sexta-feira, 8 de abril de 2022

Alfarrábios do Melo

Choque de ordem. Mudar tudo.

Esse é o mote na Gávea, após a frustrante perda do Estadual, decorrente de três derrotas seguidas para o Vasco (uma delas ainda pelo Terceiro Turno). A avaliação que se faz é que o elenco precisa ser renovado, oxigenado, rejuvenescido. As principais referências já caminham para a aposentadoria. O time é muito técnico, mas lento e cadenciado em excesso. O plantel, curto, mostrou severas deficiências ao longo do primeiro semestre, quando lesões e convocações fizeram surgir a necessidade de utilizar alguns reservas sem a menor condição de trajar o Manto. Enfim, o contexto que viabilizou, um ano antes, o Tetracampeonato Brasileiro, não existe mais. Ao contrário, aprofunda-se a necessidade, já identificada anteriormente, de se promover uma profunda reformulação nas coisas flamengas.

Hora de trocar.

A primeira mudança parece óbvia. O treinador Carlinhos, visivelmente desgastado pelo tempo no cargo e pela derrota no Estadual (onde confrontou o vestiário ao barrar o zagueiro Leandro, tentando desesperadamente conferir competitividade à zaga), é demitido. Para seu lugar, a Diretoria faz sondagens por Renê Simões (jovem talentoso com bom trabalho na Portuguesa e atualmente com contrato no futebol português) e Valdir Espinoza (Campeão Mundial pelo Grêmio e no momento dirigindo o Cerro Porteño-PAR). A opção por esses dois nomes causa estranheza, uma vez que são treinadores de perfil notadamente liberal no trato com seus elencos. No entanto, nenhuma das duas conversas avança, por conta de seus compromissos profissionais. O que faz o Flamengo se virar, enfim, para um nome de caráter mais disciplinador.

E se chega a Candinho.

Treinador com cerca de dez anos de carreira, fortemente vinculado ao futebol do interior paulista (onde dirigiu, entre outros, XV de Jaú, XV de Piracicaba, São Bento de Sorocaba e América de Rio Preto), vem em ascensão, com trabalhos recentes, posto que apagados, em Grêmio e Santos. Candinho, agora à frente da Internacional de Limeira, consegue chegar à Fase Semifinal do Campeonato Paulista, tendo realizado a segunda melhor campanha geral, o que chama a atenção de outros clubes, como o Vitória de Guimarães-POR, que lhe apresenta proposta formal.

Mas, quando o Flamengo aparece, Candinho não pensa duas vezes. Aceita com entusiasmo o convite, desde que atendida sua principal premissa de trabalho: “Só dirijo clubes grandes se houver dinheiro disponível para contratações e liberdade total de atuação. Porque na primeira fase ruim é o treinador que sobra. Já vi vários trabalhos durarem três meses ou menos, terminando antes mesmo de começarem”.

Candinho terá trabalho. A renovação preconizada pela Diretoria não é meramente retórica. Dois dos principais destaques da equipe, o atacante Renato Gaúcho e o volante Andrade, estão de malas prontas para a Roma-ITA. O zagueiro Edinho segue cultivando atritos com imprensa e torcida. Seu colega, o ícone Leandro, já parece não reunir condições para atuar profissionalmente, como as Finais do Estadual demonstraram amargamente. O craque maior, o ídolo Zico, aparentemente estabilizou a lesão no joelho, mas agora sofre com sucessivos problemas musculares e mesmo com botinadas de alguns adversários,  mal conseguindo atuar três jogos seguidos. Alguns reservas, como os zagueiros Aldair e Zé Carlos II, que já estouraram a idade dos juniores, começam a resmungar pela falta de oportunidades no time (especialmente por, sempre que chamados, melhorarem o desempenho da zaga). Restam os nomes no auge/em alta, como Zé Carlos, Jorginho, Bebeto e Zinho, que já começam a sofrer o assédio de clubes europeus. Enfim, o Flamengo terá que se remontar para a disputa do Brasileiro de 1988.

A cerimônia de apresentação de Candinho é opulenta, ostensiva, caudalosa. O Flamengo quer transmitir a mensagem de que o novo treinador, conhecido por sua seriedade, disciplina e exigência por competitividade, terá todo o apoio da Diretoria para desenvolver seu trabalho. Instado a expor suas primeiras impressões, Candinho ressalta que “trabalhar em Londres ou em Arapiraca é rigorosamente a mesma coisa.” E emenda:

“É uma baita de uma honra dirigir o Flamengo” - alguns se entreolham, em silêncio.

O primeiro trabalho de Candinho é definir a lista de dispensas, a chamada “barca”. Que sai com nomes como Leandro Silva, Flávio, Henágio, Luiz Henrique, Vandick, Paloma e Júlio César. Alguns reforços, contratados antes da confirmação de Candinho, chegam, egressos do América (numa troca que envolveu a ida de alguns jovens da Gávea para os rubros): o lateral-esquerdo Paulo César, o volante Delacir e a joia dos “diabos”, o meia-atacante Renato Carioca. No entanto, Candinho deixa clara a necessidade de reforços, especialmente em um setor específico:

“Vi os jogos finais do Flamengo pela TV. Está bastante evidente que o problema do time está na zaga”.

