terça-feira, 13 de outubro de 2020

O Xadrez Rubro-Negro (Por Hiago Faria)


Bom dia senhores da turma mais bem-vestida desse país. 
Desde a chegada de Jorge Jesus no Flamengo, o debate sobre tática ficou absurdamente relevante nesse sagrado recinto. Talvez seja porque antes, simplesmente queríamos o time jogando pra cima, não importava muito o método, ou ainda porque fomos levados a acreditar que futebol estratégico e coletivo eram coisas de Europa, intangíveis em terras tupiniquins. 

E agora, com o Domenéc o debate se acirrou, tanto com o choque de ideias, já que passamos do leite à carne em 2019, como em conceitos que por muitas vezes são mal divulgados por profissionais do jornalismo, que parecem não ter muito compromisso com a informação no seu sentido estrito, e fazem da opinião o seu ganha pão. 

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Dito isso, gostaria de comentar um pouco de estratégia e tática, da visão de um amante do xadrez, o esporte (sim, polêmico!) mais estratégico de todos. 

O xadrez emula uma guerra medieval em um tabuleiro. 
Em campo estão representados as forças dos exércitos (infantaria e cavalaria), da religião, dos casamentos reais, e dos feudos (muralhas). 

Seu maior objetivo é sitiar o monarca inimigo, sem, jamais desguarnecer o próprio rei.


Quando se começa, aprende-se quais são os movimentos que cada peça executa. 

Quando se quer melhorar, então, busca-se os livros para aprender movimentos, conceitos, e regras que devem reger o seu estilo de jogo.  
O jogo então, para os estudiosos, se divide em três momentos: abertura, meio-jogo, final. 

ABERTURA são sequências de movimentos iniciais do jogo de xadrez, lógicos e geralmente memorizados, mas extremamente adaptáveis, desenvolvendo-se as peças de forma a garantir uma disposição sólida de defesa e um ataque eficiente.

No MEIO-JOGO é onde acontece a mágica. A maioria das partidas é decidida no cálculo (capacidade de identificar temas táticos e olhar alguns lances na frente, com precisão).
O jogador de xadrez estuda uma série de temas como

- Ataque a Descoberto
- Distração
- Rei exposto
- Ataque Duplo
- Peça Pendurada
- Peça Sobrecarregada
- Peça Cravada
- Sacrifício
- Simplificação
- Espeto
- Afogamento
- Peça Encurralada

E então ao identificar uma fraqueza, começa a calcular em quantos lances consegue executar tal tema e conseguir vantagem, e se o adversário terá resposta a tempo para se defender. Aqui é onde se diz que os jogadores conseguem enxergar até 7, 8, 10 lances no futuro. É onde se tenta adivinhar o que o adversário fará, ao mesmo tempo que o adversário tenta enxergar fraquezas suas e calcula quantos tempos precisa para conseguir. É a verdadeira guerra mental de quem enxerga o melhor lance e executa com mais eficácia. 

O FINAL refere-se ao estágio do jogo onde poucas peças permanecem no tabuleiro. São movimentos mecânicos, para cercar o rei adversário, quando em vantagem. 

E é desse ponto que quero fazer paralelo com o futebol. A partir desse momento, vamos considerar que o técnico do time de futebol é o comandante do exercito (elenco) no tabuleiro. 

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Aprender como as peças se movimentam no tabuleiro, é a mesma coisa de mostrar aos jogadores o que ele espera de cada um em sua posição. Quais são as obrigações dos zagueiros, laterais, e atacantes, são os movimentos conhecidos como FUNDAMENTOS.

Eu imagino que não seja difícil treinar Linha de impedimento. Como também não é dificil treinar um atacante a fazer pivô, ou um ponta fazer ultrapassagem. 

Mas se esses movimentos não acontecem de maneira correta, também é culpa do técnico. No xadrez, fazer um lance não permitido com uma peça pode te punir desde perda de tempo no relógio até eliminação da partida. 
No futebol, se seus jogadores não dominam os fundamentos, pouco importa treinar o restante da tática. 


A ABERTURA no futebol seria como o conceito de jogo, esse eu acredito que seja definido não só pelo técnico, mas pela diretoria, pelo clube. 
No xadrez existem os jogadores que só jogam "e4" como lance inicial uma vida inteira! É como se fosse a identidade, como se encara o jogo. 

Existem N formas de se jogar futebol, mas no Clube de Regatas do Flamengo, a regra é jogar pra frente, se impor. E é por isso que não conseguimos nem supor Fábio Carille como técnico do Flamengo, ou Celso Roth, ou qualquer outro, mesmo na época que os retranqueiros estavam em alta.

Mas além disso, a ABERTURA indica muito como vamos posicionar nossas peças para a guerra antes da pancadaria começar. Entra então a análise ao adversário. No xadrez quando se vai jogar contra alguém que é conhecido por se defender com Defesa Siciliana, é mandatório estudar todas as variantes possíveis que podem dar vantagem nessa posição. 

