quarta-feira, 8 de maio de 2019

Alfarrábios do Melo

Certa vez, um escorpião aproximou-se de um sapo que estava na beira de um rio. O escorpião vinha fazer um pedido: “Sapinho, você poderia me carregar até a outra margem deste rio tão largo?” O sapo respondeu: “Só se eu fosse tolo! Você vai me picar, eu vou ficar paralisado e vou afundar.” Disse o escorpião: “Isso é ridículo! Se eu o picasse, ambos afundaríamos.” Confiando na lógica do escorpião, o sapo concordou e levou o escorpião nas costas, enquanto nadava para atravessar o rio. No meio do rio, o escorpião cravou seu ferrão no sapo. Atingido pelo veneno, e já começando a afundar, o sapo voltou-se para o escorpião e perguntou: “Por quê? Por quê?” E o escorpião respondeu: “Por que sou um escorpião e essa é a minha natureza.”

* * *
Saudações flamengas a todos.

2004. Buscando soluções para a montagem de um time a partir de um elenco de baixo orçamento e visivelmente limitado, a nova Diretoria do Flamengo recorre a Abel Braga, nome em ascensão no mercado nacional de treinadores emergentes, com passagens bem-sucedidas pelo futebol português e com certa experiência (e alguns títulos) em equipes brasileiras, como Vasco, Botafogo, Atlético-MG, os três principais do Paraná, Vitória, Santa Cruz e Internacional, onde conseguiu o Vice Brasileiro de 1988 e chegar às Semifinais da Libertadores do ano seguinte.

Abel inicia a temporada com o seguinte time-base: Júlio César, Rafael, Júnior Baiano, Fabiano Eller, Roger; Da Silva, Ibson, Fábio Baiano, Felipe; Jean, Andrezinho.

Os resultados iniciais mostram-se preocupantes. É bem verdade que o Flamengo, pela Taça Guanabara, consegue uma virada espetacular sobre o Fluminense de Romário, Léo Moura e Ramón (desfalcado ainda de Edmundo e Roger Flores), revertendo de 1-3 para 4-3 um jogo em que o Maracanã ferve ao som de “Poeira”. Mas na sequência o rubro-negro acumula um psicodélico empate em Maceió em 4-4 contra o modesto CRB-AL, pela Copa do Brasil e, em Edson Passos, sofre virada semelhante ao do “Fla-Flu da Poeira”, ao ser derrotado pelo América pelos mesmos 3-4 do clássico. São ONZE gols sofridos em três jogos. O sistema defensivo da equipe, evidentemente, não funciona. É necessário agir.

E o treinador não titubeia. Saca Júnior Baiano, Andrezinho e Fábio Baiano da equipe, promove o retorno do veterano Zinho ao meio e efetiva o jovem Henrique na zaga. Na frente, o garoto Diogo (que estreara de forma retumbante, marcando quatro gols em dois jogos) ocupa o lugar de Andrezinho. Dá certo de início, mas Abel, sentindo a necessidade de compactar ainda mais o meio, saca Diogo e entra com mais um volante, no caso Douglas Silva. Felipe vai para a frente, jogar na ponta-direita. Com essa formação (e poucas variações), o Flamengo, com um time substancialmente defensivo, conquista, com inesperada facilidade, o Estadual e chega às Finais da Copa do Brasil, comandado por Felipe, que chega à Seleção. Depois, sucumbirá às limitações do elenco e do próprio treinador, o que foge ao escopo dessas linhas.

Mexer no que não está funcionando.

Passam-se quinze anos.

2019. O Flamengo mudou. Saneado e capaz de grandes investimentos, o rubro-negro monta um dos mais fortes elencos do país. Um plantel que, a despeito de alguns pontos fracos, reveste-se de plena capacidade de conquistar os principais títulos em disputa e, principalmente, quebrar um jejum nacional/internacional de taças que já avança para o seu sexto ano, marca sem precedentes na história recente do clube. E, para comandar um grupo formado por nomes como Arrascaeta, Gabigol, Bruno Henrique, Rodrigo Caio, Diego Alves, Everton Ribeiro, Diego Ribas, Vitinho, Cuellar etc, o rubro-negro recorre a Abel Braga.

Abel, que vê se aproximar o crepúsculo de uma carreira vitoriosa, Campeão Brasileiro, Continental e Mundial, é escolhido por seu perfil experiente e pragmático, capaz de trazer competitividade a um elenco que havia demonstrado, nas últimas temporadas, certa incapacidade de lidar com momentos de pressão extrema. A opção flamenga (decorrente da recusa de Renato Gaúcho à proposta do clube) é repelida pela torcida, que ansiava por um nome mais “antenado” e “moderno”, preferencialmente estrangeiro.

Cinco meses depois, a avaliação do trabalho de Abel Braga converge, na mais benevolente das abordagens, à sensação de que falta algo. Ao senso comum, é ruim mesmo. Bem ruim. Abaixo da crítica. Medíocre. A ponto de ter sua permanência no comando do clube seriamente questionada, mesmo (segundo alguns) em caso de classificação logo mais, na “guerra” contra o Peñarol em Montevideo.

O que está dando errado?

Abel sempre foi um expoente do tal “futebol reativo”, nome moderninho para designar as equipes que gostam de atuar retraídas, em velocidade, no contragolpe. Seus times, por mais qualificados que fossem, usualmente atuavam exercendo pressão inicial e, conquistada a vantagem no marcador, entrincheiravam-se atrás da linha da bola para, aproveitando o desespero do oponente, fustigá-lo e abatê-lo em estocadas certeiras. Ou, em contingência, “estacionar o ônibus” na porta da área e garantir o resultado com suor e sofrimento.

