domingo, 10 de março de 2013

Alfarrábios do Melo



Saudações flamengas a todos.

Hoje dou continuidade à minha escalação do Flamengo de todos os tempos (que já conta com 1.Garcia, 2.Leandro, 3.Domingos, 4. Píndaro, 10.Zico), fechando a defesa com a lateral-esquerda.

Nesse setor, o Flamengo contou, ao longo de sua história, com vários nomes de peso, como os voluntariosos Jaime e Pavão, o habilidoso Paulo Henrique, o vigoroso Rodrigues Neto e, em menor escala, os jovens Leonardo e Athirson. Mas o grande nome da posição, a meu ver, é um craque que fez história no Flamengo atuando nas duas laterais, no meio e até na zaga. O Capacete, o Maestro.

E, mesmo na lateral, leva a camisa 5, que lhe acabou se tornando marca registrada, seja em qual posição tenha atuado.

Boa leitura.

5 - JÚNIOR

1974.

O Flamengo está perdendo. E está sendo eliminado.

A derrota parcial para o América de Edu, Orlando, Flecha e Luisinho vai tirando o Flamengo do Campeonato Carioca. Justo o campeonato que viu a afirmação de jovens como Zico e Geraldo, escorada na experiência do goleiro Renato, do volante Zé Mário e do lateral Rodrigues Neto e no talento e fibra do zagueiro Jaime e principalmente do goleador Doval, o grande ídolo de uma torcida que vem vivendo dias de alento, esperança e frustração.

No primeiro turno, a fase de ajustes nas mãos do treinador Joubert, a alegria com algumas vitórias em clássicos, mas o título jogado fora em tropeços como a derrota para o Madureira (1-2). No segundo turno, os problemas no ataque, a excessiva quantidade de empates e mesmo assim o título perdido por um ponto, após dois empates em 0-0 contra Flu e Botafogo. Bastava um mísero gol...

No terceiro e último turno, o início complicado, as mudanças no time, o encaixe, as melhores atuações na competição, o título que parecia sorrir, mas que quase vai por água abaixo após uma derrota (1-2) para o Bonsucesso. Última rodada, somente a vitória, nada mais que a vitória contra o América, mantém o Flamengo vivo.

E o time está perdendo.

Parece que o campeonato ficará mesmo entre o pragmático Vasco e o artístico América, que monta um dos últimos grandes times de sua história e é o queridinho da imprensa. América e Vasco que, ao longo da competição, foram sistematicamente derrotadas pelo Flamengo, algumas vezes de forma contundente. Isso é o que mais dói no peito do torcedor.

Ao Flamengo, resta pressionar, encurralar, atacar.

Mas o América é time manhoso, enseba, presepa, cai no chão, irrita encerando até cobrança de lateral. O tempo vai passando e o Flamengo vai sendo mantido a distância segura da área rubra. Um  simples empate e o América vai decidir em vantagem com o Vasco, conseguir um título que não vê há catorze anos.

O Flamengo fustiga, mas é mais um ataque perdido. Contragolpe americano. Interceptado. O garoto que tá na lateral chega antes e corta. Fica com a bola, vai conduzindo, levando. Seus companheiros se deslocam, tentam cavar alguma clareira no meio de uma cerrada floresta vermelha. Enquanto isso, o jovem lateral cabeludo corre com a bola.

Curiosa a história desse garoto. Começou no futebol aos 19, base de técnica construída nas quadras de salão, aliada à força e vitalidade obtidas jogando nas areias de Copacabana. Família tricolor, ia escondido com os amigos ver o Flamengo no Maracanã. Sempre quis jogar no meio, usar a 8. Testou no Botafogo, queriam colocá-lo na lateral, não quis ficar. Não gostou de treinar no Fluminense, foi pro América, quase fica por lá, mas não quiseram lhe pagar a ajuda de custo. Ia desistir, mas um amigo o indicou pro Flamengo, onde finalmente conseguiu se encontrar em sua posição. Mas o lateral titular machucou, o treinador veio com jeito, “Você vai ter mais chances jogando aí”, e o garoto convenceu-se não sem custo. E acabou subindo pro profissional como lateral-direito mesmo. E já no terceiro turno, com as más atuações do titular Humberto, foi lançado num jogo dramático contra o Madureira, sua entrada decisiva para tirar o 0-0 que teimava em não sair do placar. Depois uma ótima atuação contra o Vasco (3-1), e a posição enfim conquistada.
 
Agora ele está com a bola e não consegue ver ninguém livre. Tem que resolver, um zagueiro já está chegando.

Vê o goleiro cravado na linha do gol. Pensa, vou bater daqui do meio da rua mesmo, à meia altura, pra quicar. E chuta de looonge, enviesado, bola maliciosa e traiçoeira. Mas já obediente, desde cedo. Quica quase em cima do goleiro Rogério, que não tem mais como reagir. A bola simplesmente ignora o salto desesperado do arqueiro e atira-se às redes com gosto, com gana, com amor.

O Flamengo empata a partida.

O estádio infernal comemora, pula, canta, dança e celebra uma certeza. Se empatou, vai virar. 

O domínio vira cerco, a pressão vira sufoco, o suspense vira drama, o alívio vem em um jorro de alegria e êxtase com o gol de Zico, já senhor das cobranças de falta mesmo sendo pouco mais que um menino.

O Flamengo vence o terceiro e último turno. Está nas finais.


Há certa ironia, quase crueldade, na lógica de certos acontecimentos. E aqui estão de novo, uma semana depois, Flamengo e América. Primeiro jogo do triangular final do campeonato.

