segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

A Tragédia do Ninho. Minhas Considerações

Rio de Janeiro, quinta-feira, 30 de janeiro de 2020. As redes sociais já reverberam a preocupação com a tempestade que chegou forte, com raios e ventos que atingiram 76 Km/h, deixando a cidade em estado de atenção. Grandes árvores arrancadas da raiz, rios de correnteza forte sendo formados em plena urbe, várias perdas patrimoniais. Porém, até aqui, felizmente, as perdas não se aproximam da tragédia de Belo Horizonte, que, até terça-feira, dois dias antes, atingiam a calamitosa marca de 53 (cinquenta e três) vidas humanas (!). A cada prenúncio de tempestade, a população das grandes capitais da Região Sudeste tenta evitar o pior.

Não é preciso o menor esforço para constatar que as tragédias nessa região vêm se repetindo ano a ano, nos primeiros meses, quando as intempéries climáticas se associam ao caos urbano. Como de costume, na imprensa, que adora abocanhar um gordo contrato de publicidade estatal, fala-se mais sobre os efeitos do que sobre as causas. Pouco ou nada se fala sobre quanto se arrecada a título de impostos e quanto e como chega a ser aplicado em prol dos cidadãos. Governantes e beneficiados pelos desvios são poupados, assim como os Tribunais que costumam protegê-los. 

Até a tragédia do ano que vem.

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Quando, na madrugada do dia 8 de fevereiro de 2019, um curto-circuito no sistema de ar-condicionado do módulo transitório, já desativado e onde então se alojavam os Meninos do Ninho, provocou o incêndio que vitimou fatalmente 10 (dez) daqueles jovens, o destino talvez tenha lançado sua ira no local menos desprotegido da região. Mas o que são os nossos conceitos humanos de justiça diante do que está além da nossa compreensão?

De minha memória, jamais sairão a pressa e a politicagem do ex-presidente Eduardo Bandeira de Mello na precipitada inauguração do novo módulo profissional do Centro de Treinamentos.

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O que provocou o curto-circuito? Mais de uma causa? O sistema de ar-condicionado era inadequado? Foi sobrecarregado por alguma falha de manutenção que tenha causado as quedas de energia na região? Até onde vai a responsabilidade de cada um?

O inquérito policial instaurado para apurar a prática de crime nos fatos que antecederam a tragédia foi concluído pela Polícia Civil, porém o Ministério Público, fazendo uso da prerrogativa prevista no artigo 16 do Código de Processo Penal, requisitou esclarecimentos que considerou imprescindíveis para a formação de seu juízo sobre os fatos (opinio delicti). Quando assim age, o Ministério Público exerce, na modalidade difusa (existe também a concentrada, que não vem ao caso), a função do controle externo da atividade policial, atribuída pelo artigo 129, VI da Constituição. O procedimento é tão corriqueiro que é previsto pelo antiquíssimo Código de Processo Penal e pela atual Constituição. Mais natural ainda é que se dê em um caso de tamanha complexidade, no qual um incêndio destruiu os vestígios sobre os quais se debruça o trabalho pericial.

Digna de nota, porém, é a observação feita pelo advogado e vice-presidente do Flamengo, Rodrigo Dunshee, na entrevista gravada de sábado, com relação ao tempo que durou a investigação feita pela polícia judiciária no caso, antes do Ministério Público requisitar mais diligências. 

Teria sido célere demais?

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O incêndio produziu efeitos em diversos ramos do Direito. Gerou direito a indenização por danos materiais e morais (CF/88, art. 5º, X e Código Civil, arts. 186, 187 e 927) no âmbito cível, porém a condenação criminal transitada em julgado também gera a obrigação de indenizar (Código Penal, art. 91, I). Em razão disso, podem promover a execução da condenação criminal, no cível, para efeitos de reparação do dano, o ofendido, seus herdeiros ou representante legal (Código de Processo Penal, art. 63). Aliás, a nova redação do artigo 387, IV do Código de Processo Penal possibilita que o juiz, na sentença do processo criminal, ao proferir a condenação, fixe o valor mínimo devido a título de reparação de danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido. A jurisprudência limitou a aplicação do dispositivo aos casos em que o valor do dano tenha sido discutido ao longo da instrução criminal em juízo, sob o crivo do princípio da ampla defesa (Constituição, artigo 5º, LV). Tudo indica que o Ministério Público provocará essa discussão no curso da ação penal.

O ofendido (no caso, as famílias) não precisa esperar a conclusão do processo criminal (o que demora anos) para ingressar em juízo pedindo a reparação de danos, porém o juiz do cível poderá suspender o processo cível até a conclusão definitiva do processo criminal (Código de Processo Penal, artigo 64, parágrafo único). E quando o ofendido for pobre (hipossuficiente), a execução da sentença condenatória penal ou a ação civil poderá ser promovida, em seu favor, pelo Ministério Público (Código de Processo Penal, artigo 64), sem prejuízo da Defensoria Pública. Nenhum deles impede o ofendido de constituir o próprio advogado e ajuizar ação pedindo a reparação de danos.

Percebem como o cenário é complexo e como as esferas cível e criminal estão ligadas em sede de reparação de danos? É fácil concluir, portanto, que a petição inicial de ação de reparação de danos (indenizatória), quando instruída com um laudo pericial e depoimentos produzidos pela polícia judiciária, terá muito mais fundamento jurídico do que outra instruída com boletins de ocorrência e reportagens da imprensa, por melhores e mais fundamentadas que sejam. Tão óbvia quanto essa primeira conclusão é a de que o ofendido que dispuser de um laudo comprovando a ocorrência do dano, assim como a relação de causalidade com a ação de quem provocou o evento danoso, terá muito mais força persuasiva em uma negociação extrajudicial que anteceda o ajuizamento da ação. 