E os reforços chegam, todos indicados por Candinho: o lateral-direito Xande, do América de Rio Preto, o experiente volante Paulo Martins, com passagens por Bahia e Atlético-MG, mas atualmente na reserva no São Paulo, o atacante Cacaio, do Porto Alegre de Itaperuna, e o mais conhecido de todos, o meia Luvanor, que se destacara no Goiás, mas vindo de passagens apagadas no futebol italiano e no Santos.

“Luvanor dará o toque de classe ao nosso meio-campo. Será nosso criador de jogadas”.

O Flamengo tem uma série de amistosos por Brasil e Europa para entrosar seu novo time. Na estreia de Candinho, em Ponta Grossa-PR, o time goleia o Operário local por 4-1, com grande atuação de Renato Carioca, que anota três gols. No entanto, o primeiro problema já acontece na partida seguinte, em que o rubro-negro é derrotado, de virada, pelo modesto Esportivo de Passos-MG (1-2), em que a zaga (formada por Leandro e Edinho) é facilmente envolvida pelo veloz ataque dos mineiros. Algumas declarações atravessadas trocadas entre Candinho e Edinho são abafadas pelo clube. Mas já se percebe algo no ar.

As coisas melhoram um pouco em Amsterdam, onde o Flamengo (na despedida de Andrade) derrota Ajax-HOL (1-0) e Benfica-POR (2-0), com boas atuações de Luvanor e Renato Carioca. Zico se integra ao elenco na Espanha, e o time de imediato já colhe mais uma taça, o bonito Trofeo Colombino, ao derrotar Zaragoza-ESP (2-1) e Recreativo Huelva-ESP (1-0). Tudo parece caminhar como previsto, e o próprio Candinho declara, esperançoso: “vejo evolução”.

Mas o pano cai justamente na derradeira partida da excursão, em Atenas. Numa atuação desastrosa, o rubro-negro é inapelavelmente derrotado pelo Olympiacos-GRE, num jogo em que os velozes gregos empilham uma oportunidade atrás da outra. A goleada histórica só não se consuma por causa da brilhante atuação do goleiro Cantarele e porque Candinho, num surto de ousadia e auto-preservação, troca os dois zagueiros durante a partida, saindo Leandro e Edinho por Aldair e Zé Carlos II. No fim, o placar de 3-1 sai extremamente barato pelo que se vê em campo. Mas haverá desdobramentos.

“O treinador está querendo arrumar um bode expiatório pra sua incapacidade de montar a equipe. Ele não sabe armar o meio-campo, aí tudo estoura na gente, lá atrás”, dispara um irritado Edinho no desembarque ao Rio. “Nada disso. O problema está é na zaga mesmo. É lá atrás. Já fiz treino especial, treino específico, e nada. Agora só vejo um jeito. É mexer nos nomes”, replica o treinador, sempre pelos jornais.

O bate-boca público segue: “Tenho uma imagem e uma reputação a zelar. Não sou mais garoto pra ficar disputando posição com ninguém. Se alguém questionar meu lugar no time, saio do Flamengo na hora”. E, antes que se consume a esperada barração, Edinho consegue negociar sua transferência para o Fluminense (possui passe livre), a quem andara declarando amor recentemente. A Diretoria, farta dos problemas criados pelo zagueiro, não dificulta a saída (até porque o contrato já está no fim).

Candinho vence o primeiro round. Mas logo descobrirá que sua “carta branca” vale até a página dois.

O Flamengo estreia no Brasileiro, contra o Vasco, sem Zé Carlos e Bebeto (servindo à Seleção Brasileira nas Olimpíadas de Seul) e Jorginho (em mais um penoso processo de renovação de contrato). Em compensação, Zico está de volta. No entanto, nem a presença do Galinho é capaz de reverter uma produção apática e desinteressada de um time que se arrasta em campo. Lá para meados do segundo tempo, o jogo parece caminhar para um gelado 0-0. É quando acontece o fato que marcará o clássico.

“Galo! Sai você!”

O ponta Alcindo faz questão de, ainda no aquecimento, avisar a Zico, aos gritos. Resignado, Zico sai de campo e desce rapidamente ao vestiário. A punição da bola é imediata. Momentos após a saída de Zico, o adversário marca o gol que define a derrota rubro-negra. E mais um atrito tendo Candinho como pivô.

“Eu estava bem no jogo, sentia-me plenamente em condições de liderar o time. Se o treinador preferiu alguém mais veloz pra mudar a característica, paciência. Só acho que o Flamengo está partindo para um caminho perigoso, ao abrir mão de gente experiente e vitoriosa”. Um Zico visivelmente irritado segue em suas críticas: “O time estava apático. E piorou de vez depois do gol. Aceitou a derrota. Aqui isso não pode acontecer”.

Candinho acusa o golpe. Alega que havia um acordo para que o Galinho fosse substituído, “esquecendo-se” que o sinal deveria ser dado pelo jogador. “Tirei porque ele precisa voltar aos poucos, ele vem de lesão. Não entendo a polêmica”. Depois, recua. “Tudo bem. Nos próximos jogos, só vou trocar caso ele peça pra sair. Vou dar essa liberdade a ele”.

