Saudações
flamengas a todos,
Uma
queixa recorrente entre os torcedores do Flamengo tem repousado sobre
a “falta de identificação” das equipes que têm ido a campo
defender as cores rubro-negras. Com efeito, frases como “esse time
não nos representa”, “esse Flamengo não tem nada de Flamengo”,
entre outras do tipo, são facilmente lidas ou ouvidas nas ruas e
redes sociais por aí.
Penso
serem procedentes.
No
entanto, convido os amigos/amigas a um exercício de memória. Quando
terá sido a última vez que o Flamengo jogou, consistentemente, como
Flamengo? Ou seja, apresentou rendimento duradouro e previsível,
injetando no torcedor uma confiança e uma crença de testemunhar
atuações compatíveis com o conceito de “raça, amor e paixão”
tão caro às nossas tradições?
Provavelmente
a maioria das respostas convergirá para o time que conquistou o
Hexacampeonato Brasileiro em 2009. Mais especificamente para o
período de pouco mais de três meses decorrido entre o início da
arrancada, ou seja, a vitória sobre o Santo André e a última
partida, contra o Grêmio. Ou, talvez, para o intervalo de exatos
dois meses que marcou a arrancada flamenga para o título da Copa do
Brasil de 2013. Ou, por fim, para o período de três a quatro meses
que assinalou a espetacular arrancada de 2007, que alçou o clube da
penúltima para a terceira colocação no Brasileiro.
Fora
esses marcos temporais, este século provavelmente terá visto o
Flamengo entrar em campo de corpo e alma em momentos e jogos
específicos e esporádicos.
Suspiros
de êxtase tão intenso quanto breve.
Significa
que a questão da “falta de intensidade”, “falta de
identificação”, “falta de representação” é, ao contrário
do que, por motivos diversos, quer-se fazer crer, é mais amplo e
complexo do que tem sido exposto em manifestações de memória
seletiva, em que pese esse fenômeno de distanciamento estar vivendo
um processo de perigosa intensificação nas últimas temporadas.
“A
diretoria, comissão técnica e alguns jogadores sequer sabem o que é
ser Flamengo, devem estar mais preocupados com o campeonato de
rachões e para o planejamento do (...) carioca, o único campeonato
que realmente parece importar.”
“Somos
o retrato de uma nau sem rumo, à deriva. Os jogadores não treinam,
não têm preparo físico, falta vontade e equilíbrio psicológico.
Qualquer organização (e um clube também deveria sê-lo), tem
principios básicos de comando
e controle que
devem ser seguidos.”
“Precisamos
de um choque de ordem, de alguém que tenha autoridade para comandar
essa Nação chamada FLAMENGO. Falta comando e controle, principios
basilares do processo gerencial.”
Essas
três citações são de 2009. A menos de um mês do início da
arrancada para o Hexa Brasileiro.
*
* *
Peço
desculpas se as linhas que se seguem padecerão do pecado de um
aparente enfadonho saudosismo. Mas precisarei delas doravante.
1981:
Raul, Leandro, Mozer, Marinho, Júnior; Andrade, Adílio, Zico; Tita,
Nunes, Lico;
1987:
Zé Carlos, Jorginho, Leandro, Edinho, Leonardo; Andrade, Aílton,
Zinho, Zico; Renato, Bebeto;
1992:
Gilmar, Charles Guerreiro, Rogério (J.Baiano), W.Gotardo, Piá;
Uidemar, Júnior, Nélio, Zinho; Paulo Nunes (J.César), Gaúcho
1999:
Clemer, Maurinho, Célio Silva, Juan, Athirson; Leandro Ávila, Fábio
Baiano, Leonardo Inácio (Rodrigo
Mendes),
Iranildo; Leandro Machado, Reinaldo
2006:
Diego, Fernando, Renato Silva (R.Angelim), Rodrigo Arroz; Léo Moura,
Jônatas, Renato Abreu, Renato Augusto, Juan; Toró, Luizão
Essas
cinco equipes acima listadas diferiam em capacidade técnica e
disposição tática. No entanto, todas apresentavam índole
vencedora, tendo conquistado títulos relevantes em campo. E todas
essas, sem exceção, atuavam com bravura, altivez e mesmo imposição,
ou, em uma terminologia contemporânea, “representavam” o
Flamengo em campo.
Debrucemo-nos
sobre as escalações: a formação de 1981 possuía nove jogadores
revelados nas Divisões de Base (ou oito, se abordarmos de forma mais
rígida o caso de Nunes). O time de 1987 alinhava seis crias da base
mais dois (Ailton e Bebeto) contratados ainda nos juniores. Ou seja,
oito, numa interpretação ampla. 1992 formava com seis jogadores da
base (o caso de Gaúcho é semelhante ao de Nunes, mas, ao contrário
do 'João Danado', Gaúcho atravessou
a transição ainda pelo Flamengo, tendo feito pelo clube o ciclo
completo antes de peregrinar pelo
país).
A
formação de 1999 que jogou a reta final da Copa Mercosul dispunha
de cinco jogadores formados no clube. E,
por fim, o time-base que decidiu a Copa do Brasil foi a campo também
com cinco “produtos da casa”.
Resumindo:
em cada caso, no mínimo meio time egresso das Divisões de Base.


