As luzes do alçapão estão perto de apagar.

A
despeito de tudo isso, o Flamengo parece se comportar bem. Vai
segurando a vitória, tentando tocar a bola naquele pasto, buscando
manter o limitado mas raçudo adversário longe de sua área. Até
chegar a derradeira volta do ponteiro. Uma bola alçada, a matada no
peito pelo zagueiro, situação controlada. Mas, súbito, ergue-se um
sussurro, que se transmuda em murmúrio, que vira clamor, que se
converte em gritos, um urrar eufórico e catártico que, num átimo,
passa a envolver todo o estádio, agora em chamas.
É
pênalti.

Sozinho
debaixo das três traves e sem esboçar o mais remoto traço de
emoção, Ubaldo aguarda a hora da cobrança.
E o
estádio treme.
* * *

E há
Ubaldo. Que veio pro lugar de Raul, aposentado.
No
comando desse plantel, o treinador Cláudio Garcia, que desenvolveu a
base do Fluminense que se sagraria campeão estadual no final do ano
anterior.
Mas, se o
elenco é forte, o clube vive um momento turbulento. Garcia e o
supervisor Roberto Seabra não falam, há muito tempo, a mesma
língua. Há divergências entre alguns vice-presidentes, que ensaiam
um balé de “renuncia-não renuncia” durante todo o semestre. A
própria torcida, ainda ressentida pela saída de Zico, parece
desconfiada. É como se algo ainda estivesse faltando.
O time
até inicia bem a temporada, chega a golear o Santos (4-1) no
Maracanã na estreia da Libertadores (em atuação de gala de Mozer,
a melhor dele pelo rubro-negro). Mas a forma de jogo da equipe parece
dar sinais de esgotamento. João Paulo não consegue se firmar. Lúcio
está gordo e não é sombra do veloz e mortal atacante da Taça
Rio-83. Nunes e Edmar, tensos com a concorrência mútua, não
deslancham. Lico e Adílio já não demonstram a mesma mobilidade
para desempenhar o papel de bloqueio no meio-campo. Mesmo assim, o
Flamengo não encontra dificuldades para transpor a Primeira Fase do
Brasileiro (disputado no primeiro semestre), apesar de algumas
exibições ruins (sai debaixo de vaia após um 3-2 sobre o
Operário-MS, jogo que vencia por 2-0, cedeu o empate e venceu no fim
com um gol irregular. Depois, num 2-2 com o Goiás, também no
Maracanã, a torcida quase invade o campo para agredir os jogadores).

Com o
clube em crise, o time emperrado e o emprego por um fio, Cláudio
Garcia pensa em promover várias mudanças. Mas essas alterações
terão de esperar. O Flamengo viaja à Colômbia, onde fará dois
duríssimos jogos pela Libertadores. Precisará de pelo menos três
dos quatro pontos em disputa (apenas se classifica o primeiro da
chave) para se posicionar bem na briga pela classificação. O
momento pede conservadorismo. Experiência.
Mesmo
assim, Garcia surpreende ao escalar, como titular, o jovem volante
Bigu, que formará dupla com Andrade. Na frente, Lico e Adílio
seguem como “falsos-pontas”, com Nunes como o único atacante “de
ofício”. É uma variante defensiva do esquema de 1981, com dois
volantes de contenção realizando o trabalho defensivo mais pesado.

Ao
contrário do amplo e espaçoso campo de Cali, o Flamengo agora terá
que lidar com o pequeno Estádio Romélio Martínez, para 20 mil
espectadores, que está completamente lotado. O jogo é tido como de
“vida ou morte” para o Atlético Júnior, derrotado na estreia
pelo América (0-2). O rubro-negro, por outro lado, precisa da
vitória para alcançar a pontuação planejada. A primeira novidade
é desagradável. O auxiliar peruano que “expulsara” Nunes no
jogo de Cali agora apitará a partida em Barranquilla.

