quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Alfarrábios do Melo


Uma tarde qualquer no Centro do Rio.

Arandir caminha apressadamente em direção a uma agência bancária, onde irá penhorar uma joia. Subitamente, presencia o atropelamento de um desconhecido. Corre em direção à vítima, que agoniza. Tenta socorrer o moribundo, que somente encontra forças para sussurrar um derradeiro pedido.

E, atendendo à última vontade do morto, Arandir o beija.

A cena é presenciada por Amado Pinheiro, repórter policial de um desses jornais popularescos e sensacionalistas, que vê no incidente uma oportunidade. Amado convence o Delegado Cunha, velho parceiro, a interrogar Arandir. A seguir, conta em letras garrafais a história do beijo, enfatizando que ambos se conheciam. “Não foi o primeiro beijo. Não foi a primeira vez”. Pontua o aspecto lascivo do ato, afirmando que ambos mantinham uma relação homossexual.

Tem início um massacre. A notícia se alastra por toda a cidade. Arandir é achincalhado por todos, sendo defendido apenas por sua crédula e apaixonada esposa, com quem mantém um feliz casamento (em TODOS os aspectos) há menos de um ano. Ao lhe contar sobre os impropérios que escutou, Arandir ouve da esposa: “Por favor, quebre a cara de seus detratores. Vá lá e lhes dê na cara”.

As paredes de sua casa e o vidro de seu carro são pichados com letras garrafais: “VIADO”. Percebendo que o caso está rendendo, Amado Pinheiro prepara novos desdobramentos. Descobre que a viúva do atropelado tinha um amante, e a chantageia. Arranca dela um depoimento incriminando Arandir (“Eles estiveram lá em casa e tomaram banho juntos”). O sogro de Arandir, que lhe nutre um ódio irracional, afirma ter visto a cena, e carrega no suposto erotismo do ato.

No dia seguinte, o jornal “noticia” em sua primeira página: “Foi um crime passional. Arandir brigou com o amante e o empurrou em direção ao ônibus. Temos um pederasta assassino que deve ser justiçado.”

A barbárie se mostra conveniente a muitos. A Cunha, que vê a chance de desviar o foco de um recente escândalo em que teria maltratado tanto uma testemunha que a teria feito abortar. Amado vê a tiragem do jornal explodir (“claro que tenho provas. Digo, não tenho. Mas isso não importa.”). O sogro, que dá vazão a sua aversão por Arandir. E ao público, que encontra um bode em quem expiar suas frustrações. Catarse. (“o povo não quer perguntas. O povo quer um culpado”).

A história termina quando Arandir, após perder o emprego, a reputação, a credibilidade e a esposa, enfim perde a vida, depois de uma desconcertante reviravolta no enredo.

Essa é, em linhas gerais (abstraindo detalhes que, aqui, são irrelevantes), a história da peça “O Beijo no Asfalto”, escrita por Nelson Rodrigues em 1960.

Há certas obras que são atemporais.
* * *

Já vi vários desastres envolvendo o CR Flamengo. Assustado, vi o Plantão da Globo anunciar, num final de tarde, a morte de Coutinho. Ouvi de meu pai, tom grave, as notícias das mortes de Bosco e Figueiredo. Presenciei a cobertura da mais triste das Finais de Brasileiro, com torcedores despencando da marquise do Maracanã. Mas nenhuma, absolutamente nenhuma tragédia foi mais devastadora e mais cruel do que esse incêndio no Ninho do Urubu. Crianças.

Sou torcedor do Flamengo. A paixão pelo clube me ferve o sangue. Evidentemente, isso forma um viés de se posicionar ao lado dos “meus” em alguma lide. Flamengo Uber Alles, pregava Bastos Padilha. Eu juro que vou te apoiar no pior momento, canta nossa gente. Então, desde já me declaro privado de todo e qualquer átimo de isenção em qualquer assunto que diga respeito ao Flamengo. Como se fosse alguém da família.

