quarta-feira, 6 de junho de 2018

Alfarrábios do Melo


Saudações flamengas a todos,

Às portas da interrupção da temporada para a disputa da Copa do Mundo, eis que o Flamengo se encontra na liderança do Campeonato Brasileiro e classificado para as fases subsequentes da Copa do Brasil e da Libertadores. Impossível deixar de traçar um paralelo com a situação registrada há exatos quatro anos, nas franjas do Mundial a ser disputado no Brasil, quando o rubro-negro ostentava uma “empolgante” briga com o Figueirense para fugir da lanterna do Brasileiro e havia sido sumariamente eliminado da Primeira Fase da Libertadores. O cotejo entre as duas escalações-base é eloquente para ilustrar esse comparativo.


2014 – Felipe, Leonardo Moura, Chicão, Wallace, André Santos; Amaral, Márcio Araújo, Elano; Paulinho, Alecsandro, Everton;


2018 – Diego Alves, Rodinei, Rhodolfo, Léo Duarte, Renê; Cuellar, Paquetá, Diego; Everton Ribeiro, Henrique Dourado, Vinícius Jr.


O salto das últimas para a primeira colocação, a conquista da classificação para as Oitavas da Libertadores e a grosseira diferença técnica entre as escalações de agora e de quatro anos atrás sugere que, enfim, o clube logrou seguir à risca o planejamento estabelecido, que previa devolver ao Flamengo o protagonismo perdido, tornando-o sério concorrente, e por vezes até favorito, a tudo o que disputasse, em âmbito regional, nacional ou continental. Um trabalho minucioso, criterioso e executado à perfeição, que começa a dar resultados consistentes a partir de agora.

Será?

A descomunal massa de rubro-negros que interage nas redes sociais, conhecida pela alcunha de “Fla-Twitter” e variações, reverbera de forma estridente, positiva ou negativamente, os mais variados assuntos, numa espécie de “Boca Maldita” contemporânea. Mas no meio dessa gritaria virtual, não é difícil identificar algumas linhas comuns de pensamento, como o apreço por treinadores e jogadores estrangeiros (haja vista a quase idolatria pelo ótimo volante Cuellar), o ferrenho combate às distorcidas e por vezes desleais práticas de muitos jornalistas esportivos, o interesse na repercussão de atos e declarações de dirigentes, a pressão pela contratação de jogadores de peso (nem que seja para marretar seu alto custo após concretizada a transação), entre outros posicionamentos. Entretanto, um desses assuntos tem sido objeto de especial atenção nesses últimos anos: a suposta falta de identificação do Flamengo com sua torcida, sua identidade e sua história.

Com efeito, em que pese o fenômeno ter se iniciado com o desmanche da equipe que conquistou o Hexacampeonato Brasileiro em 2009, a Copa do Brasil em 2006 e um punhado de Estaduais, foi a partir de 2013 que a percepção de que o rubro-negro levava a campo times frios, descompromissados e pouco competitivos se acentuou. Desde então, o Flamengo foi estigmatizado com as marcas de “freira no meretrício”, “time de bananas”, “queixo de vidro” e quetais. Não sem certa razão, em muitos momentos.

A intensificação dessa impressão, anabolizada com a falta de conquista de títulos expressivos, fez sedimentar na supracitada “Fla-Twitter” gritos de ordem, como “Devolvam meu Flamengo”, “Quero meu Flamengo Raiz de volta”, “Esse Flamengo não me representa”, “Voltem pro Mercado Financeiro”. Vários jornalistas passaram a produzir linhas e mais linhas buscando entender e explicar a tal crise de identidade por que passava (passa?) o clube, provavelmente decorrente do profundo processo de reestruturação institucional iniciado lá em 2013.

“Devolvam meu Flamengo”. E eis que se torna à questão lá de cima. Somos líderes, protagonistas, temidos, invejados, odiados. Tudo parece indicar que o processo iniciado quando a Chapa Azul assumiu o clube está começando a desembocar em algo próximo ao que se sonhava anos atrás. Mas até onde os resultados ora colhidos são mesmo consequência de algo pensado, programado, calculado?

É bem verdade que alguns elementos contextuais têm interferido de maneira bastante relevante nessa temporada. O Flamengo (independente da motivação, que não cabe aqui discutir) aproximou-se de seu público, reduzindo o preço médio dos ingressos praticados em seus jogos, e a volta dos jogos no Maracanã (forçada pelo acidente na Ilha do Governador) revelou-se fundamental nessa questão. Estádio lotado, arquibancada mais pulsante, conciliando resultado esportivo com repercussão positiva de imagem do clube. Outro fator de peso tem residido na utilização das divisões de base como elemento de alimentação do time principal, consolidando, enfim, um trabalho iniciado em 2010 e estruturado mais profundamente na administração atual. Os jovens revelados pelo Flamengo, mais do que apenas peças úteis, já demonstram capacidade de exercer o protagonismo e, em futuro próximo, inclusive amealhar uma relação de idolatria, resgatando uma tendência histórica. “Craque se faz em casa”.

Pode-se afirmar que essas iniciativas talvez tenham sido impulsionadas pelas recentes mudanças na cadeia de comando do Departamento de Futebol, com a ascensão de nomes mais comprometidos com a instituição e mais preocupados com a obtenção imediata de resultados em campo.

No entanto, é impossível deixar de constatar que boa parte da trajetória flamenga neste, até aqui auspicioso, 2018 tem sido pautada pelo elemento do improviso.