Os times mais cautelosos, não se expõem. América tenta impor sua técnica, o Flamengo mais aplicado e aguerrido. Primeiro tempo se esvai, 0-0. Segunda etapa se inicia mais ou menos na mesma toada, América tentando tomar a iniciativa, Flamengo mais cauteloso. Contragolpe, bola com Rodrigues Neto, falta na entrada da área, adivinha quem vai bater. Zico cobra, Rogério manda a córner, na cobrança um bate rebate e o zagueiro Jaime faz Flamengo 1-0.

O América se atira com toda sua cavalaria, acossa o gol de Renato, cria e perde chances, torcedor flamengo rói as unhas das mãos e dos pés. O empate ali na prateleira, a minoria vermelha no Maracanã começa a fazer barulho, o Flamengo com sérias dificuldades em segurar a vantagem.

Então, a cruel e irônica lógica dos fatos da vida irá novamente ser exposta. A isso, alguns chamam destino.

A zaga corta e lança o jovem lateral cabeludo. Tal e qual há uma semana, ele vem com a bola, olha os companheiros, arranca pelo flanco. Ajeita o corpo, não vê ninguém livre. E, como uma semana atrás, vai chutar, lá de looonge mesmo. Semana passada deu certo.

É possível driblar o destino? Rogério vai tentar, e dessa vez percebe a armadilha e se antecipa. Dá dois passos à frente, adiantando-se ao lance. Não há como ser traído agora pelo quique. Não dessa vez.

Mas não há lógica capaz de desafiar o brilho intuitivo de um craque. O garoto black-power ergue a cabeça e com a tranquilidade dos grandes senhores, apenas aplica uma trajetória tão parabólica quanto precisa. Ao invés do tiro melífluo, o toque cirúrgico, por cobertura. Às gargalhadas, a bola alça seu voo e apenas contempla enluvados dedos esticarem-se e se retorcerem num angustiado e fracassado intento de lhe desviar o caminho. Dócil em sua alvura, a pelota sente-se descair levemente, apenas para envolver-se suavemente no doce balanço das redes, roçando de leve, apenas de leve, no frio metal que se dobra na quina de cima da trave.

E assim o garoto, chutando do mesmo lugar, contra o mesmo adversário e o mesmo goleiro, marca seu segundo gol na carreira.

Com o gol e os 2-0 no placar, o Flamengo passa a administrar a partida e irá vencer sem maiores sustos, apesar de um gol do América no fim e alguma pressão nos minutos derradeiros. A vitória coloca o time em posição bastante favorável na decisão, e uma atmosfera de grande festa e otimismo toma conta da Gávea. O jovem é ovacionado e festejado como a solução para a lateral-direita do Flamengo, e ganha vários prêmios como o melhor da partida. “O gol que Pelé não fez”, exageram.

* * *

Passam-se quinze anos.

Um bonito azul se ergue no ensolarado céu às margens do Adriático, e a brisa antes refrescante já dá sinais de tepidez, sinalizando o iminente final de mais uma primavera.

Desfrutando suas merecidas férias, o veterano craque reclina-se em sua confortável poltrona e se dedica a degustar com calma mais um vídeo com gols e lances de sua paixão flamenga, sempre atenciosamente enviados pelo amigo Zico. Assiste às peripécias de jogadores bem mais limitados do que com ele conviveram e sorve uma licorosa dose de um saboroso Marsala, enquanto pensa que talvez já seja a hora de parar com os treinos, as viagens, os jogos. Retornar ao Brasil e curtir sua família, seu patrimônio solidamente erguido e sua praia, seus amigos. Mas ainda se sente capaz, pleno para atuar em alto nível. Talvez lhe falte uma fagulha, uma motivação.

É quando de súbito uma criança entra correndo, carrinho na mão, esbaforido, e vê o pai. “O que você tá assistindo?”, “O Flamengo”, “Que jogo é esse?”, e o menino vai recebendo sua dose de doutrina rubro-negra. É quando um troféu salta da tela da tevê. É mais um título flamengo, uma volta olímpica. O menino ouve o hino, sente os gritos, se impressiona, se arrepia.

“Paiê, quando eu vou te ver levantando uma taça dessas?”

A pergunta lhe vai ao estômago, sutil e devastadora como só as coisas de criança são. Quase de pronto, o velho craque encontra sua resposta, sua faísca, a ignição para seguir adiante. Sim, é isso. Isso fará tudo valer a pena. O craque responde qualquer coisa, beija a testa do garoto, desliga o vídeo e se levanta apressado. Sente-se ferver, sente-se pulsar, sente-se tomado por uma febre, um vigor que o arrepia e quase lhe priva os sentidos.

Cinco anos depois, Júnior novamente se sente Flamengo.

* * *

O Flamengo conquistou o Campeonato Carioca de 1974, ao empatar com o Vasco em 0-0 na grande final. Júnior seguiu como titular da lateral-direita até a chegada de Toninho, vindo em um troca-troca com o Fluminense de Horta, em 1976. A partir de então, Júnior foi deslocado para a lateral-esquerda e lá permaneceu até 1984, quando foi negociado com oTorino, da Itália. 
Nesse período, Júnior foi campeão estadual, brasileiro, sul-americano e mundial, além de se tornar titular absoluto da seleção brasileira e um dos melhores jogadores do país.

Em 1989, após passagem bem sucedida pelo futebol italiano, Júnior retornou ao Flamengo, com o objetivo de atuar mais uma temporada e encerrar a carreira. Para felicidade dos amantes do bom futebol, Júnior (agora atuando finalmente no meio-campo) foi esticando e adiando sua aposentadoria, e com isso ainda liderou uma jovem equipe às conquistas de mais um Estadual e um Brasileiro. Parou de jogar em 1993 e chegou a tentar a carreira de treinador. Hoje atua como comentarista de televisão.


Júnior é o jogador que mais vezes atuou com a camisa do Flamengo, em nada menos que 874 partidas.