sexta-feira, 22 de abril de 2022

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos.

Uma das coisas que gosto de escrever é sobre mitos e lendas que, por algum motivo, repousam no imaginário geral, ou, em outra vertente, são maldosamente disseminadas com o único intuito de produzir controvérsias vazias. Então, separei alguns casos a seguir.

 * * *

“Em 1980, o Flamengo perdeu a chance de ser Tetracampeão Estadual ao ser derrotado e eliminado pelo Serrano de Petrópolis, com gol de Anapolina.”

FALSO. A derrota foi determinante para a perda do título, mas não eliminou o Flamengo.

O regulamento do Estadual de 1980 é simples. Dois turnos, com os respectivos campeões se classificando para a Final. O primeiro turno é vencido pelo Fluminense, e o segundo é disputado ponto a ponto por Flamengo e Vasco. No jogão entre os dois, o Flamengo leva a melhor e vence por 2-0, gols de Júnior e Adílio. Agora restam três rodadas e ambos dividem a liderança, cada um com 10 pontos.

A rodada seguinte é disputada no meio da semana. Enquanto o Vasco derrota o América por 3-1, o Flamengo vai a Petrópolis enfrentar o Serrano local, tentando afastar o oba-oba que toma conta do clube (o Presidente declara que “já mandou fazer as faixas”). Em um gramado encharcado por um temporal que desabara pouco antes, um Flamengo irreconhecível não consegue se impor ao futebol físico e veloz do adversário. Logo aos 18 minutos, o ponta-esquerda Anapolina, escorando um cruzamento rasteiro, abre o placar. Nervoso, o rubro-negro martela o gol adversário, mas esbarra na ótima atuação do goleiro Acácio e sai derrotado pelo placar mínimo. Para piorar, Zico sente séria lesão muscular (algo recorrente à época) e está fora do campeonato (perderá também o Mundialito de 1980/81 pela Seleção, disputado em Montevideo).

Agora, o Vasco lidera o turno com 12 pontos, dois à frente do Flamengo. No sábado, o rubro-negro junta os cacos e derrota o Botafogo por 3-1, num Maracanã vazio. No dia seguinte, Vasco e Fluminense, em um jogo sensacional, empatam em 3-3. O Vasco segue na liderança com 13 pontos, mas a diferença para o Flamengo cai para 1 ponto.

Na última rodada, o Vasco enfrenta o Americano em São Januário. O Vasco abre o placar com um gol de Roberto no início e vai mantendo a magra vantagem que lhe dá o título. Mas, aos 33 minutos da segunda etapa, o Americano empata num belo chute de longe. Com o empate, o Flamengo ganha a chance de forçar um jogo-extra para decidir o turno. Mas, no último lance da partida, o time de Campos, com dois a menos (expulsos), não resiste. Um gol de cabeça de Roberto dá o turno ao cruzmaltino e tira o Flamengo da briga pelo Tetra. No dia seguinte, o rubro-negro derrota o Volta Redonda por 4-3, no Raulino de Oliveira às moscas, fechando assim de forma melancólica sua participação em um Estadual no qual não perdeu nenhum clássico. A derrota em Petrópolis, decisiva, acaba ficando para a história como o jogo-chave da eliminação. Que, a rigor, somente é consumada no último jogo.

 

“Cláudio Coutinho teve um final trágico, falecendo quando era treinador do Flamengo”

FALSO. Muitos fazem essa confusão, mas, embora ainda muito ligado ao clube, Coutinho já não trabalhava no Flamengo quando a tragédia aconteceu.

Cláudio Coutinho, treinador que iniciou a montagem do supertime que, entre o final dos anos 1970 e o início dos anos 1980, conquistaria todos os títulos possíveis para um clube brasileiro, não resiste ao desgaste decorrente da perda do Tetracampeonato Estadual e dos quatro anos à frente do rubro-negro. Colecionando atritos com alguns jogadores, como Nunes, Júlio César e Luís Pereira, elabora uma lista de dispensas ao final de 1980. No entanto, o documento vaza para a imprensa, o que enfurece Coutinho, que entende que o episódio sela o final de seu ciclo na Gávea.

