Já
morei no Irajá.

Corriam os idos de 1977.
Família começando a vida, eu o mais velho de
dois filhos pequenos, meu pai trabalhando numa fábrica na Avenida Brasil em
regime de plantão, minha mãe em casa cuidando das crianças, ou seja, nós. Vida
simples, sossegada, sem luxos mas sem faltar nada.

Rotina muitas vezes vivida à frente da
Telefunken em branco e preto, que tocava musiquinhas diárias anunciando coisas
que interessavam à mãe ou ao pai, dependendo do horário. “Hora do jornal, hora
da novela, você é muito pequeno pra isso. Vá pro quarto”. As barulhentas
corridas de fitipaldi, essas eram liberadas. Mas logo me entediava ficar vendo
uns carros pra lá e pra cá, um cara de voz grave falando coisas que eu não
compreendia. Um dia apareceu algo pegando fogo, uma fumaça preta, meu pai me
levando rápido pro quarto, fiquei sem entender nada.
O cotidiano também dentro do meu quarto verde,
onde construía meus “enredos fantásticos” com minhas corridas de carrinhos, ou
as lutas com os bonecos, essas coisas de criança. Sim, quarto verde. Tinha o
nosso quarto verde e o quarto dos adultos (mãe e pai), que era rosa. Parece que
o dono do apartamento (alugado) era mangueirense, bem depois soube. Não deixou repintar.
Mas não incomodava.

Da escola eu gostava. Tinha os coleguinhas que
eu já tava acostumado, a professora era legal, carinhosa, tinha espaço pra
brincar, gangorra, escorrega, era divertido. E faziam uns passeios agradáveis,
conheci uma fábrica de refrigerante, aquele mundo de garrafa pra lá e pra cá,
depois fomos numa floresta grande, um lugar cheio de árvores, tomamos banho num
laguinho, essas coisas. É interessante como não precisa de muita coisa para
fazer a vida de uma criança se encher de fantasia.
E tinha o Flamengo.
Meu pai sempre falava do Flamengo, sempre
dizia que um dia a gente ia ver jogo do Flamengo, que agora não dava, que eu
era muito pequeno e tal. E eu não sabia o que o Flamengo fazia, mal e
porcamente chutava bola pra lá e pra cá, mas não tinha ideia do que era
futebol. Só sabia que existia o Flamengo, e que o Flamengo era um super-herói
que toda hora estava envolvido numa luta do bem contra o mal.
“Papai, o Flamengo ganhou hoje?”
Da resposta a essa pergunta dependia toda a
integridade anímica do meu dia. Dissesse, “Sim, meu filho, hoje o Flamengo
ganhou”, e tudo se descortinaria em ânimo e alegria. Eu desceria correndo as
escadas do prédio e sairia gritando de felicidade, pronto a chutar ou atirar
alguma coisa, ou a pedalar no meu jipe de lata. Mas, saísse a resposta “Não,
hoje não deu. Perdemos”, e tudo estaria inapelavelmente arrebentado. A comida
entraria empurrada, o muxoxo no canto do quarto, a falta de vontade pras
coisas. Como o bem não vence o mal? Era algo muito complexo, transcendental.


E de repente, não mais o sorvete, não mais a
Urca, não mais o Carrefour, não mais o valão, não mais a praia colorida, não
mais os coleguinhas, não mais o quarto verde, não mais nada. Toda uma
existência, toda uma vida empacotada num caminhão trambolhudo num monte de
caixas feias, tristes e sem cor. Ao menos uma última aventura nos foi dada, a
de ir na caçamba do bicho, com o vento na cara. Zé Buscapé.
“Pai, o que é Bahia? É um lugar bem longe”,
“Na Bahia tem sorvete? Tem, sim”. “Na Bahia tem praia? Também tem, meu filho”.
“Tem Urca? Não, lá não tem Urca”. “Pai, na Bahia tem Flamengo? Sim, o Flamengo
está em todo lugar”.
“Pai, quando é que a gente volta pro Rio?”
“Breve”.
* * *
Nunca mais voltei à Rua São Leonardo.
Depois de quarenta anos, a gente passa a
relevar determinadas reminiscências, guardando-as com certo carinho, às vezes
passando pano nas memórias, mas com o cuidado de não se tornar delas escravo.
Vez por outra vem à mente uma ou outra tinta dessa breve existência de carioca,
usualmente provocada por alguma passagem que meu pai até hoje conta (ele ainda
se diverte ao recordar a figura do espevitado Vanderlei). Assim foi, e assim é.
Mas às vezes a vida gosta de nos pregar peças, de nos atiçar com suas ironias.

O terreno fica em Manguinhos. Era uma Fábrica
de Metanol. A Fábrica. A fábrica onde meu pai trabalhou durante tantos anos.

O que sei, e isso eu tenho todo o direito de
saber, é que, de uma forma ou de outra, um estranho e extravagante enredo se
forma na minha irrequieta mente. De repente, volto a ter cinco anos, a tomar
meu sorvete, a correr pela Urca, a brincar de carrinho no meu quarto verde, a
cegar com a praia brilhante do Sul. E agora, sentindo o fedor da valeta que vai
dar na Avenida, meu pai está me levando pro Ponto de Ônibus esperar a condução.
Estamos indo pra Fábrica. Vestimos negro. E vermelho.
Vamos ver o jogo do Mengão.