sexta-feira, 18 de março de 2022

Alfarrábios do Melo

A agonia está no fim.

Nove longos anos sem desfrutar da mais prazerosa das sensações que podem acometer quem vive e sente futebol: o urro de campeão.

Nove longos anos desde que a testada do febril Valido estufou as redes vascaínas em uma quente tarde dominical de outubro, na Gávea. Depois da taça do tri, a cidade viu emergir o melhor time montado pelo Vasco em sua história, e o Flamengo, vivendo um momento de transição de gerações, não conseguiu impedir a era do Expresso da Vitória do rival.

Mas isso está perto de acabar.

O Campeonato de 1953 já se arrasta desde julho. Doze clubes jogando entre si, naquilo que o regulamento chama de “primeiro e segundo turnos”, sem interrupção da contagem de pontos. O vencedor dessa fase avança para a final. Os 6 melhores se qualificam para a disputa de um “terceiro turno”, cujo vencedor será o segundo finalista.

Daí que já estamos em janeiro, na penúltima rodada deste terceiro turno.

A fase inicial, dos dois primeiros turnos, é vencida pelo Flamengo, após renhida disputa com Fluminense e Botafogo. O rubro-negro, na última rodada, vence de forma sensacional o Fla-Flu por 2-1 e ultrapassa o tricolor na tabela. Termina com 36 pontos, contra 35 dos fluminenses e alvinegros. O Flamengo já está, portanto, na Final.

É um campeonato muito interessante e animado, apesar de longo. O Vasco, atual campeão, ainda possui na sua base vários remanescentes do Expresso da Vitória, embora a idade já comece a pesar para alguns. Nomes como o atacante Vavá são um aceno de renovação. O Fluminense conta com seu “timinho”, forma de se referir a uma equipe de poucos craques, mas muito competitiva, liderada por Didi e uma espinha dorsal onde se destacam Castilho, Pinheiro e Telê, entre outros. O Botafogo começa a montar uma equipe qualificada, livrando-se do controverso legado de Heleno. Um jovem chama a atenção já na primeira rodada, em sua estreia contra o Bonsucesso, marcando três gols. Alguns o chamam “Gualicho”, mas logo se entende que deve ser nomeado Garrincha.

O Flamengo, por sua vez, aposta em uma mudança de paradigma. Farta da mesmice oferecida por treinadores ainda presos a esquemas que remetem ao obsoleto “WM” e suas variações, a Diretoria rubro-negra insiste em tentar novamente um treinador estrangeiro. Alguns dirigentes ponderam, lembrando a traumática experiência com o húngaro Dori Krueschner, anos antes, e muitos sugerem que, se é para contratar um “gringo”, que se traga o uruguaio Ondino Vieira, já ambientado com as idiossincrasias do futebol pátrio. Mas a ideia é ousar. O alvo é o paraguaio Fleitas Solich, que assombrou o continente ao conquistar, de forma incontestável, o Campeonato Sul-Americano com a Seleção do Paraguai no início do ano, em Lima.

Após certo cortejo e rápidas tratativas, Don Fleitas aquiesce e assina contrato com o Flamengo. Ali começa a se definir o destino do Campeonato. E de toda uma época.

Não há surpresas entre os classificados para o Terceiro Turno. A Flamengo, Fluminense, Botafogo e Vasco se juntam o Bangu de Zizinho e o América.

* * *

Domingo, 10 de janeiro de 1954. O jogo desta tarde irá sinalizar o desfecho da quarta e penúltima rodada do Terceiro Turno do Campeonato Carioca de 1953. Quer o destino que se enfrentem justamente as duas únicas equipes que ainda reúnem chances de conquistar o título. Com efeito, após o contundente 3-1 aplicado pelo Bangu no Fluminense, que eliminou o tricolor, apenas os dois adversários de hoje ainda podem gritar “é campeão”.

Flamengo e Vasco.

Embalado pela emocionante conquista da vaga para a Final, o Flamengo atropela seus adversários neste turno. Em três jogos, derrota Fluminense (2-1), América e Bangu (2-0 cada). Lidera também este turno, com 6 pontos. Se conseguir vencer o Terceiro Turno, torna-se campeão antecipado sem a necessidade de Final, já que ganhou também a fase inicial.

Ao Vasco, vice-líder com quatro pontos, resta vencer o clássico de hoje, igualar-se ao rubro-negro e, na última rodada, tomar a frente e ganhar o turno. Para aí, tornar a medir forças com o Flamengo na Final.

Ou seja, simplificando as coisas: o Flamengo, vencendo, conquista o Carioca por antecipação. O Vasco, ganhando, mantém chances de ganhar o Terceiro Turno.

* * *

Tarde de festa. Uma multidão aflui ao Maior do Mundo e estabelece o recorde nacional de arrecadação, Cr$ 2.108.312,90, superando a marca de outro Flamengo x Vasco disputado no campeonato anterior. Antes do jogo, uma delegação de índios xavantes se apresenta no centro do gramado com danças típicas e evoluções folclóricas, arrancando aplausos da descomunal massa que espera nervosa pelo jogão. Logo depois, os índios abordam, sôfregos, os jogadores, para tietar, desejar sorte e tirar fotos de recordação. A questão é que os jogadores procurados são os do Flamengo.

O Vasco, atual campeão, está escalado com Oswaldo, Bellini e Haroldo; Ely, Mirim e Jorge; Maneca, Ipojucan, Ademir, Pinga e Alvinho. O Flamengo, finalista do campeonato e líder do turno, vai a campo com Garcia, Marinho e Pavão; Servílio, Dequinha e Jordan; Joel, Rubens, Índio, Benítez e Esquerdinha.