E enfim, depois deste longo prólogo, chegamos ao ponto.

O Flamengo de hoje é dirigido por um treinador improvisado, cujos métodos de trabalhos são plenamente aceitos pelo elenco, ou por suas lideranças, ao menos. A permanência do inexperiente (posto que aparentemente talentoso) Maurício Barbieri à frente da comissão técnica decorreu precipuamente da incapacidade da Diretoria em encontrar algum nome menos óbvio que o multicampeão Renato Portaluppi, muito bem empregado no Grêmio. A aridez do mercado nacional e a traumática experiência com o colombiano Reinaldo Rueda (que, contestado entre os atletas, espicaçado pela crônica e isolado pela Diretoria, não hesitou em costurar sua prematura saída) engessaram o Flamengo, que, inerte, buscou em Barbieri uma resposta temporária, um ganho de fôlego antes de qualquer decisão. E o clube “foi levando”.

Nada mais Flamengo.

Recorrer a treinadores desconhecidos e/ou inexperientes, desde que de bom relacionamento com os jogadores, é prática recorrente do clube desde que o dublê de supervisor, preparador físico e auxiliar-técnico Cláudio Coutinho chegou à Gávea em 1976 e montou o melhor time da sua história. Desde então, experiências bem-sucedidas com nomes como Carpegiani, Carlos Alberto Torres, Lazaroni, Carlinhos, Júnior, Andrade, Jayme de Almeida e, de certa forma, Zé Ricardo têm permeado a trajetória do Flamengo. Evidentemente, nem sempre a fórmula funcionou, como as demonstram as experiências ruins com Francalacci, João Carlos, Toninho Barroso, Júlio César Leal, Sebastião Rocha e Lula Pereira, entre outros.

Há mais. Não é incomum valer-se desse artifício para contornar momentos de crise de relacionamento entre o clube e seus comandados. Carpegiani assumiu após a Diretoria precisar demitir o controverso Dino Sani que, apesar de ter conquistado a Taça Guanabara (título relevante à época) e liderar sua chave na Libertadores, cultivava um relacionamento tempestuoso e atribulado com o elenco (tinha problemas com Rondinelli e Raul, por exemplo). Carlinhos, em 1987, foi a solução que trouxe paz a um ambiente devastado pela passagem de Antônio Lopes, que trombou com os “caciques” do time (afastando Adílio e Leandro). A efetivação do afável Andrade, em 2009, cicatrizou as feridas abertas por Cuca. E Jayme, em 2013, deu as mãos ao elenco em busca de uma resposta à intempestiva renúncia de Mano Menezes.

O improviso dos interinos. O interino, normalmente (mas não necessariamente) um auxiliar já atuando no clube, absorve e aprimora a forma de jogo deixada pelo antecessor, o que facilita sua adaptação, sem a necessidade de incutir soluções de ruptura ao elenco. Os jogadores, aliviados pela saída do estorvo, compram a ideia, e sua determinação, seu “algo mais”, amalgama o novo-velho esquema, que é executado com mais intensidade e entrega. Os jogadores, assim, exercem seu protagonismo da forma mais ampla possível, em uma espécie de “parceria” com seu “comandante”. Impossível não recorrer à lembrança das “reuniões” de Carlos Alberto Torres com Zico, Raul e Júnior, definindo previamente como o Flamengo iria atuar em determinada partida.

Não, o Flamengo, institucionalmente não repousa mais em uma bagunça. Em termos administrativos, existe uma estrutura impensável até pouco tempo atrás. Jogadores treinam e se concentram em paz, têm à sua disposição equipamentos e recursos sofisticados, dentro do que há de mais avançado no território nacional. E logo disporão de um Centro de Treinamentos ainda mais moderno.

No entanto, não deixa de ser irônico constatar que o Flamengo de 2018 tem sido forjado pela crise (queda de Carpegiani, episódio das pipocas no Galeão), pela volta da torcida ao estádio, pelo uso das divisões de base e pela já tradicional aliança interino-elenco. E dentro de campo tem sido aguerrido, competitivo, brigador. E vencedor. Bem ao gosto de seu torcedor, seja “analógico” ou “digital”.

Um Flamengo moderno, profissionalizado, estruturado. Mas, de certa forma, pautado pelo “velho Flamengo de sempre”. Será esse o caminho? Caso o clube emerja campeão ao final da temporada, terá enfim encontrado suas respostas? O Flamengo que se propôs a “fazer diferente” voltará a guerrear e a vencer justo no momento em que, por força das circunstâncias, terá “feito igual”? Nisso residirá uma ironia ou um caminho?

O tempo dirá.

* * *

P.S. 1 - Semana passada, muitos levantaram uma polêmica acerca do uso, pelo Flamengo, de seu segundo uniforme na partida contra o Bahia, no Maracanã. Em que pese discordar da motivação comercial desse tipo de iniciativa, purista que sou, também não me alinho com certas linhas argumentativas que invocaram a “perda de identidade”, “desrespeito às tradições” ou coisas do tipo. Atuar esporadicamente de branco diante de sua torcida não ofende nem desrespeita nenhum preceito histórico. As imagens que ilustram este texto, todas referentes a partidas em que o Flamengo atuou com seu segundo uniforme no Maracanã, assim o demonstram.

P.S. 2 - Os Alfarrábios do Melo entram hoje em recesso, retornando em 18 de julho. Boas festas juninas a todos.