quarta-feira, 19 de julho de 2017

Alfarrábios do Melo

O problema não é jogador.

Com efeito, o Flamengo montou um elenco estrelado para a disputa da temporada. A começar pelo gol, em que ostenta um goleiro titular de Seleção, Campeão Mundial, profissional de primeiríssima linha, um dos melhores do planeta. Nas laterais, atuam dois jovens Campeões Mundiais de Juniores (sub-20) no México, pela Seleção Brasileira da categoria. No miolo de zaga, mais dois Campeões Mundiais, figuras carimbadas em qualquer convocação para a Seleção Brasileira de Profissionais.

Mais Campeões Mundiais compõem o meio-campo, formado por três herois de 1981. No mortífero ataque alinha mais um garoto Campeão Mundial de Juniores, além de outro Campeão de 1981. Completando a equipe, um jovem Campeão Brasileiro de 1983.

Além do estrelado time titular, o Flamengo dispõe de um robusto banco de reservas, formado por jogadores de Seleção Brasileira, jovens Campeões Mundiais de Juniores e alguns valores revelados pela prolífica base do clube, tida como referência nacional em matéria de qualidade de formação de atletas.

Aos nomes: Fillol, Jorginho, Leandro, Mozer e Adalberto; Andrade, Adílio e Tita; Elder, Nunes e Bebeto. Como opções, Cantarele, Hugo (goleiros), Heitor (lateral), Figueiredo, Zé Carlos II, Guto (zagueiros), Bigu (volante), Gilmar Popoca (meia), Edmar (centroavante), João Paulo (ponta-esquerda).

No comando desse plantel, um treinador consagrado, cotado para dirigir a Seleção Brasileira nas Eliminatórias da Copa que terão início no ano seguinte. Ninguém menos que Mário Jorge Lobo Zagalo.

É, provavelmente, o melhor plantel em atividade no futebol brasileiro. Nada menos do que 14 (quatorze) jogadores com passagens em Seleções Brasileira de Profissionais ou da Base.
Enfim, definitivamente, o problema não é jogador.

Mas o que há de errado, enfim?

Porque esse elenco estrelado, pleno de jogadores cascudos e consagrados, acaba de terminar a temporada sem conquistar absolutamente nada. Um time que entrou o ano com a ambição de ganhar competições nacionais e continentais, vê-se, subitamente, com as mãos praticamente vazias, salvo uma prosaica Taça Guanabara. Para piorar, vê o rival Fluminense, com um time onde vicejam apenas três jogadores de primeira linha (Romerito, Ricardo Gomes e Branco), que escoltam jogadores razoáveis (alguns, com muito boa vontade) a bons, empilhar um Brasileiro e partir para o segundo Estadual. O Flamengo, pela primeira vez em seis anos, não conquista nenhum título de expressão ao longo do trajeto.

O que terá faltado?

A diferença nas formas de jogo chega a ser acintosa. O Flamengo, embora já não pratique o futebol encantador do início da década, ainda reúne várias das qualidades que o fizeram uma das equipes mais vitoriosas da história do futebol brasileiro. Conciliando a capacidade de alternar o ritmo da retenção de bola, ora cadenciando pacientemente o jogo com impressionante exuberância técnica, ora imprimindo ataques de velocidade alucinante (ajudado pela entrada de Bebeto), mas agregando o espírito competitivo dos novos tempos pós-Sarriá. Com Cláudio Garcia (treinador que ajudou a montar o time do Fluminense) e depois Zagalo, o Flamengo deixa de lado o jogo romântico e eminentemente ofensivo, e passa a cuidar de sua retaguarda. É um time agressivo, mas que sabe fechar espaços, embora sofra com problemas de recomposição defensiva.

Enquanto isso, o rival pratica um futebol muito bem executado, mas inquietantemente previsível. Linhas postadas em seu campo, marcação sufocante na intermediária e cortante velocidade em contragolpes de objetividade extrema. O sistema defensivo é sólido, apenas um dos laterais tem liberdade para atacar, a dupla de volantes alterna entre a bicuda e a porrada, há um meia cerebral que articula as ações ofensivas, um ponta-esquerda arisco e veloz e uma dupla de atacantes com notável capacidade de finalização. É a quintessência do “futebol reativo”, que ganha qualidade com a chegada de mais um meia (Romerito), mas jamais abandona sua índole de “futebol de resultado”.

Ao final da temporada, mais um daqueles balanços de desempenho é produzido, avaliando-se com quais jogadores a comissão técnica pretende contar para o ano seguinte. Ainda atônita com o desempenho incompatível com o nível do plantel, a Diretoria tenta juntar os cacos. Mas há pistas. Algumas evidências que podem ajudar a explicar o que pode ter acontecido.

