quinta-feira, 27 de maio de 2021

A MAIOR EMOÇÃO DA MINHA VIDA


Texto de  Leonardo Barroso  

Antes de qualquer mal-entendido, e de que tome uma bronca da patroa, quero dizer que até hoje, a grande emoção de minha vida foi nosso casamento. Mas o casamento é uma grande emoção que vem aos pouquinhos, em várias pequenas doses, desde o pedido em si, da marcação da data, até a chegada do grande dia, a festa e tudo mais que vem de bom depois. É mais ou menos como um grande porre resultado de várias doses modestas, contudo constantes, de whisky durante uma festa. Nunca conseguimos lembrar do momento específico no qual ficamos bêbados, é o somatório de todos goles que nos derruba. Disse até hoje pois ainda não temos filhos, que dizem ser a maior emoção de todas, então posso apenas supor, no entanto sem grandes certezas, que a emoção da paternidade também deve estar no resultado da soma de muitos momentos mágicos, ao longo de muitos anos. 

No entanto, a emoção que conto aqui não é nenhuma destas tradicionais, importantíssimas, porém que adquirimos em suaves prestações ao longo do tempo, mas sim daquelas que vêm toda num só jorro de adrenalina, endorfina ou sabe-se lá que outras inas. Cai como um raio sem aviso. Aquela explosão de emoção-bomba avassaladora, homicida até, pois se o coração de quem a sentiu não for forte, dá boot na mesma hora. 

- Coitado, morreu de que? 

- Pela cara, de alegria! 

Contudo, aparentemente, o meu conseguiu sobreviver sem grandes seqüelas, já que ainda bate no meu peito enquanto escrevo, mas confesso que nem sei como resistiu, já que, como vou relatar aqui, a emoção que senti foi destas de arrancar os olhos das órbitas e as meias dos pés. 

Dito isso, tecnicamente talvez o título devesse ser "a emoção mais arrebatadora da minha vida", ou "a mais explosiva", mas como ficaria um troço meio afrescalhado, fica mesmo o título que já está. 

Ainda nas preliminares, também já tinha recebido ótimas notícias na minha vida que trouxeram emoções fabulosas, como quando soube que minha mulher, na época ainda namorada, havia sido resgatada sã e salva depois de um dia e uma noite perdida na Floresta da Tijuca. Ou quando eu próprio consegui encontrar nosso cachorro após ele ter ficado perdido (já virou tradição na família) vagando por toda Itaipava por uma noite inteira, com direito a relatos de seu atropelamento no meio da busca. Mas finais felizes como esses são sempre esperados, já que é nosso dever manter sempre o pensamento positivo nessas horas, nem imaginando desfechos diferentes. No entanto, a emoção sentida que vou contar agora, não trouxe resultados tão importantes quanto aquelas, chega a ser uma besteira até. Mas talvez seja exatamente por essa sua diferença das demais, por se tratar, ao contrário das outras, do inesperado e do imponderável, combinado com uma experiência quase mística, que a fez ser tão marcante e tão avassaladora. 

Então, sem outros desvios ou retornos, passemos à tal maior emoção da minha vida. 

Aconteceu em 27 de maio de 2001. Naquela tarde de domingo, como na música, fui ao Maracanã, acompanhado, como sempre, pelo Meio Quilo, amigo de duas décadas e companheiro da tantos carnavais fora de época que o Flamengo nos proporciona nas arquibancadas do maior do mundo. E o carnaval daquela tarde prometia. Era a finalíssima do que poderia ser o tri estadual. 

Era um dia muito especial para mim. Mesmo se o Fla conquistasse o título, contra todas as previsões dos que taxavam o Vasco como favorito, ainda mais contando com a vantagem de poder perder pela diferença de um gol, seria a primeira comemoração de título que, por causa dessas porradas que a vida de vez em quando nos dá, não poderia telefonar para a primeira pessoa para a qual sempre telefonava nas conquistas do Flamengo: meu irmão Ricardo, que em datas como essa sempre atendia ao telefone já dizendo "Mengão campeão, boa noite!". Ricardo sempre combinava de me encontrar nas comemorações no Clipper após os títulos, mas depois de tanta emoção e cerveja, o sono batia e ele acabava furando nossa arruaça na rua e comemorava em casa mesmo, com seus filhos pequenos. Então, voltando ao grande dia, entrei no estádio com uma latinha na mão, meu amigo do lado e meu irmão no coração. 

Aquela experiência mística que mencionei já começava a se anunciar. Antes, abro parênteses: sou ateu ortodoxo, agnóstico praticante, cético de carteirinha e descrente fanático. Encarno em quem vai à cartomante, saio de perto de papo sobre "outras vidas", não sei nem quero saber qual é meu ascendente, e só jogo tarô se for no lixo. Explicada então à minha suscetibilidade natural a experiências místicas, fecho parênteses. Sentamos atrás do gol da torcida do Flamengo. Para quem não sabe, ali fica a arquibancada verde, a mais popular, já com seus assentos individuais de plástico recém instalados, em um dos lugares mais crowdeados do Maraca. Imagina então numa final, contra o Vasco, valendo o tri. O tri! Pois bem, o Estádio Mário Filho foi lotando, aquele mar de gente inundando as duas torcidas, público anunciado de 60.038 pessoas, o Meio do meu lado direito, e o assento do meu lado esquerdo... vazio. Sessenta mil pessoas se apertando lá e aquele assento vazio. Cacete! Até o cara mas antiesotérico do mundo ficaria meio bolado com um negócio desses. Então tá. Negócio fechado. Ali era o lugar do meu irmão e não se fala mais nisso. 