Passa-se quase um ano. Em novembro de 1981, exatamente no dia seguinte à conquista da Taça Libertadores pelo Flamengo (agora dirigido por Carpegiani, após experiências frustradas com Modesto Bría e Dino Sani), Coutinho chega ao Rio de Janeiro em férias, depois de um bom trabalho no Los Angeles Aztecs-EUA, do qual está se desvinculando para treinar o Al Hilal-ARA. O treinador faz questão de receber e abraçar o plantel campeão da América ainda no aeroporto, e sua presença é celebrada pelo grupo.

No dia 27, a dois dias da primeira partida da Final do Estadual contra o Vasco, Coutinho morre enquanto praticava pesca submarina nas imediações das Ilhas Cagarras, local próximo a Ipanema. A perda precoce estarrece toda a torcida flamenga e deixa os jogadores em choque. Coutinho é sepultado diante de uma multidão, que entoa hinos e cânticos em homenagem ao comandante. Sem a menor condição de entrar em campo, o time perde o jogo contra o Vasco (0-2), mas consegue se recuperar a tempo de conquistar o título e, mais tarde, o Mundial. Que é dedicado a Coutinho.

 

“O Flamengo foi o primeiro clube brasileiro a exibir patrocínio nas camisas”

FALSO. Essa lenda urbana pode ser confrontada com uma prova documental tão farta que causa espanto ter ganho tanto corpo ao longo do tempo.

O uso de logomarcas de patrocínio em camisas sempre fora proibido no Brasil. A despeito de alguns eventos pontuais ao longo da história (o Bangu utilizou, nos anos 1950, uma camisa com um escudo “disfarçado”, que na verdade era a marca da fábrica de tecidos que funcionava no bairro, o Fluminense usou camisa com a marca do Mobral, antigo programa educacional do governo federal, em um amistoso contra o Bayern Munique-ALE no Maracanã em 1975), somente em fevereiro de 1982 a prática é liberada pelo CND (Conselho Nacional de Desportos), e assim mesmo restrita a amistosos. O Internacional se vale dessa brecha e estampa a marca da Pepsi em um torneio no Uruguai. A partir de junho/julho do mesmo ano, a liberação é estendida para jogos oficiais. E o Democrata de Sete Lagoas/MG, logo seguido pelo Ceará, é o primeiro clube a fechar acordo de patrocínio válido para uma competição oficial.

Fonte relevante de receitas num futebol cada vez mais deficitário, o uso de publicidade nas camisas logo se expande. Na Final do Brasileiro de 1983, o Santos enfrenta o Flamengo exibindo nas costas a marca das Casas Bahia, e na Primeira Fase do Brasileiro de 1984 é possível ver Corinthians, Vasco, Santos, Internacional, Portuguesa, Bahia, Confiança/SE, Anapolina/GO, Joinville/SC e várias outras equipes indicando que a prática “veio para ficar”.

O Flamengo não se mostra indiferente. Para a disputa da Terceira Fase, celebra contrato de exposição da marca “Lubrax”, válido inicialmente para os seis jogos da etapa. Posteriormente estenderá o vínculo, que acabará perdurando até o ano de 2009. A estreia se dá na vitória contra o América (3-0), no Maracanã.

Assim, embora tenha aderido ao uso de patrocínio na camisa nos primeiros anos, o Flamengo está longe de ter sido o seu precursor.

 

“O Regulamento do Campeonato Brasileiro de 1995 previa o descenso de quatro clubes para a Série B, mas houve uma virada de mesa, durante a competição, que reduziu o número de rebaixados para dois, para impedir que o Flamengo caísse.”

FALSO. Esse é o tipo de “informação” cuja disseminação só pode ser atribuída à má fé e ao desejo de “causar”. Porque é tão grosseiramente fácil de ser desmentida que se torna apenas recurso adjetivo do qual mentes sem capacidade de argumentos lançam mão para escarrar discursos empapados de ódio.