Ou
seja, a tradição flamenga de revelar jogadores vem desde seu
nascimento.
E,
percorrendo a “linha do tempo” da nossa história, ela estará
sempre viva, presente e ao lado das maiores conquistas da
instituição.
Tornando
a 2009 e deixando mais uma, agora a última, escalação deste texto:
o time-base que nos deu o Hexa:
Bruno,
Léo Moura, Álvaro, R.Angelim, Juan (Everton); Aírton, Maldonado,
Willians, Petkovic; Zé Roberto, Adriano.

Em
que pese soar simplista o cotejo, não deixa de ser emblemático
constatar, nos
últimos vinte anos,
a correlação entre a escassez de títulos de expressão com a
vertiginosa queda na participação dos jogadores formados pelo clube
em suas escalações de titulares.
O
Flamengo, nos últimos anos, viveu um processo histórico, embora não
inédito, de saneamento em suas contas e construção de uma
estrutura de trabalho compatível com os requisitos mínimos que se
esperam de um clube de seu porte. Este percurso criou e tem criado
expectativas acerca de uma retomada do caminho de glórias e títulos
que, até aqui, tem estado longe de se concretizar. Impropérios e
praguejos à parte, cabe perguntar: por que não está dando certo?
Não
se pretende esgotar o tema nessas poucas linhas restantes (até
porque há vastos
elementos
estruturais e conjunturais a ele inerentes).
No entanto, cabe expor a convicção de que o Flamengo somente
voltará a “Ser Flamengo”, a disputar campeonatos e títulos
“como Flamengo”, no
dia em que cessar a sua busca por referências externas e tornar a
olhar para si. Perscrutar
dentro de suas entranhas, da sua índole, da sua personalidade, dos
seus defeitos e das virtudes que o tornaram amado, temido, invejado,
os atributos sobre os quais será construído.
Um
desses elementos está, necessariamente, nas suas Divisões
Inferiores.

Os
jogadores das Divisões de Base são elos importantíssimos no
processo de união entre o Flamengo e sua descomunal massa de
torcedores.

Há
o risco do deslumbramento, do elogio fácil, do crescimento de
jogadores mimados, algo que aflorou como praga e se infestou qual
erva daninha no Flamengo dos anos 2000/2010, o que, entre outros
motivos, ajuda a explicar porque o clube revelou tão poucos
jogadores de primeira linha (a rigor, dois: Renato Augusto e Jorge,
sendo este ainda uma ótima aposta) no período. Esse
fenômeno costuma andar abraçado a um ambiente de baixa
competitividade e cobrança interna, algo que aparenta ainda permear
as relações entre os dirigentes flamengos e seus profissionais.

Um
outro obstáculo importante está na própria impaciência da
torcida. A aridez de bons jogadores revelados pela base nas últimas
duas décadas criou uma cultura recente de percepção de
mediocridade, ou seja, muitos até defendem “botar os garotos”,
mas no primeiro revés os gritos de “falta jogador” recaem
justamente nas posições onde há jovens atuando com mais
frequência.
Todavia,
mesmo com todos esses, e mais outros, problemas, o Flamengo precisa
insistir na restauração dessa via. Os exemplos recentes de
jogadores como Vinicius Jr, Paquetá, Lincoln, Wesley, todos
atletas atuando em Seleções de Base, já induzem à percepção de
sensível melhora na qualidade do material humano que começa a ser
colocado à disposição do elenco profissional. O
Flamengo já disputa com dignidade e competitividade os principais
campeonatos do país das categorias inferiores. A visão de jogadores
famélicos, incapazes de desferir chutes a gol, estáticos, tem se
tornado mais rarefeita. Isto permite
fomentar uma discussão que deverá ganhar corpo nos próximos anos.
Até que ponto é válido preencher o elenco com jogadores medianos,
muitos deles inexpressivos, alguns
contratados a vasto
soldo, para ocupar um espaço que poderia, e deveria, estar sendo
reservado aos jogadores “da casa”, muitas vezes aptos
a entregar, em sentido amplo, muito mais futebol, mesmo que em uma
dimensão utilitária?

Porque
o Flamengo de Zico, Zizinho, Dida e Júnior, o Flamengo de Biguá,
Leandro e Carlinhos, não importa seus craques. Seus ídolos.
O
Flamengo, ele mesmo os produz.