sábado, 30 de abril de 2022

Alfarrábios do Melo

Jogando no sacrifício.

É daquelas partidas que ninguém quer perder. De treinador novo, o Flamengo vai exibindo uma atuação briosa, com uma disposição e espírito de luta que pareciam perdidos em alguma gaveta embolorada do tempo. Um de seus jogadores, o meia Lico, por pouco não é escalado, pois passara a semana às voltas com dores na virilha. Mas vai pro jogo assim mesmo. E é um dos que vão encharcando o Manto rubro-negro de suor, até ser substituído, já perto do final, pelo jovem ponta Edson, exaurido pelo cansaço e pelo incômodo na perna.

Lico ainda não sabe. Mas vai começar seu inferno.

No dia seguinte, ainda lhe martela a cabeça o gol perdido, que abriria dois gols de vantagem sobre o bom time do Palmeiras de Rubens Minelli. Sozinho, diante do gol, a bomba na trave. Não entrou, a bola puniu, amargo 1-1 no fim, aborrecendo um Maracanã lotado. A virilha também dói, talvez da lesão, talvez do esforço. Mas é uma dor fina, aguda, no joelho esquerdo, que lhe intriga. Não se recorda de qualquer pancada ou coisa do tipo. Provavelmente um pisão em falso, algum buraco. De qualquer forma, não parece grave.

Os dias passam, a virilha melhora, o joelho não. A dorzinha vira inchaço, o local intumesce e Lico mal consegue caminhar. O tratamento é convencional, bolsas de água quente, musculação, gelo. É vetado da viagem para a Bolívia, pela Libertadores. Também perde os primeiros jogos da fase seguinte do Brasileiro. O joelho segue sem reagir, nada parece funcionar. Sem alternativa, o clube decide: vai ter que operar.

As cirurgias no joelho praticadas no Brasil ainda são agressivas, invasivas e com um tempo de recuperação muito elevado, coisa de meses, talvez mais de ano. É um tempo de que Lico, já com mais de trinta primaveras, não pode dispor. Acaba-se decidindo por uma viagem aos Estados Unidos, para a realização de uma técnica relativamente nova, a artroscopia, em que a incisão no joelho é bem mais “limpa” e, por meio de um equipamento de vídeo, pode-se, inicialmente, investigar o problema e depois, se for o caso, intervir com a solução corretiva. Além de Lico, o volante Andrade, também com lesão semelhante, será submetido ao procedimento.

O Flamengo aproveita a oportunidade e envia um médico de seu Departamento, com o objetivo de trocar informações, apreender a técnica e adquirir “know-how”. A ideia é dispor de estrutura para, futuramente, realizar operações do tipo no Brasil, evitando problemas como a dificuldade no agendamento, os altos custos e inclusive o melindre da classe médica do país.

A operação de Lico é bem-sucedida. O jogador tem seus meniscos externos removidos. Três meses depois, está pronto para entrar em campo novamente.

Volta no Fla-Flu da Taça Guanabara, logo no início do Estadual. Apesar do 0-0 chocho, tem atuação elogiada e suporta os 90 minutos em campo. Consegue uma sequência de jogos, onde recebe a responsabilidade de atuar na posição de ninguém menos que Zico, que acabara de ser vendido para a Udinese. Não vai bem, junto com todo o time. Volta a ser deslocado para a ponta, seu jogo melhora, mas não resolve o crônico abatimento que infesta a equipe. Ao menos, parece inteiramente curado da contusão.

Até que vem o jogo com o Botafogo.

A fatídica derrota (0-3) derruba Treinador, Presidente e implode o ambiente interno da Gávea. Mas, como se não bastassem os inúmeros problemas de uma instituição em frangalhos, as incertezas e a estupefação com o fato de um time multicampeão, capaz de enfrentar qualquer equipe do planeta (semanas antes, fizera ótimo papel em um torneio na Itália, mesmo sem Zico), agora virar saco de pancadas, incapaz de derrotar times inexpressivos, Lico, atônito, sente novamente a dor fina, sibilante, traiçoeira, que brota de seu joelho. Não o operado, agora é o direito. De novo, não se lembra de nada anormal no jogo, talvez pelo calor do momento. Alguma entrada mais forte talvez, ou um movimento indevido. Questão é que a dor está aí, mais uma vez. Vai começar tudo de novo?

A depender do diagnóstico inicial, não. O veredito aponta para uma "lesão leve“, nada mais que uma tendinite. Lico chega a ser dúvida para a partida seguinte, mas é vetado. Fará tratamento mais acurado para ficar à disposição na Taça Rio. O que não é de todo ruim, pois as partidas finais do Flamengo na Taça Guanabara, repletas de vexames e goleadas sofridas, são a síntese de uma tempestade perfeita. Ficar de fora desse inferno não deixa de ser uma espécie de alívio.

O Flamengo renova seu elenco, traz uma baciada de reforços com o dinheiro da venda de Zico. Consegue uma “intertemporada” de alguns dias na Granja Comary, em Teresópolis. Nesse entretempo, o joelho direito de Lico desincha e o jogador é liberado para os treinamentos na serra. Participa com desenvoltura do primeiro coletivo. Nada sente.

Entretanto, no início do segundo treinamento, enquanto aquece, sente o dolorido assobio que já lhe é familiar. Chama o médico, que o examina e imediatamente o retira da atividade. Passa um pouco, lá está o joelho inchado qual uma bola. O Departamento Médico do Flamengo admite: serão necessários exames mais aprofundados.