Logo, após treinar os fundamentos, e definir o estilo de jogo é preciso estar preparado para explorar as debilidades do adversário! 

Como isso é feito no futebol? Estudo! Analistas de desempenho, scouting, é algo extremamente amplo! O maior exemplo recente que eu conheço disso é no inesquecível CINCUNNN. Jorge Jesus sabia que o Grêmio marcava individualmente em bolas paradas. Então, fez seus jogadores aprenderem a fazer "bloqueio" de basquete com movimentações de ultrapassagem nos próprios jogadores do Flamengo, e assim, sairam 3 gols de bola parada naquele jogo. 

A abertura tem muito a ver com Pré-Jogo, preparação para momentos específicos da partida. 


E o que seria o MEIO JOGO no futebol?

Consigo enxergar vários temas táticos a se estudar, que devem ser parte da "biblioteca" do coletivo não importa o adversário. Não sei dizer qual é a biblioteca completa do futebol... afinal eu não me preparei para isso nem sou profundo conhecedor. Apenas um entusiasta. 

Por exemplo como explorar situações de 
3x2. 
4x3 
O que fazer nos contra ataques, determinando exatamente para onde cada peça deve correr, e para onde a bola deve ir a cada momento. 

Vou colocar abaixo alguns videos de como esses treinos geralmente são feitos, que estão disponíveis no youtube. 

https://www.youtube.com/watch?v=LAWmjFC6398  - Guardiola treinando como quebrar ultima linha

https://www.youtube.com/watch?v=x6qnRAadbmI - Coudet treinando troca de passes em espaços apertados. 

https://www.youtube.com/watch?v=UAfbIkL-BhA - Sampaoli treinando a marcação alta.

https://www.youtube.com/watch?v=G8wNTGX78kA - Olive Glasner treinando Wolsburg como sair de uma pressão por meio do jogo posicional. 


No xadrez por vezes a oportunidade aparece, mas o jogador não vê, afinal ele ainda não sabe, e geralmente ela não volta mais. Ou não dá mais tempo. 

No futebol é preciso que os jogadores identifiquem o momento de utilizar cada uma das táticas, e com elas conseguirem o ganho "material" (superioridade numérica no ataque) ou "posicional" (vantagem de posição, seja ela quebra de linha, ou alguém livre). 
Essas táticas, ainda que não se tornem gol, vão minando o adversário. Todas as vezes que uma linha é quebrada, força alguém da zaga a se desdobrar, e logo, pressupõe que irá cansar primeiro do que o atacante. É o famoso correr certo/ correr errado. 

No xadrez é preciso calcular ao menos,  4/5 lances á frente. No futebol, é preciso captar mais coisas. Tanto tecnico como jogadores precisam "ler" durante o jogo onde as jogadas estão dando certo, quem está cansado, quem tem cartão, quem "perdeu a cabeça", qual jogador está num dia iluminado, quem não tá bem.  e usar isso para aplicar a tática certa, e no local correto. E nisso está a mágica do futebol!

É responsabilidade do técnico fazer com que todos os jogadores do elenco DOMINEM  toda a biblioteca de táticas que serão utilizadas. Ler as táticas que os adversários dominam, e preparar o time para se defender dessas táticas durante a semana. É assim que ataque e defesa funcionam. 

E do FINAL de partida do xadrez eu gostaria de ressaltar a frieza. 

Todo jogador de xadrez que passa do nível iniciante sabe todas as variantes de cheque-mate possíveis. Mas nem sempre conseguem executar, mesmo com a partida já "ganha". Isso porque o final de partida não admite erros. 

Então gostaria de ressaltar algo que meu mestre no xadrez sempre me ensinou. Frieza. 
Cabe ao técnico ensinar ao time "gelo no sangue". Identificar jogadores "clutch master".
Clutch Master é uma definição americana para o homem da cesta que zera o cronometro na final da NBA, ou para o Corredor que vai receber o arremesso da ultima bola do Super Bowl. Em portugues raso, o cara que não treme na base na hora H. 

É responsabilidade da comissão técnica manter a mentalidade do time no mais alto nível de modo que a concentração seja regra, que não existam erros e que, ainda que aconteça algo fora do planejado, o jogo não saia do controle. 
E que o time saiba quem são os jogadores que devem receber a bola nos momentos decisivos. Acredito que isso também seja responsabilidade do técnico decidir. 

Ter alguém que trabalhe o psicológico da equipe é obrigação para todos que querem se manter no topo!

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Abro o espaço para o debate, caros amigos com algumas perguntas:

- Quanto tempo será necessário para fazer tudo isso acontecer?

- Quantos de nossos concorrentes pensam algo perto disso no Brasil, e na América do Sul?

- Estamos em boas mãos?

 

A palavra está com vocês, SRN, 
Hiago Faria.