O treinador começa a perceber que Londres não é Arapiraca.

“Darío Pereyra”? O anúncio do novo reforço para a zaga causa estupefação e incredulidade a muita gente. Nada contra a reconhecida capacidade técnica do jogador, um dos melhores zagueiros da história recente do futebol uruguaio, tendo construído sólida carreira no São Paulo. No entanto, Darío já se encontra em visível declínio físico, não encontrando mais espaço no elenco do tricolor paulista. Em suas recentes atuações, tem sido criticado pela lentidão e falta de agilidade. Justamente os atributos mais criticados nas sistemáticas avaliações de Candinho à imprensa sobre os problemas do Flamengo. A troca de um zagueiro lento por outro não é bem digerida e Leandro, que também já não “fala a mesma língua” de Candinho, aproveita para alfinetar o treinador: “é no mínimo incoerente”. Irritados, os jovens Aldair e Zé Carlos II pedem para ser negociados. Sem sucesso.

Na sequência do Brasileiro, o Flamengo, atuando muito mal, derrota América (2-1) e Corinthians (1-0), já sem Zico, que sente nova fisgada muscular e desfalca a equipe por algumas semanas. Chama a atenção o time-base que o rubro-negro manda a campo, especialmente quando se coteja com o time do Tetra de 87: Cantarele, Ailton, Aldair, Zé Carlos II, Leonardo, Delacir, Paulo Martins, Luvanor, Alcindo, Luís Carlos, Zinho.

Para a partida seguinte, contra o Bahia na Fonte Nova, mais problemas. Leandro volta de uma lesão e reivindica vaga no time. “Precisa treinar mais”, rechaça Candinho. “Se não sirvo para jogar, também não sirvo pro banco”, e Leandro se recusa a viajar. “Como quiser. A Diretoria que resolva”. Sem Leandro, mas com Xande, Delacir, Luvanor e Cacaio, o Flamengo perde para o Bahia na Fonte Nova, em jogo onde o terceiro goleiro Milagres (que está em campo substituindo Cantarele, suspenso) realiza atuação de gala, impedindo um placar mais elástico do que o 1-0 final. O jogo marca a estreia de Darío Pereyra, que falha no gol dos baianos.

A derrota para o Bahia provoca os primeiros questionamentos mais sólidos ao trabalho de Candinho. A Diretoria, reconhecendo a necessidade de reforçar um ataque que ainda se ressente da saída de Renato Gaúcho, contrata o ponta Sérgio Araújo, em litígio com o Atlético-MG, por US$ 400 mil, à vista (“era muito dinheiro, não tinha como segurar”, resigna-se o Presidente atleticano). O Presidente flamengo é tão sucinto quanto claro: “agora fechamos o elenco. Que é bom e pode jogar mais do que vem jogando”.

Na semana da partida contra o Santa Cruz, no Maracanã, Candinho obtém uma última vitória, quando a Diretoria resolve “estimular” Leandro a aprimorar a parte física em separado (mais tarde, o zagueiro tentará uma arriscada cirurgia para salvar a carreira, sem sucesso). Enquanto isso, o treinador define: “a zaga é Aldair e Darío Pereyra. Ponto”. Com a convicção dos prestigiados.

É uma lástima. O Flamengo, realizando sua pior partida na competição, sofre para arrancar um suado 2-2 no tempo normal contra o Santa Cruz, uma das mais fracas equipes do campeonato. Um dos gols pernambucanos surge de uma falha clamorosa de Cantarele, que tenta sair driblando vários atacantes “à Domingos”, perde a bola e toma o gol. Para piorar, na decisão por pênaltis (novidade no regulamento), o rubro-negro é derrotado, enfurecendo os 6 mil torcedores presentes no Maracanã. Alguns jogadores, e principalmente Candinho, saem de campo escoltados pela PM.

O resultado, como esperado, faz explodir uma crise na Gávea. Candinho é cobrado, principalmente, por ter escalado dois volantes para enfrentar o frágil adversário. O treinador, já irritado, rebate: “Escalo o que há de melhor. Mas não posso fazer nada se o goleiro é irresponsável, o atacante pipoca na hora do pênalti e o time não faz o que eu mando”. Incandescente, o ambiente interno faz emergir declaração do Presidente, que percebe a hora de intervir. E o faz, novamente de forma lacônica, mas contundente:

“Não sei o que está acontecendo. Vou me informar com o pessoal do futebol. Mas uma coisa é certa: o Flamengo não pode, sob nenhuma circunstância, perder nos pênaltis, no dado ou no par ou ímpar para esse time do Santa Cruz dentro do Maracanã”.

Candinho entende o recado. E resolve sinalizar positivamente para uma sondagem do Al Ahli, da Arábia Saudita. Entrega seu pedido de demissão à Diretoria, que o aceita de imediato. É o fim da passagem de Candinho como treinador do Flamengo.

Durou pouco mais de dois meses.

Texto originalmente publicado em 21 de novembro de 2018.