Como a desastrada gestão da campanha no Brasileiro. Na Terceira Fase, o Flamengo conquista sua classificação com antecedência, ao derrotar Santos, América e Náutico, e depois soma mais dois pontos decorrentes de empates contra o América e a equipe da Vila. Resta o confronto com os pernambucanos, em Recife. Irritada com a violência dos jogadores santistas na recente sequência de jogos contra os praianos (três partidas em uma semana, válidas por Brasileiro e Libertadores), a comissão técnica manda um misto de reservas e juniores para o Arruda. Perde a partida (1-2), resultado que elimina o Santos do Brasileiro. No entanto, ao terminar a Terceira Fase com 8 pontos, o rubro-negro despreza a vantagem do mando de campo nas Quartas-de-Final. Decidirá com o Corinthians (que também soma 8 pontos, mas consegue melhor saldo de gols) no Morumbi. E isso se mostrará fatal.

Ainda no Brasileiro, o Flamengo faz grande partida no Maracanã e derrota os paulistas (2-0), num jogo em que desperdiça preciosas oportunidades de gol. Antes do jogo decisivo em São Paulo, o rubro-negro vai enfrentar o América de Cali, no Maracanã, pela penúltima rodada da Primeira Fase da Libertadores. O rubro-negro divide com os colombianos a liderança do grupo (7 pontos cada). Mas ainda tem dois jogos a cumprir, sendo o último deles o jogo contra o desinteressado e já eliminado Atlético Junior, também no Maracanã, enquanto o América despede-se na partida contra o Flamengo. O time escala a força máxima, e não encontra dificuldades para abrir 4-2, garantindo assim a vaga de forma antecipada. No entanto, perde Tita e Bebeto, lesionados, para o jogo do final de semana contra os corintianos (Bebeto ainda atua, mas, visivelmente sem condições de jogo, logo é substituído com poucos minutos). Com o ataque seriamente comprometido, o time se vê completamente envolvido, é goleado (1-4) e perde a vaga no Brasileiro.

Segue-se uma breve pausa, de cerca de um mês, período suficiente para o clube se desfazer de Júnior, vendido para o futebol italiano. Para repor a saída do Capacete, o Flamengo contrata do América o lateral-esquerdo Jorginho, titular da Seleção Brasileira de Juniores e já efetivado na equipe rubra. No entanto, Zagalo prefere trazer Jorginho (que é destro e atua dos dois lados) para a lateral-direita, subindo o talentoso Adalberto para o lado esquerdo.

No entanto, há um problema. Jorginho não pode mais ser inscrito para as Semifinais da Libertadores. No jogo de estreia, contra o Grêmio no Olímpico, Zagalo improvisa o volante Bigu, que ocasionalmente “quebra um galho” atuando na função (normalmente com mau desempenho). A ideia se revela um desastre. O Grêmio desloca Renato Gaúcho, que vive grande momento, para a esquerda. E Renato passeia sobre o jovem. Bigu falha em pelo menos três dos cinco gols sofridos pelo rubro-negro na humilhante goleada (1-5), a terceira em um intervalo de três meses (além de Grêmio e Corinthians, o rubro-negro amargara um revés no Beira-Rio pelo Brasileiro, 0-4 Inter). Há ainda uma questão administrativa, o Flamengo não leva camisas de mangas compridas para Porto Alegre, embora a temperatura local pouse a patamares próximos de 0 °C.

Em que pese as declarações raivosas da Diretoria (“é inadmissível sofrer tantas goleadas. Vamos tomar uma atitude”), não há mudanças significativas no time, salvo o envio de Bigu, que cai em desgraça, para o ostracismo. Com Leandro de volta à lateral-direita e Figueiredo efetivado na zaga, o Flamengo reage, derrota o Grêmio no Maracanã (3-1, em jogo em que inexplicavelmente o time recua após abrir 3-0) e vence o frágil ULA (Universidad Los Andes) por 3-0 em Mérida, na Venezuela. Assim, o time precisa vencer os venezuelanos por OITO gols de diferença para atingir em vantagem um jogo-desempate contra o Grêmio. A despeito dos riscos, Zagalo assume a pressão e avisa que “saberá como escalar a montanha” e conseguir a diferença necessária. Dá tudo errado. O fraquíssimo ULA abre o marcador e se tranca na defesa. O Flamengo roda o jogo, chuta de longe, precipita jogadas, levanta 36 bolas na área dos venezuelanos e, nervoso, por muito pouco não protagoniza um dos maiores vexames de sua história. A suada virada (2-1) somente se dá nos minutos finais de um jogo em que o Flamengo enfrentou o maior dos seus adversários. A si mesmo.