Assim o treinador construiu sua carreira. Assim ganhou e perdeu. Assim se fez admirado, respeitado, rejeitado e odiado.

Eis que a versão 2019 do “Abelão” resolve “reinventar-se”. O treinador, que cansou de suspirar à imprensa as virtudes do elenco flamengo, ao mais perfeito modo “ai, se eu te pego...”, acena com uma forma de jogo mais arejada. Marcação alta, pressão no campo adversário, triangulações e infiltrações dos lados do campo, jogo de posse de bola. Uma posse mais “nervosa”, vertical, mas, ainda assim, posse. Algo mais compatível ao perfil do elenco do Flamengo, e efetivamente ao que o rubro-negro tem apresentado, salvo exceções, nos últimos dois/três anos.

Problema é que Abelão nunca foi disso.

Esta coluna, publicada no dia da graça de 30 de janeiro de 2019, já questionava a possibilidade de Abel, ao fugir de suas características inatas, ver naufragar seu trabalho nas mesmas águas onde feneceu Muricy Ramalho, que em nenhum momento logrou montar uma equipe minimamente confiável. E a constatação é a de que esse risco é cada vez mais palpável. É bem verdade que o Flamengo de 2019 já conquistou algumas taças de relativa expressão (raivosamente defendidas pela nova Diretoria, ao melhor estilo “Mozer”. Como é mais fácil ser pedra…), algo de que Muricy sequer chegou perto. Mas, a exemplo do consagrado ex-treinador de São Paulo, Inter e Santos, Abel não consegue trazer equilíbrio à equipe, que se ressente de uma defesa exposta e vulnerável, que não transmite a mais remota confiança, sofrendo gols e mais gols sempre que fustigada (semana passada, quando o Flamengo pressionava para empatar o jogo contra o Internacional, cheguei a comentar num grupo de WhatsApp: 'se o Flamengo empatar, não vai demorar pra levar o segundo'. Não deu outra). Um time que até funciona quando se presta a pressionar. Mas que entra às raias do colapso quando confrontado e espremido em seu campo.

Repetindo o que se foi escrito por aqui, Abel não foi contratado pra dar espetáculo, pra emular o Flamengo de Coutinho, pra revolucionar o futebol brasileiro. Abel veio pra competir, guerrear e vencer, mesmo que jogando lateral na área. Pra fazer o que sabe. Estacionar ônibus e meter contragolpe. Seguir sua natureza. A partir do momento em que tenta emular uma forma de jogo cuja execução não é simples e com a qual não está habituado, cai na vala comum dos jovens imberbes ou dos nomes inexpressivos de mercado. Torna-se incapaz de repetir o desempenho de um Dorival. De um Barbieri. Porque não é a sua praia. Seu métier. Sua expertise.

Poderia mencionar as escolhas equivocadas e a repetição daquilo que sempre foi o ponto fraco de Abelão ao longo de sua carreira, no caso, a dificuldade de interpretar e interferir no que ocorre no gramado durante os 90 minutos. Seguramente dedicaria linhas e parágrafos para “enaltecer” a colossal bobagem em apostar num jogador inócuo como Willian Arão, um atleta de nível periférico que detém severas deficiências em todos os aspectos do jogo (técnico, tático, físico e mental). Um “volante” com índole de meia, cuja presença na equipe inviabiliza qualquer tentativa de se construir um sistema defensivo sólido e robusto. Há outras opções equivocadas (resiste em se desvencilhar de Diego, atrapalha-se com as posições de Gabigol e Bruno Henrique, demonstra aguda incapacidade em fazer Arrascaeta render etc), mas a insistência em Arão é o grande erro pontual de Abel Braga (repita-se, não o único). Que, ao contrário de 2004, resiste em identificar e corrigir.

Desnecessário pontuar que o contexto que enfeixa as coisas do futebol monta-se e se desfaz como nuvens. As verdades absolutas de hoje são desmentidas em minutos (como mostrou o hilário Grêmio 4-5 Fluminense, com o superestimado Fernando Diniz sendo “demitido” e “recontratado” um cacho de vezes durante o jogo). De qualquer forma, o ambiente rubro-negro segue fortemente carregado e adverso, quase hostil, à permanência de Abel Braga no comando técnico do plantel. Não acredito em demissão em caso de classificação no “Campeón del Siglo” (e vamos nos classificar, com toda a força da fé flamenga), mas igualmente não creio em um ciclo muito duradouro além disso. Ao primeiro tropeço, bandeiras e hashtags tremularão fortes e vibrantes, troando seus “Fora Abel” aos quatro cantos. Como tem sido desde janeiro.

Não que isso não possa ser mudado. Longe de ser fácil, está nas mãos de Abel Braga respeitar sua história. Aproximar-se de seu melhor. Ignorar as vozes que clamam pelo “jogo bonito” e passar a perseguir o jogo que sabe fazer funcionar. Abel precisa voltar a ser Abel. Entender que, mais importante que jogar pra frente ou jogar atrás, é jogar certo. Mais relevante que time propositivo ou reativo é o time que funciona.

Do contrário, sairá pela porta dos fundos.

* * *

Em tempo: caso a trajetória de Abel no Flamengo seja encerrada, que a Diretoria do Flamengo, tão diligente em enaltecer os fracassos da mal-sucedida gestão do Futebol no triênio anterior, adote CRITÉRIOS coerentes para escolher o próximo treinador. Que traga alguém sabendo o que quer e o que o contratado é capaz de entregar. Do contrário, daqui a três ou quatro meses estaremos tornando a esse tipo de discussão. Que já anda bastante cansativa, aliás.