O jogo é
complicado, desde cedo mostra-se difícil. O Atlético Júnior atua
com disposição, adianta as linhas, não respeita tanto. Alça bolas
a esmo, criando problemas. Pratica um jogo vigoroso, não raro
violento, sob a complacência da arbitragem. Preso, truncado, o
Flamengo pouco cria. Impaciente, Cláudio Garcia não espera o
intervalo e arrisca. Saca Adalberto e coloca o atacante João Paulo.
Júnior volta à lateral-esquerda e Bigu vem para a direita. Adílio
vai para o meio-campo. O Flamengo, com uma alteração, mexe em
quatro posições e abre o time.
Novamente
dá certo. O rubro-negro passa a ocupar o campo adversário e não
demora a abrir o placar, num chutão da defesa que encontra Edmar
sozinho. O centroavante dribla o goleiro e completa para o gol vazio.
Flamengo 1-0. Enfurecidos, os colombianos exigem a anulação do gol,
alegando impedimento, a torcida joga pedras, ameaça invadir, a
Polícia ocupa o gramado. Após muita confusão, o gol é confirmado.
Mas haverá volta.
O
Flamengo recua desnecessariamente, passa a aceitar a pressão do time
local. Tenta trocar passes na defesa, mas o campo está em péssimo
estado. Júnior se atrapalha e perde a bola para o ponta-direita
Barrios, que avança e, diante do goleiro, joga a bola na frente e
salta. Força o choque. Sem titubear, o árbitro aponta para a marca.
O Flamengo exerce a reclamação protocolar, faz uma catimba para
marcar posição, mas o pênalti é cobrado por Galván. Bola dum
lado, goleiro do outro. 1-1.
No
segundo tempo, os times trocam chances de gol, o jogo segue truncado
e pouco definido. Parece se arrastar para o empate, até que aos 33
Edmar sai da área, recebe na ponta-esquerda, faz um carnaval e cruza
rasteiro para Tita, que emenda no ângulo. Flamengo 2-1. Agora,
restam pouco mais de 10 minutos para a vitória redentora.
Já
estamos com 45 minutos. O Flamengo, todo entrincheirado na área,
aguarda suplicante o apito final. O Júnior ataca com os dez de
linha. Bolas vão e vem dentro da área, todas cortadas pela zaga,
que atua bem. Até que Ischia cai pela esquerda e tenta cruzar. Mas a
bola vai baixa e fraca, o suficiente para Figueiredo aparar no peito
e sair jogando. No entanto, o árbitro, solerte e como que esperando
pelo momento do bote, apita, estridente. Pênalti.
Chegou a
hora de Ubaldo.
* * *
O estádio
está trêmulo.
Galván,
novamente diante de Ubaldo, ajeita a bola na marca. Ao contrário do
pênalti anterior, esse é o lance capital da partida. O momento em
que se definirá se sua equipe seguirá viva na competição, ou se
vagará morta-viva nas rodadas seguintes. Não há espaço para
erros. Galván está irremediavelmente condenado ao êxito. Do
contrário, perecerá. E, entre a sobrevivência e a extinção, está
Ubaldo.
O melhor
goleiro do mundo segue frio, sem demonstrar expressão. Olha
fixamente para o atacante, fita-o desafiador. Estica os braços, intimida mostrando sua monumental envergadura. Agacha-se e espera o apito. Pés
concretados ao chão. Nenhum sinal de movimento prévio. Não vai
adivinhar. Vai esperar. Vai despejar toda a responsabilidade em
Galván. Todo o lance, e tudo o que dele decorrer, será graças às
escolhas que fizer o atacante.
O apito
trila, estridente, onipresente. 48 minutos.
Galván
caminha, vacilante, à espera de um mísero sinal que traia o
goleiro. Mas Ubaldo, implacável, imperturbável, não lhe concede a
mais mísera pista. Face congelada, corpo fincado à grama. O atacante
se aproxima da bola. Vai bater no canto direito, repetindo a
anterior. Não, no esquerdo. Direito... Enfim, esquerdo. E chuta,
colocado.

O estádio
desmaia no mais profundo e consternado silêncio.

Ubaldo
segue caminhando para o vestiário. A bola permanentemente sob o
braço.
Recusa-se
a soltá-la.