quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Alfarrábios do Melo


Não é difícil se emocionar com a torcida do Flamengo.

Com efeito, mesmo a alma mais renitente e refratária há de reconhecer, ainda que tacitamente, a estonteante beleza do espetáculo proporcionado pela nossa gente pulsante, ardente, febril em seu sanguíneo amor pelas sagradas ondas em negro e rubro que nos arrebatam e arrebentam as entranhas. Pouco, ou nada, logra ombrear-se aos flamengos celebrando a alegria de ser rubro-negro.

Inobstante, jogadores são norteados por outro prisma.

Evidentemente, um atleta profissional de futebol, como estampado em sua literalidade já na definição, é remunerado por seu trabalho, qual seja, a oferta de sua capacidade técnica, tática, física e mental a uma agremiação esportiva. Isto posto, é natural, aceitável e, até mais do que isso, desejável que busque para si a vinculação a contratos que lhe assegurem as condições mais favoráveis de remuneração e valorização. É uma carreira curta, de no máximo vinte anos, e lapsos de hesitação podem fulminar promissoras trajetórias em questão de meses.

Donde, a partir do momento em que a relação entre jogadores e clubes se reveste profissional em essência, especialmente nas instituições de alto orçamento e elevadas demandas por resultados, torna-se inerente ao negócio a adoção de determinado “código de conduta” para todos os atores que integram o processo. E isso inclui os atletas, que, com o fito de demonstrarem seu profissionalismo e o respeito pelo mercado que os cerca, recorrem a artifícios como beijar o escudo do atual empregador, referir-se ao atual clube utilizando um fraseado e linguajar que o aproxime de seus torcedores, frisar estar “realizando um sonho” ao ser apresentado ao novo contratante, e mesmo evitar comemorações efusivas ao marcar gols contra equipes que defendeu (o que mantém certas portas abertas, afinal o futuro é sempre incerto). Os mais esclarecidos e/ou abastados contam com serviços de “media training” ou quetais, o que os adestra a buscar externar declarações ou atitudes que os mantenham conectados aos adeptos, que invariavelmente esperam um comportamento “de torcedor” de seus jogadores, visto que representantes das cores que lhes são tão caras. Puro business.

Ou seja, quando um jogador chega a um clube como o Flamengo e “avisa” estar realizando um sonho, beija nosso sagrado escudo, sorri quando ostenta nosso Sagrado Manto e desfere licorosas declarações acariciando tudo o que nos é afeto, provavelmente estará interpretando uma personagem. Veja-se, não se trata de subestimar nossos atributos, afinal se está tratando da mais expressiva instituição esportiva do país. Celebrar um contrato de serviços com o Flamengo sempre foi, é e será uma etapa bastante sedutora na trajetória profissional de qualquer jogador de alto nível, seja pelo seu inigualável alcance nacional, seja pela oportunidade de desfrutar a experiência de atuar no Maracanã, seja pela possibilidade de impulsionar sua reputação, seja pela proximidade de conquistas de alto nível (processo que parece estar desaguando de forma ainda lenta, mas inexorável, a uma inapelável realidade contextual). No entanto, por mais relevante, gratificante e agradavelmente desafiador que signifique atuar defendendo o Flamengo (afinal, vários e vários jogadores são mesmo rubro-negros de infância), nunca se deixa de levar em conta o caráter estritamente profissional da avença. E que, como tal, demanda que certos papeis sejam exercidos (justamente por isso, costumo relevar toda e qualquer declaração emanada por jogador, a qualquer tempo, desde que, claro, certos limites não sejam transpostos).

Mesmo assim, ainda assim, com tudo isso, o futebol ainda é capaz de surpreender.

Ouvi falar de Vitinho pela primeira vez no ano da graça de 2013, quando ainda defendia o Botafogo. De início, nutri certa desconfiança com o excesso de loas e exaltações que pipocavam de jornais e programas de televisão, normalmente bastante condescendentes e, digamos, entusiasmados com tudo o que exara de General Severiano (torcedor gosta de falar bem dos seus). Mas minha reticência logo se dissipou. Vi alguns jogos do garoto, que realmente mostrou qualidades. Arisco, enjoado, perigoso, ruim de marcar. Botafogo realmente parecia ter encontrado um jogador realmente bom. Mas foi vendido e tal. Anos depois, apareceu no Internacional. Começou a fazer gols e se destacar, mas o time foi caindo pelas tabelas, ameaça de inédito rebaixamento batendo à porta. Veio o fatídico jogo com o Flamengo de Zé Ricardo, ainda postulante ao título. E o bravo Vitinho simplesmente comeu a bola. Foi o melhor em campo e marcou o gol da vitória que marcou o início do fim do sonho do hepta. Pouco depois, com amarga satisfação se soube que Vitinho era Flamengo de infância. Seguramente jogou tudo pra chamar a atenção, como tantos o fazem.

Seguiu-se longo namoro, que virou novela, com voltas, reviravoltas e contravoltas. E, enfim, após muita conversa, choro, batida de pé, posições demarcadas, ratificadas e retificadas, o Flamengo conseguiu tirar Vitinho do CSKA Moscou, contra a vontade inicial dos russos, que manifestavam satisfação com seu trabalho. E o atacante agora é rubro-negro.

E foi aí que aconteceu.

Sim, Vitinho postou fotinha, vestiu camisa, beijou escudo, declarou amor, falou do sonho, fez tudo isso. Seguiu todo o manual do “media training”, mostrou-se um disciplinado seguidor dos preceitos que regem o tal profissionalismo dos nossos tempos. Só que nesse entretempo havia um jogo no Maracanã. E lá se foi Vitinho ser apresentado, acenar e ganhar um pouco de carinho da nossa Nação.
Mas antes disso sentou nas tribunas e se permitiu contemplar, em silêncio, à mais bonita das celebrações. Toda aquela gente se mescolando em uma indistinguível nuvem, tornando o mitológico Maracanã uma grande panela em brasa e ébano, um leviatã erigindo-se a urrar a grandeza e o gigantismo de uma Nação, amalgamando-se aos onze herois, empurrando-os e sendo por eles impelida, num irresistível moto contínuo que, inapelável, somente suscitava a necessidade quase orgânica de seguir cantando, gritando e saltando até o limite das forças.

E ali, a tragar a mais profunda essência flamenga, Vitinho, mantendo-se no mais absoluto silêncio, pôs-se a gritar. Explodir-se e revelar-se, desnudar-se sem amarras, sem os freios impostos pelos regulamentos e códigos engravatados e refrigerados. E se permitiu trair, deixou-se mostrar por um olhar. Olhos que gritavam, olhos que latejavam, olhos que pulsavam toda a sua humanidade. Porque naqueles olhos febris se abriu o garoto que algum dia jogou descalço emulando algum craque flamengo, o menino que jogou botão defendendo o Flamengo, o jovem que berrou o Flamengo na arquibancada, o moço que sofreu e vibrou com o Flamengo na tevê, no rádio, na internet, no jornal. O homem que virou jogador e que agora é do Flamengo. Que agora está pronto para dar as mãos a toda essa gente que canta seus herois. Pronto para ser um desses herois.

Que a passagem de Vitinho pelo Flamengo seja guiada por esse olhar. Um olhar de torcedor,

Um olhar de amador.