Saudações flamengas a todos,
Outro dia
me chamava a atenção uma distorção recorrente que costuma ser
invocada pela torcida tricolor, com o intuito de enaltecer um
pretenso receio rubro-negro no choque com o rival, citando a passagem
no hino que diria “Nos Fla-Flus é um ai-jesus”, como que os
flamengos tremessem de expectativa a cada encontro com os de
Laranjeiras, já antevendo a pedreira.
Na
verdade não é bem assim. O hino do Lamartine quer dizer exatamente
o contrário.
Aproveitando
o gancho, será que nós flamengos sabemos entender, interpretar e
expressar o sentido do nosso hino? Seu contexto, sua índole?
É isso o
que essas rabiscadas linhas terão a pretensão de deslindar, mesmo
que de forma superficial.
Antes, um breve apanhado histórico.

No
entanto, a música que passou a identificar o Flamengo para a
posteridade, e que se tornou consagrada como o Hino do clube, foi
composta por Lamartine Babo em 1942, sendo gravada pela primeira vez
em 1945, na esteira do tricampeonato conquistado no ano anterior. Seu
sucesso foi tão estrondoso que Lamartine acabaria instado a compor
“hinos populares” para os demais clubes da capital carioca, o que
efetivamente foi levado a cabo, com repercussão tão positiva que
até hoje os hinos mais conhecidos de Fluminense, Botafogo, Vasco e
América são as músicas do compositor. Como se oficiais fossem.
Igual com
o Flamengo. A música “Sempre Flamengo”, de Lamartine,
consolidou-se como o “Hino Popular” do clube, o hino
extraoficial, e é nela que este texto irá se debruçar a partir de
agora.
UMA VEZ
FLAMENGO, SEMPRE FLAMENGO
FLAMENGO
SEMPRE EU HEI DE SER

É O MEU
MAIOR PRAZER, VÊ-LO BRILHAR
Não há
satisfação mais plena do que uma vitória do Flamengo. Quando o
Flamengo ganha o céu é mais azul, os pássaros cantam mais bonito,
o chefe é mais simpático, o pisão no pé arranca sorrisos, o
almoço é mais saboroso, enfim, o triunfo flamengo é a poética
consumação de um tórrido caso de amor.
SEJA NA
TERRA, SEJA NO MAR
Aqui se
remete ao epíteto que consagrou o Flamengo em seus primórdios, o de
“Campeão de Terra e Mar”, que descreve um clube vitorioso no
futebol e no remo. À guisa de curiosidade, o Flamengo era à época
o tricampeão carioca de futebol e tetracampeão carioca de remo.
Dominava os gramados e as regatas.
VENCER,
VENCER, VENCER

UMA VEZ
FLAMENGO,
FLAMENGO
ATÉ MORRER
Novamente
a paixão plena, febril, que seca a boca e arrepia a alma. O torcedor
apaixonado precisa repetir e repetir seu amor pelo clube. “Amo o
Flamengo, e serei Flamengo até a morte, até que me cessem as
forças”. É a verborragia daqueles que estão abandonados à sua
paixão.
NA REGATA
ELE ME MATA,
ME
MALTRATA,
ME
ARREBATA,
QUE EMOÇÃO NO CORAÇÃO
QUE EMOÇÃO NO CORAÇÃO
Aqui a
descrição de uma das mais caras peculiaridades flamengas. As
vitórias árduas, sofridas, encarniçadas. Um rubro-negro, desde
sempre, sabe que “nada pro Flamengo é fácil”, as conquistas
sempre virão após ensopar camisas de suor, deixar a existência no
palco de luta. Nessa sequência de versos, o torcedor “joga junto”,
sofre, pena, pulsa ao lado do Flamengo. O Flamengo mata, maltrata,
emociona. Mas arrebata-nos em uma paixão incontrolável, indomável,
difícil de exprimir.
CONSAGRADO
NO GRAMADO
SEMPRE
AMADO
MAIS
COTADO NOS FLA-FLUS
É O
AI-JESUS
A menção
ao gramado complementa a sequência anterior, que se refere às
regatas, reforçando o caráter de “Clube de Terra e Mar” do
Flamengo. “Sempre amado” reitera a condição de elemento
aglutinador de uma torcida que jamais o abandonará, seja qual for a
circunstância.
E então
chegamos à tal passagem controversa.
Ao
contrário do que um certo senso comum apressadamente tenta tornar
verossímil, a construção do verso de Lamartine faz menção aos
Fla-Flus para anunciar o Flamengo como o “mais cotado” no
clássico. Ou seja, “Nós não temos limites. Não tememos ninguém.
Somos os mais cotados contra qualquer adversário.”
E por que
Fla-Flu?