Encurtando, porque não dá para gastar muita linha com esse tópico: o Brasileiro de 1995 foi disputado por 24 clubes, divididos em dois grupos. A Primeira Fase foi dividida em dois turnos. No Primeiro Turno, os times jogaram dentro dos respectivos grupos, e no Segundo Turno as equipes de um grupo enfrentaram as da outra chave. Os ganhadores dos respectivos grupos em cada turno passaram às Semifinais, disputadas em matamata. Apurada a soma total de pontos na Primeira Fase, os dois últimos colocados foram rebaixados à Série B.

Ao final dos “festejos”, o Flamengo, em péssima campanha, terminou em 21º lugar, com 24 pontos, à frente do Vitória (22 pontos) e dos rebaixados Paysandu (18 pontos) e União São João (9 pontos). O rubro-negro, inclusive, escapou do descenso com antecedência e disputou as últimas rodadas com um time reserva, visto que estava priorizando a disputa da Supercopa Libertadores.

O Brasileiro teve início em 19 de agosto. Pode-se verificar seu regulamento, por exemplo, nas páginas dos jornais da época:

Folha de São Paulo, 18 de julho:

http://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=12853&anchor=495890&origem=busca&originURL=&pd=7ab3af0a7affe8bc80e721d8a8804d8b

Jornal do Brasil, 28 de agosto (dia seguinte ao da estreia do Flamengo, com vitória sobre o Bragantino, 2-1):

http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_11&pasta=ano%20199&pesq=regulamento%20+%20brasileiro&pagfis=164946

Enfim, é aquilo. Alguns não “noticiam” o que aconteceu, mas o que gostariam que houvesse ocorrido. Para os que apreciam detalhes sobre viradas de mesa ou “manobras” de bastidores, 1995 é o ano errado para procurar coisas do tipo. Mas, logo ao lado, já no ano seguinte, pode-se encontrar farto material. Fluminense e Bragantino que o digam.

 

“O Flamengo estava sendo rebaixado no Brasileiro de 2005, quando um gol milagroso de Obina contra o Paraná, marcado nos descontos, salvou o rubro-negro.”

FALSO (“ma non troppo...”). Esse é outro mito que sobreviveu ao tempo. Fato é: nem o empate contra os paranaenses rebaixava o Flamengo, nem o gol da vitória por 1-0, marcado por Obina aos 47 do segundo tempo, salvou matematicamente o rubro-negro. Mas, na prática...

Depois de operar um milagre, com 4 vitórias e 2 empates em seis jogos (sequência inédita em anos), o time do Flamengo, agora sob Joel Santana sai de uma Zona de Rebaixamento que ocupou por todo o Brasileiro (chegando a estar na lanterna), sem nenhuma perspectiva aparente de salvação. A três rodadas do final, o rubro-negro ocupa a 16ª colocação, três pontos acima da Zona de Rebaixamento, e vai a Curitiba enfrentar o Paraná Clube no Estádio Pinheirão.

Ignorando o retrospecto ruim, o Flamengo faz partida corajosa, domina o adversário, acerta três vezes a trave, tem um gol anulado, desperdiça várias chances e finalmente consegue a vitória por 1-0, com um gol de Obina num chute cruzado, aos 47 da segunda etapa. Com o triunfo e a derrota do Coritiba para o Atlético/MG (1-0), o rubro-negro vai a 51 pontos e abre seis do Z-4. Só cai se perder seus dois últimos jogos e o Coritiba vencer seus dois compromissos, ainda descontando uma diferença de três gols de saldo. O Flamengo está virtualmente livre, mas não matematicamente.

A salvação efetiva vem na rodada seguinte, após um 0-0 nervoso contra o Goiás, no Raulino de Oliveira. Livre do peso, o Flamengo goleia com autoridade o já rebaixado Paysandu (4-1) no Mangueirão e termina a competição em 15º lugar, à frente de sete equipes. O Coritiba ainda faz quatro pontos de seis, mas não evita a queda à Série B, junto com Atlético/MG, Paysandu e Brasiliense.

O gol de Obina acaba se tornando o símbolo da salvação flamenga. Esse é o tipo de marca que, embora não seja rigorosamente precisa, talvez seja interessante cultivar, à guisa de certo tributo ao carismático e simpático atacante.

Boa semana a todos.