Porém, a solidariedade não deve ser confundida com fanatismo. É preciso, diante de uma desgraça de tamanha amplitude, enxugar as lágrimas e buscar serenidade. Auto-crítica. Capacidade de entender, absorver, assimilar e, principalmente, aprender com os tombos e as quedas que se interpõem em nosso caminho.

É natural temos orgulho de nossas conquistas. No entanto, seja pelo nossa índole fanfa, seja pela grandiloquência que é afeta às coisas flamengas, gostamos de aumentar. De apregoar. De papagaiar. Treinávamos em um barrão, de repente temos o “melhor CT das Américas”. Que, dois anos depois, descobriu-se que não servia. E lá se vai erguer o “CT melhor que o do Chelsea”. Lá atrás, foi a “melhor piscina do Brasil”. Outro dia, a “academia mais moderna”. E coisa e tal, e tal e coisa.

Outro dia, o Ginásio Cláudio Coutinho pegou fogo. A Ilha do Urubu teve duas torres derrubadas. E agora, os garotos.

Atingimos mesmo esse tal nível de excelência?

* * *

Muita gente muito boa já tratou do assunto. Levantou, com seriedade, hipóteses e caminhos possíveis, linhas de investigação coerentes e afetas ao caso, com o qual se lidou com o cuidado e a sensibilidade requeridas em uma tragédia que suscitou, e ainda traz, tanta dor. Gente da imprensa e mesmo nas redes sociais. Não é difícil encontrar referências positivas na cobertura e na discussão desse desastre.

No entanto, é nas situações extremas que se depara com o que as pessoas têm a oferecer de pior. Mostrando que o espírito de Amado Pinheiro permeia, cada vez mais forte, nas almas de muitas redações, tem-se deparado com as mais estapafúrdias, delirantes e inverossímeis demonstrações de ódio, rancor, busca pelo caminho fácil do linchamento e do sensacionalismo que, ao nivelar por baixo, cobre com o véu da hipocrisia e da covardia a incompetência, o despreparo, a falta de aptidão para o exercício da profissão de informar.

O Flamengo é um culpado útil. Desvia o assunto. Tira a luz de outras questões potencialmente inquietantes. Enquanto se aponta o dedo para o Flamengo, que, por sua grandeza, naturalmente muitos amam odiar, alguns elementos e atores dessa e de outras tragédias vão sendo convenientemente ignorados.

E se segue desinformando. Deformando. Transformando a realidade ao bel-prazer de hienas, abutres e chacais que se banham no sangue, nas lágrimas e nos despojos das vítimas, aplacando a sanha de uma sociedade doente. Que pede mais e mais.

Antes de sair apontando o dedo ao sabor de preferências, amores e ódios, é necessário entender, apurar, buscar o que aconteceu. E isso dá trabalho. Requer esforço. Caráter. Espírito investigativo e ético. Respeito.

O que se quer de uma apuração, de uma investigação séria, é a resposta a uma e uma só pergunta. Respondida, emitamos os juízos de valor que se fizerem pertinentes. Sanada, que se puna e se responsabilize a quem de direito. Mas, enquanto essa pergunta chave não é superada, que retenhamos nossas ilações ao nosso íntimo. Por respeito às crianças que se foram.

Por que e como um incêndio em um alojamento no Ninho do Urubu matou dez pessoas?

Boa semana a todos,

PS – Não podia deixar de externar uma reação de gratidão às manifestações de solidariedade de clubes de todo o País e do Mundo. Em especial, a Vasco, Fluminense e Botafogo. É certo que, voltando a rolar a bola, tornarão as brincadeiras, as ofensas, o recalque, tudo de bom e ruim que nos move há décadas. Mas essa tragédia nos mostrou que, diante de algo maior, existe o respeito e o reconhecimento de que, acima de tudo, estamos irmanados dentro desse troço maluco que é o jogo de bola. Mostraram-se grandes. Como sempre foram em essência.