16:15. O árbitro inglês Mr. Harties trila o apito. Tem início o espetáculo.

Desde o início, o Flamengo toma a iniciativa e as rédeas da partida. Desenvolve seu jogo vertical, veloz, de deslocamentos rápidos e incessante busca por finalizações de qualquer lugar do campo. Fleitas Solich costuma dizer que o meio-campo é local “de passagem” da bola, não “de retenção”. E seu time, agora muito bem treinado após meses de preparação, reflete à risca esse pensamento. E, com ótimo preparo físico para suportar o calor escaldante (também resultado dos métodos de Solich), o Flamengo amassa e imprensa o Vasco para dentro do seu campo. O primeiro gol parece mera formalidade.

12 minutos. Esquerdinha chuta forte, Oswaldo rebate meio atabalhoado, a bola sobe e, na caída, o zagueiro Jorge se atrapalha com um colega e cabeceia contra suas próprias redes. Está aberta a contagem. Flamengo 1-0.

O Vasco não respira, não joga, não age. Esmagado por um Maracanã que urra pelo fim de uma amarga era, luta arduamente por sua sobrevivência, enquanto o adversário desfere sistematicamente petardos e arremates contra o gol de Oswaldo. O goleiro vascaíno já começa a se destacar.

Aos 26 minutos, Ely investe esbaforido para desarmar a bola de um contrário. É driblado e acaba sendo trombado com força pelo pesado Bellini. Com o choque, arrebenta o nariz e torce o tornozelo. Está fora da partida. Como não há substituições, o Vasco terá que ficar com dez. É o golpe de misericórdia.

31 minutos. Oswaldo espalma mais um forte chute adversário, mas a bola vai aos pés de Índio que, oportunista, não perdoa. Flamengo 2-0.

O Flamengo tem fome e não especula. Segue qual uma seta, virada exclusivamente em direção ao gol do rival. Alimenta-se de um Maracanã que canta marchas e quadrinhas enquanto mantém o gramado fervendo. Dequinha e Rubens, os solistas deste espetáculo, seguem regendo a orquestra flamenga em ritmo acelerado, sem conceder ao rival a clemência de um instante de pausa. E as bolas continuam crivando o corpo do infeliz arqueiro cruzmaltino.

45 minutos. Vai terminar o primeiro tempo. Agora é Benítez que recebe na intermediária, livra-se de dois defensores e resolve mandar de longe. Tiro rasteiro, seco. E, dessa vez, Oswaldo, talvez traído pela estafa anímica, acaba falhando numa bola defensável após operar tantos milagres. A bola pousa, serena e macia, no fundo das redes. Flamengo 3-0.

Está definido o Campeonato Carioca de 1953. O que se segue a partir daí é mera formalidade.

No segundo tempo o rubro-negro, saciado, altera a rotação. Passa a rodar a bola com malícia e sensualidade. Faz seu torcedor cantar feliz as memórias da infância. Promove quarenta e cinco minutos de um bonito festival de cantigas de roda e bailinho, onde o Vasco viceja como convidado de honra. Mas há um método nessa indolência. Girando a esfera pra lá e pra cá, cansa o adversário. Sabe que, com um a menos, três gols no coco e sob um sol escaldante, o Vasco não terá pernas para reagir.

Com efeito. O Vasco, num esgar de dignidade, ainda consegue o tal “tento de honra”, quando Ademir acerta violenta cabeçada, aos 16 do segundo tempo. Mas o cruzmaltino, esgotado, mal consegue concatenar alguma jogada. Seus atletas são facilmente desarmados pelos flamengos, que continuam, implacáveis, rodando bola a esmo, eventualmente agulhando a meta vascaína, mas, fundamentalmente, tendo como objetivo extenuar o rival.

Nos últimos cinco minutos, ao som de cantos de campeão, o Flamengo torna a aumentar o ritmo. E, aos 44, Benítez, num tiro colocado, crava a estaca no peito do rival. Flamengo 4, Vasco 1. O Flamengo, após nove longos anos, é o Campeão Carioca de 1953.

 Ao sibilar o apito do bom árbitro inglês, o Maracanã se torna o palco de uma celebração emocionada, em que se amalgamam gritos, lágrimas, suor e as doces e ternas risadas de um campeão. A festa jorra além da circunscrição do estádio, capilarizando-se por cada rua, cada beco, cada rincão da cidade e do país numa catarse que vara a noite. Sim, o Flamengo é campeão. Tudo parece, e está, mais feliz, mais leve, mais poético.

Finalizado o campeonato (o Flamengo ainda derrota o Botafogo por 1-0 no “amistoso” da última rodada), os números da superioridade flamenga são eloquentes. O rubro-negro vence 21 dos 27 jogos disputados. Marca, nessas 27 partidas, um total de 77 gols. Concede 27 tentos, cravando as marcas de melhor ataque e melhor defesa do certame. Esculpe o nome de três jogadores (Benítez, Índio e Rubens) entre os cinco principais goleadores da competição. O futebol apresentado é tido pela crônica como moderno, objetivo e dissociado de tudo o que se convencionou identificar como vício no nosso futebol.

Mal se sabe que é apenas o início da trajetória de um time que marcará história, sendo lembrado como um dos melhores que apareceram nos gramados cariocas e brasileiros. Um time cuja forma de jogar e de treinar se espraiará para além das fronteiras da Gávea.

O Rolo Compressor.