É bem possível que a maioria das famílias que escolheram constituir advogado e reivindicar valores mais altos do que os oferecidos pelo Flamengo, orientada por esses profissionais, esteja aguardando a conclusão do inquérito policial para evitar o litígio (conflito de interesses submetido a julgamento pelo Poder Judiciário). O Ministério Público tentou se antecipar a todo  esse cenário, porém não conseguiu fechar os acordos nos termos, valores e condições que propôs. Por certo, como já expliquei, provocará essa discussão durante a instrução do processo criminal, porém, observem, em relação a pessoas físicas e não ao Flamengo, que não responderá criminalmente... (no Brasil, pessoas jurídicas respondem apenas por crimes ambientais). Provada a responsabilidade do funcionário ou preposto, no exercício de suas funções, obrigado estará o empregador (pessoa jurídica, no caso) a ressarcir o dano (Código Civil, art. 932, III e art. 942, parágrafo único).

Nesse mesmo cenário, a classificação jurídica que o Ministério Público e o juiz de primeiro grau derem aos fatos, especialmente sobre a ocorrência de homicídio doloso ou culposo por parte dos causadores do incêndio, também poderá ter importante influência na valoração do dano. Envolverá, ainda, qual versão ficará na História sobre a responsabilidade da instituição Flamengo.

Agora me respondam uma pergunta: é impossível para um jornalista consultar um bom jurista e explicar esse contexto ao público? Quantas matérias vocês leram a esse respeito? A imprensa, quando seleciona e filtra informações de seu público, segundo seus próprios valores e visões de mundo, recorta a realidade e converte-se no órgão de censura que tanto teme.

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Concordo com os que dizem que os atuais dirigentes do Flamengo tratam alguns aspectos desse episódio de maneira excessivamente formal e "empresarial", daí ser, em uma certa medida, justa a acusação de que estão agindo "com frieza". Cito como exemplo a recente dispensa dos jovens sobreviventes.

Todavia, nem tanto ao céu, nem tanto à terra, pois chegar a um consenso sobre o valor devido às famílias não é tão simples como alguns dizem, assim como pesada é a responsabilidade que nossos dirigentes carregam sobre seus ombros em todo esse processo.

Como reparar financeiramente a perda, pelos familiares, da vida de um ente querido? O dinheiro pode de alguma maneira reparar a dor?  A reposta é negativa para ambas as perguntas. O dinheiro pode, no máximo, viabilizar que as famílias acessem os melhores meios que lhes propiciem lidar com o luto, de modo a que consigam seguir suas vidas da melhor maneira possível. 

O debate, então, inevitavelmente se direciona para valores. Qual será a origem da discordância? Será que o Flamengo (ou sua Diretoria) está sendo desumano?

Desconheço precedente em nível mundial no qual dez jovens tenham morrido incinerados em um centro de treinamentos de divisões de base de um clube de futebol. Em razão disso, outras tragédias terão que ser utilizadas com balizas iniciais (referências) para o cálculo do valor devido a título de reparação de danos. Não será a mesma coisa, mas certamente haverá diversos pontos em comum, como no caso da também recente tragédia de Brumadinho/MG, quando centenas de famílias morreram soterradas por rejeitos de mineração.

O que me parece claro como a luz do sol é que o Flamengo não só pagará, como de fato já está pagando (R$ 10 mil mensais por núcleo familiar) valores maiores do que pagará (?) a Cia Vale do Rio Doce, por diversos fatores. O apelo popular do futebol e o natural impacto emocional da frustração trágica do sonho de jovens (a maioria de baixa renda) vencerem profissionalmente em um grande clube, por culpa (talvez não exclusiva) desse grande clube, serão um desses fatores. Outro será a pura e simples rejeição que o Flamengo provoca nas torcidas adversárias (também composta por "profissionais" de imprensa), inversamente proporcional à paixão que provoca na sua, a maior do Brasil, das três Américas e do mundo. Até o litígio com a emissora que detém a maioria dos direitos de transmissão de futebol no país complica a situação do Flamengo nesse cenário.

Sugiro que sequer tentem discutir a justiça ou injustiça desse quadro. São apenas os fatos e os valores que determinam como as pessoas se comportam em nossa sociedade. O torcedor rubro-negro precisa, antes de tudo, aprender a lidar com essa realidade, assimilando que agressões e provocações, advindas de jornalistas ou de torcidas rivais, são tão inevitáveis, quanto fúteis diante de um contexto muito maior, mais sério e bem mais complexo.

De minha parte, acho que o Flamengo precisa ser generoso e tentar fechar os acordos com a maior celeridade possível. Contudo, ao mesmo tempo, sem mais informações sobre os valores oferecidos e recusados e o contexto no qual estão ocorrendo as negociações, não consigo mensurar se está ou não fazendo esse máximo esforço e nem tampouco, em contrapartida, até que ponto advogados, movidos pela ganância, manipulam famílias extremamente fragilizadas emocionalmente. O anunciado valor de R$ 9 milhões (!), a ser pedido em juízo por uma das famílias, ao lado de indícios de que houve recusa de propostas de R$ 2 milhões (por família), levam-me a ter cautela nessa avaliação. O quadro atual não me permite concluir, como muitos fazem, que o Flamengo é o grande entrave para os acordos.

Meus pensamentos e minha torcida são pela conciliação e a superação, jamais o esquecimento.

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"No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado; porquanto és pó e em pó te tornarás." Gênesis 3:19

Não pretendo voltar a esse assunto. Doravante falarei sobre futebol.

A palavra está com vocês.

Bom dia e SRN a tod@s.