Com a pálida vitória, o rubro-negro perde a vantagem e acaba eliminado das Semifinais, ao não conseguir superar a retranca do Grêmio, que segura o 0-0 num Pacaembu com mais de 50 mil.

Resta o Estadual. E, após uma campanha sólida (onde perde apenas três pontos), o Flamengo conquista a Taça Guanabara, ao atropelar o Fluminense na última rodada. O magro 1-0 (gol de Adílio, de cabeça) não reflete nem de longe a plena superioridade rubro-negra, que realiza uma de suas melhores atuações do ano. No entanto, a euforia pelo título traz em seu bojo uma perigosa acomodação. Já na estreia da Taça Rio, a equipe é derrotada pelo Volta Redonda (0-1) no Raulino de Oliveira. Pontos que fazem falta.

Mesmo apresentando uma campanha irregular, o Flamengo surge como forte candidato ao título do Segundo Turno, o que daria ao rubro-negro a conquista antecipada do Estadual. O Botafogo, comandado pelo atacante Baltazar, surpreende e vence alguns clássicos. O Bangu e o Vasco, após más campanhas no Turno inicial, recuperam-se. Com isso, a Taça Rio apresenta um notável e inacreditável equilíbrio, com cinco equipes disputando “cabeça a cabeça” o título do turno.

O Flamengo vence Botafogo (3-2) e América (1-0). Mas, contra o Vasco, vai vencendo por 1-0 até sofrer o empate nos minutos finais. Pior se dá contra os banguenses. O rubro-negro abre o marcador e desperdiça uma chance atrás da outra. Não mata o jogo. E é castigado nos descontos, no último lance, quando o árbitro, apito à boca, apenas aguardava seu desfecho para encerrar a partida. Com o 1-1, o rubro-negro se distancia da briga. Mas não muito.

Na penúltima rodada, Botafogo 14, Flamengo 13, Vasco 13, Bangu 13 e Fluminense 12 estão inacreditavelmente embolados na disputa do título do returno. O Flamengo enfrenta o lanterna Campo Grande no Maracanã. Com uma vitória simples, passará a 15 pontos no turno e 34 na soma acumulada de pontos. Uma vez que o Fluminense somente pode alcançar no máximo 33 pontos na soma geral, o contexto parece bastante claro. Se o Flamengo derrotar o lanterna no Maracanã, virtualmente elimina o Fluminense do Estadual (as chances do tricolor vencer a Taça Rio são muito remotas). O meia Delei joga a toalha: “acabou. Não vão perder ponto num jogo desse tipo.”

O Flamengo, mesmo atuando mal, abre o placar com Gilmar Popoca, num tiro de longe. Pouco depois, o árbitro assinala um pênalti em Tita. Tudo parece tranquilo e encaminhado com o iminente segundo gol. Mas Tita estoura a cobrança na trave. Irritada, a torcida começa a vaiar o jogador que, nervoso, passa a errar tudo. Numa dessas falhas, o Camisa 10 perde uma bola na intermediária, e no contragolpe o Campo Grande consegue um pênalti. Cantarele defende, mas o árbitro manda repetir a cobrança. E se dá o empate. Na segunda etapa, o Flamengo, desnorteado com a inusitada dificuldade, não consegue reverter o placar. E sai de campo com um desastroso 1-1. No dia seguinte, os jornais não perdoam: “camarão que dorme na beira do mar a onda leva”. O Fluminense ressuscita e, mesmo sem conseguir vencer a Taça Rio (que é conquistada pelo Vasco), chega às Finais justamente pelo índice técnico (ultrapassa o Flamengo, já beirando a crise, ao vencer o rival por 2-1 na última rodada do returno).

Com o fim do Estadual, termina o ano. Uma temporada a se esquecer, em que pese a necessidade de aprender com determinados erros se imponha como pauta. Os jogadores entrarão de férias, o clube entrará de férias, e um novo período terá início. Contratações pontuais, jogadores que emergem como revelações serão o critério para a aquisição de reforços. A base do elenco será mantida, avaliando-se que o plantel já possui qualidade suficiente. Até que, ao final do semestre, uma bomba explodirá na Gávea, sinalizando o retorno do Messias. A solução que o pensamento sebastianista flamengo logo abraçará como a panaceia para as agruras recentes.

No entanto, chegará o Salvador mas os títulos seguirão longe da Gávea.

Ao menos por enquanto.