E o
“ai-jesus”? O Fla-Flu é um ai-jesus, afinal de contas?
Não. Não
é esse o sentido do verso. Não é o Fla-Flu o ai-jesus. O ai-jesus
é o próprio Flamengo.
Ai-jesus
é uma expressão antiga, que caiu em desuso no português
brasileiro, mas ainda possui certo, posto que baixo, trânsito em
Portugal. Recorra-se a alguns dicionários e frases para explicar-lhe
o sentido:
Dicionário
Caudas Aulete
ai-jesus
s.m.
1. O
predileto, o mais querido. “O netinho era seu ai-jesus”
Dicionário
UNESP de Português Contemporâneo
AI-JESUS
s.m.
O
predileto; o queridinho; “Mariano era o ai-jesus das tias.”
Dicionário
MICHAELIS
ai-jesus
s.m.
Aquele
que é o predileto ou o queridinho: “Meu pai o castiga, mas a mãe
tem nele seu ai-jesus”
“Rosicky
é o ai-jesus da República Tcheca, o jogador à volta do qual tudo
gira; uma espécie de Cristiano Ronaldo tcheco” (Jornal Expresso,
20.06.2012);
“O
caminhoneiro é um bom vivant, não tem patrão nem horário, dorme
onde bem lhe apraz, seu teto é o céu cheio de estrelas, é o
ai-jesus das mulheres...” (Raquel de Queiroz, O Cruzeiro, 1950).
Ou seja,
tornando-se aos versos, o Flamengo é o mais cotado nos Fla-Flus, o
Flamengo é o ai-jesus. É o favorito, o mais querido, o mais amado,
aquele para o qual todos olham, aquele que todos amam amar.
EU TERIA
UM DESGOSTO PROFUNDO
Aqui se
tem uma interessante guinada na melodia, que deixa de ser triunfal,
alegre, ritmada, e se torna introspectiva, pensativa, quase
melancólica. O torcedor apaixonado simplesmente se desnorteia diante
da perspectiva de ausência de seu amor maior. É a manifestação
clássica, quase adolescente, pueril, de entrega, de paixão, “Sem
você não consigo viver”, “Não sou ninguém sem você”. O
torcedor simplesmente estanca-se, perde a referência ao ser
confrontado com tão desairosa ideia. E anuncia, triste,
verborrágico, passional: “Sem o Flamengo, minha alma calaria”.
ELE
VIBRA, ELE É FIBRA
Deixando
rapidamente de lado pensamentos desagradáveis, a música volta ao
seu ritmo febril, pulsante, compassado, enaltecendo que o Flamengo
vibra, é fibra, é alma, vida, fogo, transborda no calor da disputa.
Flamengo, tua glória é lutar, é brigar até o fim por cada naco de
glória. Jamais desistir, nunca perecer.
MUITA
LIBRA JÁ PESOU
O
Flamengo é popular, é querido, é apaixonante, é luta, é garra,
mas também é vitória, é taça, é conquista. E Lamartine encontra
uma forma extremamente elegante para exprimir essa característica
tão cara aos flamengos. Reto, direto, sem firulas, mas usando uma
construção extremamente inteligente. O Flamengo já “pesou muitas
libras”. Pesar libra era uma gíria antiga no remo, que significava
“vencer regatas”. Explicando:
Antes de
cada regata, todos os barcos competidores eram (e ainda hoje são)
submetidos a pesagens, para aferir se estavam dentro do limite mínimo
de peso inerente a cada categoria. Finda a competição, o barco
vencedor passava por nova vistoria. Esta nova pesagem (em libras,
medida inglesa usada na época) era requisito para a homologação do
resultado, da vitória. Ou seja, o Flamengo “já pesou muita
libra”, ou seja, já passou por muitas pesagens de homologação.
Logo, já ganhou muita regata. “Muita libra já pesou”. Já
experimentou muitas vezes o doce sabor das vitórias.
FLAMENGO
ATÉ MORRER
EU SOU

Portanto,
cada vez que entoamos o Hino Popular do Flamengo, cada momento que
cantamos “Uma Vez Flamengo, Sempre Flamengo”, estamos, mais do
que enaltecendo nosso clube querido, estamos tecendo loas à nossa
paixão, ao nosso amor. Anunciando ao mundo inteiro a alegria de ser
rubro-negro. Porque o Hino, o nosso Hino, não é a exaltação a uma
instituição, a uma personalidade, a uma história.
O nosso
Hino Flamengo é uma homenagem ao Amor.
Ao nosso
Amor.
Boa
semana a todos,