partida na véspera, o time, bem ao gosto de Telê, atua com as linhas avançadas, trocando velozmente a bola e atordoando a forte marcação do Hamburgo. Após algumas oportunidades criadas, enfim aos 13’ Zinho cruza à meia altura e Zico escora para abrir o marcador. Sem fazer qualquer menção de recuar, o Flamengo segue sufocando o HSV e pouco depois amplia, num bonito arremate de Aílton. O segundo gol flamengo em meia hora de jogo arranca entusiásticos sorrisos e aplausos de ninguém menos que o próprio presidente do Hamburgo, que elogia abertamente o rubro-negro, “esses brasileiros são uma festa para os olhos”.
O Flamengo seguirá mantendo o controle absoluto da partida, rodando a bola e o time, confundindo e enlouquecendo os alemães. Aos 16’ da segunda etapa, Nando recebe na intermediária e arrisca o tiro. A bola explode na trave e vai para o gol, é o terceiro do Flamengo, que a partir dali resolve desfrutar seu momento de diversão, gastando o tempo e investindo em jogadas de efeito que levam a plateia ao êxtase. Já nos minutos finais, Bierhoff desconta, mas a partida já está definida. HSV Hamburgo 1-3 Flamengo. O Flamengo é campeão do Torneio de Hamburgo.
O protocolo para a entrega do troféu é simples mas organizado, como convém a algo de iniciativa alemã. Zico, o capitão flamengo, recebe a taça e a ergue, sob uma torrente de demorados aplausos e gritos de “Bravo”. O Galinho, em um átimo de tempo, a contempla calmamente, olhos fixos. Talvez ali naquele momento ele saiba que aquele ritual tantas e tantas e mais outras tantas doces vezes repetido será o último de sua carreira flamenga. Ali, em uma ensolarada tarde do ameno verão alemão, Zico, pela última vez, está erguendo um troféu como jogador profissional do Flamengo.

Calmo, Zico desvia os olhos do troféu e o repassa aos companheiros. Afinal, a vida segue.