E lá se vai Lico para os Estados Unidos.

No mesmo hospital da primeira cirurgia, o exame acusa: nada de tendinite. O joelho está com ligamentos rompidos, cartilagens lesionadas e partes dos meniscos comprometidas. Para acelerar a recuperação, a remoção dos meniscos é apenas parcial, sendo eliminado somente o tecido que está danificado.

Passam-se apenas 32 dias. De forma inacreditável, Lico volta a treinar com bola, após um período de recuperação atravessado com inabalável disciplina, fé e determinação. Está à disposição do treinador Cláudio Garcia para os jogos finais do Estadual. Retorna no jogo-extra que decide a Taça Rio contra o Bangu. Entra aos 20’ da segunda etapa e ajuda a segurar a bola e a vitória por 1-0 que coloca o Flamengo nas Finais. O campeonato não termina da melhor forma, mas ao menos Lico está pronto para a temporada seguinte, após esse 1983 tão conturbado e tumultuado.

Inicia bem o ano de 1984. A contratação do ponta João Paulo, destaque do Santos, não parece abalar-lhe as forças. Lico começa na reserva, mas não demora a barrar o forasteiro, com boas atuações e gols, como nos memoráveis 4-1 sobre o Santos, pela Libertadores. Segue atuando com frequência, até que o Flamengo viaja para a Colômbia, para enfrentar América de Cali e Junior Barranquilla pela Libertadores, no final de março.

O jogo em Cali é catimbado e violento. Nunes é expulso, após revidar uma agressão. Leandro apanha tanto que acaba substituído. E é o mesmo destino de Lico, que precisa sair após uma entrada dura no joelho direito, o mesmo recentemente operado.

O golpe no joelho assusta Lico, que com alívio percebe reunir condições de jogo para a partida seguinte, contra o Junior. Atua normalmente e tem atuação elogiada, a ponto da crônica criticar sua substituição no fim do jogo. Parece ter sido só um susto.

Mas, no dia seguinte, o joelho volta a inchar.

Lico ainda consegue, a muito custo e à base de infiltração, atuar no jogo de “vida ou morte” contra o Internacional no Maracanã, em que a vitória por 2-0 garante a continuidade do Flamengo no Brasileiro. Mas, talvez por conta do esforço e das dores, não consegue manter o nível de suas atuações. Depois do jogo, o inchaço reaparece, além da já conhecida dor, insistente e penetrante. Lico terá que, novamente, ser afastado para tratar do joelho.

Volta no returno da Terceira Fase do Brasileiro, num 0-0 contra o América. Faz bom jogo, chegando a sofrer um pênalti, que é desperdiçado por Tita. No descanso, “ouve” o já contumaz uivo fininho, que lhe invade as entranhas.

Segue-se uma rotina enjoativa e torturante. O Flamengo enfrenta uma sequência de jogos decisivos, reta final do Brasileiro, Semifinais da Libertadores. E lá está Lico, infiltrando, atuando, inchando, descansando, pondo gelo, urrando de dor, desinchando, infiltrando, atuando, inchando, doendo. Sofrendo.

A agonia vai até o início da Taça Guanabara. Após uma goleada sobre o Olaria no Maracanã (4-0), o joelho de Lico, como usual, torna a inchar. Farto, o jogador resolve acabar de vez com isso. Cogita parar de jogar. Mas, resignado, aceita mais uma pausa para a busca da “solução definitiva”.

E, num intervalo de um ano e meio, Lico opera o joelho pela terceira vez. A segunda no direito.

A lesão é surpreendentemente simples. A pancada em Cali havia feito fragmentos dos meniscos remanescentes se soltarem, causando dores e inflamação. Basta, portanto, remover o restante desses meniscos e o problema se resolve.

No entanto, desta vez a artroscopia é realizada no Brasil. O melhor profissional em atividade para esse tipo de intervenção ainda novo no país, é o médico do Fluminense e da Seleção Brasileira. Mas o Flamengo prestigia seu corpo médico, que julga apto para o procedimento, haja vista o conhecimento adquirido no exterior. Assim, em setembro de 1984, a cirurgia é levada a termo. Lico terá o restante do ano para se recuperar.

E assim acontece. Como das outras vezes, Lico demonstra notável espírito de luta e força de vontade, e em novembro já está treinando com bola. Zagalo, cauteloso, prefere contar com ele em janeiro, até para que a recuperação se dê de forma mais consistente, sem pressa. Esperançoso, o jogador dá entrevistas acreditando que, enfim, terá paz na sequência da carreira.

O Flamengo vai se preparando para a estreia no Brasileiro de 1985, contra o Atlético/MG, no Mineirão. Zagalo, apesar dos novos reforços, pretende utilizar Lico. O jogador passara as férias treinando e se condicionando. A recompensa vem na sua escalação como titular no coletivo que definirá o time que irá a campo domingo. Lico treina forte, treina duro, bota o pé e é destaque. Acaba o treino. Ao caminhar para o vestiário, o duro, ferino e sibilino golpe. O joelho direito acena-lhe com a sua já conhecida voz aguda e esganiçada. E se abre num edematoso globo da morte.

Lico está fora do jogo.

É o sinal derradeiro. Após procurar vários médicos, no Flamengo e em outros clubes, ouve de todos eles a mesma palavra, embrulhada em termos técnicos pomposos, expressões de efeito, sutis eufemismos que, no fundo, traduzem rigorosamente o mesmo significado. “Acabou”.

E assim, aos 33 anos, Lico encerra sua carreira de jogador de futebol.