A
cabeça dói.
Lateja
pulsando em ondas que dardejam o mais recôndito âmago da minha
existência, ensaiando estilhaçar minha testa em minúsculos
fragmentos de dor. Uma sensação insuportável, que faz rebentarem
laivos de angustiante e surdo desespero.
Estou
de ressaca.
Recorro
aos comprimidos de praxe, ingiro corredeiras de água e resolvo sair,
colocar-me em movimento, a despeito da ofuscante saudação de um sol
que denuncia o adiantado de uma manhã que já se encaminha para a
habitual e protocolar saída de cena. É o que se chama de
“espairecer”.

Começo
a transpirar. A dor passa. Os remédios parecem ter dado resultado.
Tenho sede, afogo-me com mais litros de água. Sigo pensando. Já me
afastei do Mengão antes. Ironicamente, dessa vez o time não é
ruim. Mas, para usar jargão em voga, “não representa”. E isso é
pior do que contar com uma choldra de caneludos. Talvez esteja sendo
exigente demais. Ou não. Não, definitivamente não.
Eu
sei, vivemos tempos estranhos.
Tempos
de recortes extremistas que pontuam cada elemento que compõe nossa
realidade, nosso contexto. Tempos em que soa proibido ponderar,
racionalizar ou mesmo relativizar. Tempos em que somos instados a
entoar cânticos de seitas e a embotar nossa visão crítica com o
cabresto e a focinheira da beligerância. A reivindicar o monopólio
da virtude e a marginalizar quem não dele comunga.
Tenho
fome. Chego perto de um desses restaurantes de “prato do dia”,
resolvo entrar. Há duas opções. Moela e dobradinha. A moela já
conheço e não gosto. A dobradinha sei que me fará mal. Cresci
asfixiado pelo fedor sufocante e nauseabundo de uma panela de
dobradinha, e sua simples recordação me faz emergirem ímpetos de
vômito. Olho pra moela, que já comi várias vezes. Está lá, com a
mesma cara, o mesmo aspecto que me suscita a entediante repulsa
própria das gororobas. A dobradinha parece seduzir o público, que
por ela faz fila. Incomoda-me a perspectiva de escolher um dos
pratos. Transtorna-me a ideia de pautar meu almoço pelo exercício
agônico de meramente repelir uma das opções. Desnorteia-me o
simples pensamento de que, afinal de contas, se estou em um
restaurante, forçosamente terei que consumir um dos pratos. A
fugidia enxaqueca ameaça voltar.
Resolvo
que a fome, afinal, não é premente. Pode esperar um pouco. E, com
ela, a decisão.
Saio
do restaurante tentando pensar em coisas agradáveis. Por algum
motivo, um episódio agora me vem à mente. Transporto-me a vinte
anos atrás, em específico às bordas do Natal de 1998.
Maracanãzinho completamente lotado. Gente pendurada no teto, para a
Final do Campeonato Estadual de Basquete, entre Flamengo e Vasco. Um
jogo que não tem absolutamente nada de prosaico. Que vale, mais do
que uma taça, a honra e o orgulho de uma instituição.
Vou
recordando que 1998 terá sido um ano difícil. O rival no auge,
Campeão da Libertadores, Vice das Américas e Vice Mundial. Que
dispara um plano de estabelecer insuperável hegemonia no cenário
olímpico brasileiro, através de maciços investimentos do seu
patrocinador (e que, lembro, viverá seu auge dali a dois anos, com a
“chuva de prata” nas Olimpíadas de Sydney, recorde absoluto de
vice-campeonatos olímpicos do Brasil, marca aliás ainda não
igualada até hoje). Projeto que ostenta em um de seus vértices um
forte time de basquete. Equipe que chega à final com uma campanha
lisinha, branquinha, invicta, irretocável. E que, por isso mesmo, é
vestida com um favoritismo quase incontestável.
O
Flamengo, enquanto isso, rememoro, vive um momento complicadíssimo.
Dois anos sem título algum, naufrágio no Estadual, um Brasileiro em
que chegou a conviver com a ameaça do rebaixamento, recuperou-se,
ensaiou arrancada e que viu uma amarga eliminação ser recebida com
indiferentes batucadas e pagodes comandados por alguns jogadores no
jogo de volta. Aliás, alguns dos dirigentes da época andam hoje
em dia querendo o
“verdadeiro Flamengo” de volta. Estranho, penso. Mas
volto ao caso. O torcedor flamengo espezinhado com a péssima fase do
time e com os títulos e vices do rival, uma falta de ânimo, de
tesão, de vontade, e súbito aparece essa final do basquete, os
caras do Vasco falando em fechar o play-off em três jogos, em
desfilar na frente da Gávea, essas coisas. Até
porque o Flamengo vem de campanha acidentada, três derrotas, time
bem menos badalado e tal.
E
o Flamengo resiste. Perde a primeira apertado. Ganha a segunda e
quebra a invencibilidade do adversário. Perde a terceira, também
placar duro. No que seria o “jogo do título”, passa por cima do
Vasco. E empata a série em 2-2. Agora, é só um jogo. Sem delongas.
Perdeu, rua. Ganhou, taça.
As
duas torcidas superlotam o enorme ginásio. Trazem pra dentro da
quadra o clima do Maracanã. Para o Vasco, a chance de coroar o ano
com a chance de derrotar o maior rival (o que, ironicamente, não
conseguiu no gramado). Para o Flamengo, um meio de resgatar a
dignidade. A camisa. A honra.

Às
vezes, os sinais surgem onde e quando menos se espera.
Chego
em casa. Revigorado, vou curtir com a família o resto do dia.