A bola rolou no solo sagrado, e eu fiquei ali, conversando com a boca para o lado direito, e com o pensamento para o esquerdo. A nação rubro-negra ali presente, fazia barulho, mas, considerando que é sempre a que dá mais espetáculo, de um jeito meio tímido. Um esporro baixo, meio ressabiado. Afinal, ter que ganhar de dois gols de diferença numa final é soda. E a bacalhoada do outro lado fazendo a festa, já contando com a taça na mão. Só que aos 21 minutos de jogo, explodiu a torcida do mengão. Pênalti convertido pelo Edílson. A festa passou de lá para cá, até o Juninho Paulista empatar aos 40. Banho de água fria para o intervalo. Hora de comentar o jogo e xingar todo mundo da partida. O segundo tempo começou e logo aos 8 minutos, o Petkovic que nos treinos nem olhava para cara do Edílson, no jogo olhou para a testa dele, e botou a bola, num cruzamento em câmara lenta, bem no meio dela. Com todo o açúcar. E a testa do Capeta, agradecida pela doçura, empurrou a bola para as redes. Valeu a esperança, a alegria voltou à nossa torcida. Depois dos abraços no Meio e em mais uns 20 desconhecidos, comemorei silenciosa e particularmente com meu irmão ali do meu lado. Até que o tempo foi passando e ninguém comemorava mais, nem de cá, nem de lá. A cada minuto que passava a torcida do Vasco da Gama ficava mais perto do título, mas a ferida de um bi-vice ainda aberta e o temor de um gol algoz durante a pressão que o time rubro negro fazia, deixava a todos calados. A torcida do Flamengo, por sua vez, ansiosa por um milagre, um gol salvador nos últimos minutos também não emitia um som. Talvez porque estava toda ela rezando. Toda ela menos eu, que sou ateu. Ou era, já nem sei mais. Sessenta mil pessoas lá oprimidas por uma calmaria pesada no ar silencioso. Mas era a famosa calmaria que procede a tormenta. Em alguns poucos minutos, qualquer um dos dois lados do Maracanã expulsaria o silêncio com o grito de "é campeão". 

Então finalmente, depois de 8 parágrafos, chegamos àquela já famosa maior emoção da minha vida. Estava lá eu sentado, a cinco minutos do fim da partida. Desesperado. Eu e a torcida do Flamengo. E nesse caso, a expressão fica com um significado ainda maior: eu, a torcida do Flamengo e a torcida do Vasco. Desespero geral. Falta para o Fla bater. Como toda a falta perigosa em final de jogo, confusão generalizada, horas para se posicionar a bola. Foi então que virei para meu lado esquerdo e falei: Ricardo, sua companhia foi ótima, mas está na hora de você fazer alguma coisa. Então, na minha cabeça, fiquei imaginando meu irmão se levantando e começando a descer as arquibancadas em direção ao campo. Imaginei aquele pulo que só irmão caçula acredita que o irmão maior pode dar, e meu irmão sobrepujava o fosso que separa a geral do campo e pisava o gramado. Nessa altura o Pet já se posicionava para cobrar a falta. Foi aí que aquela cena que eu imaginava começou ficar tão real. Aos 43 minutos de jogo, do lado do camisa 10 do Flamengo estava meu irmão. Cada detalhe em seu rosto tão nítido como eu havia visto pela última vez há 5 meses e 3 dias atrás. Cada fio da sua barba estava lá. E ele me olhava com um sorriso largo, de orelha a orelha, seus dentes brilhando e com o braço e o polegar em sinal de positivo levantados. Ele não tinha uma expressão apenas confiante, tinha uma expressão exultante, esfuziante, quase uma gargalhada de alegria antecipada de quem já tinha certeza do que aconteceria. 

Foi quando aquela bola chutada lá do meio da rua, não sei se por um pé ou por dois ao mesmo tempo, fez uma curva impossível no ar e entrou no gol. Se furasse a rede e subisse um pouco mais, batia na minha cara. Foi ali, naquele momento, que se meu coração tivesse 7 vidas teria perdido 6 de uma vez. Desde a perda de meu irmão, repetia para mim mesmo a cada cinco minutos que tinha que ser forte o tempo todo, segurava a tristeza para tentar superar a perda e ajudar a cuidar de quem e do que ficou. Aquele sinal de positivo da imagem do meu irmão foi como se ele estivesse me liberando dessa obrigação. Como se estivesse agradecendo a força, me dando um tri de presente, e me liberando para me emocionar. Confesso que nem vi a comemoração nem mais lance nenhum do jogo. Nem do tempo regulamentar e nem dos descontos. Caí sentado, com o rosto enterrado no manto sagrado e chorei. Chorei muito. Até muito depois do apito final, molhava e melecava minha camisa do Flamengo toda. Vários desconhecidos, não sei se já informados pelo Meio, vinham me abraçar e me consolar e eu ali chorando sentado sem nem conseguir levantar a cabeça. Estavam ali juntos o místico, o inesperado e o imponderável, todos de uma só vez, de modo arrebatador e explosivo, gerando a maior emoção da minha vida.