Começa como uma brisa.
Um
sussurro que venta percebido apenas por ouvidos mais sensíveis. Mas
que, de modo suave posto que firme, sem pedir licença, vai escoando
por todo o estádio, ganhando corpo, forma, espessura. Até rebentar
em grossos rolos, num coro de vozes, uma corredeira uivante, que
troa, corta, fere e explode, imparável, implacável, inexorável.
A vaia.
Não há
meio-termo para a vaia. Não há relativização. Não há “veja
bem” para a vaia. A vaia resume-se estritamente à sua essência. A
vaia, desde que espontânea, é a manifestação de desagrado. De
reprovação. De desassossego. Vaia-se o que não se está gostando.
O que tá errado, desconexo. Ponto. Sem entretantos ou todavias.
Por isso
a vaia educa. Abre caminhos. Escancara portas entreabertas por
análises, racionalismos, reducionismos, ponderações. A vaia manda
à vala as dissertações, as discussões. A vaia crava a placa.
“Esse não presta”. Assim, cru, seco. Sem tempero.
Houve um
tal Júnior. Tratado como joia da base, subiu com esse galardão.
Como sabia dominar uma bola, logo ganhou a camisa 8 e a pecha de
titular. Atuava com nojo, cara virada, manhas de craque. Pródigo em
trivelinhas, passes elaborados, balões e outras piruetas
incompatíveis com o jogo coletivo eficiente. Disseram-lhe um dia,
“você é craque”. Acreditou. E fazia questão de demonstrar,
braços abandonados às cadeiras, esperando que a bola
milimetricamente lhe pousasse aos pés. Correr atrás de meia,
jamais. Craque não carrega piano. E assim foi seguindo, bem tratado,
poupado de palavras mais duras, mesmo nas fases ruins. “O menino é
bom, precisa de jogadores melhores pra lhe fazerem companhia”. O
conto de fadas ainda duraria um pouco. Até ela aparecer. A vaia. A
vaia lhe arrancou as vestes. A vaia descerrou o véu que pairava
sobre seu futebol cheio de adornos mas opaco. A vaia apontou-lhe
soberana, sábia. “É você!”. Depois da vaia, nunca mais
prosperou. Saiu logo, pelos fundos.
Dizem que
a vaia atrapalha. Não deixa de ser, por vezes. Há momentos em que a
vaia se torna emocional, sanguínea, catártica, o que pode fazer
soçobrar mentes mais sensíveis. Com efeito, eventualmente não soa
inteligente comer o time na vaia durante o calor da luta, do embate.
Ânimos podem se exaltar, nervos irem pro espaço e o resultado
jamais ser recuperado. No entanto, é difícil criar regras para a
vaia. A vaia não segue um roteiro. Ela apenas surge.
Ocorre
que mesmo a vaia coletiva tem lá seus efeitos terapêuticos. Um dia
o estrelado Flamengo de Zico, Júnior, Adílio e tal, Campeão
Brasileiro, jogava contra o modesto Uberaba, no Maracanã. Joguinho
de noite, estádio gelado, cara de vitória preguiçosa. Mas o time
exagerou na lassidão. Deixou-se levar 0-2 em meio tempo. Não viu a
cor da bola. No intervalo, todos, rigorosamente todos, e quando se
fala todos é todos mesmo, foram vaiados. Não sobrou um. Foi coisa
de envergonhar o mais cínico dos bêbados. Na volta, mastigando a
bola, o Flamengo com 25 minutos já tava 4-2. Aí a vaia virou palma.
Sem a vaia, não aconteceria.
A vaia
acorda jogadores dormentes, a vaia indica jogadores incapazes, a vaia
aponta para jogadores com atitude equivocada. Quando o sujeito recebe
a graça e o dom de ser contemplado com uma vaia limpa, novinha,
tilintando, só pra ele, seguramente estará enquadrado em um desses
três casos. E aí, bem, e aí é melhor procurar o caminho da
estrada, e de preferência logo. Porque insistir será insensato. A
fissura estará inapelavelmente criada. E virará fosso. E semeará
um câncer que se alastrará para todo o time.
Clayton
(o Palminha), Jailton, Jônatas, Wellinton, Fernando Brucutu,
Chiquinho, Baltazar, Rogério Lourenço, Edu Marangon, Bottinelli,
Erazo, Delacir, Elano, Wallace, Paulo Victor, entre outros tantos.
Nenhum, absolutamente nenhum desses jogadores, prosperou no Flamengo
ou sequer é lembrado com simpatia ou saudades. Todos esses, em algum
ou em vários momentos, foram engolfados por um colchão de vaias. A
vaia os tirou do Flamengo. A vaia abreviou-lhes a passagem. A vaia
revestiu-se de elemento de definição. A vaia dirimiu qualquer
dúvida. A vaia tomou a decisão.
Domingo
passado houve vaia no Maracanã. Que se tenha a humildade de ouvi-la.
Boa
semana a todos.