Saudações
flamengas a todos,
Semana
passada, estes Alfarrábios prestaram uma singela e tocante homenagem
ao ilustre Fluminense FC, que completou 114 anos de existência.
Ainda inebriado e mesmo enlevado com tão encantadora efeméride,
quero no dia de hoje estender os protestos de estima e consideração
a outro rival querido, o distinto Club de Regatas Vasco da Gama,
agremiação tão presente nos fartos e vastos momentos de grandeza
da história flamenga. Como não simpatizar com um clube que nos
proporciona tantas alegrias?
Enfim, em
2016 se celebra o centenário do futebol do clube de São Januário.
Provavelmente para pontuar tão grandioso momento de sua história, o
Vasco se preparou para uma volta às origens, alinhando-se nas
divisões subalternas do futebol, tal como há cem anos. Há algo de
vintage, de recorrente, nessa presença do cruzmaltino na Série B do
Brasileiro.
Enfim,
que apreciem a lembrança. Foi de coração.
* * *
03 de
maio de 1912. Em uma chuvosa tarde de sexta-feira, o CR Flamengo
estreia seu time de futebol na Primeira Divisão do Campeonato
Carioca, enfrentando o SC Mangueira, da Tijuca, no enlameado campo do
América FC, à Rua Campos Salles. Sem dificuldades, o Flamengo
derrota o adversário por 16-2.
03 de
maio de 1916. Em uma nublada tarde de quarta-feira, o CR Vasco da
Gama estreia seu time de futebol na Terceira Divisão do Campeonato
Carioca, enfrentando o Paladino FC, da Piedade, no campo do Botafogo
FC, à Rua General Severiano. Sem dificuldades, o Paladino derrota o
adversário por 10-1.
O início
da década de 1910 assinala um crescente e irreversível movimento de
popularização e massificação do futebol enquanto esporte. Uma das
principais evidências desse processo é a migração de clubes de
remo e esportes aquáticos para o “violento esporte bretão”,
como é o caso do Flamengo, logo seguido por clubes como Guanabara,
Icarahy, Boqueirão do Passeio e, pouco mais tarde, Botafogo FR
(resultado da fusão entre o Botafogo FC e o CR Botafogo) e São
Cristóvão FR, também originado de uma junção entre homônimos de
remo e futebol.
Em 1913,
um combinado português vem disputar amistosos no Brasil. Numa
partida histórica, enche de porrada o “eleven” do Botafogo,
vencendo por 1-0 e quebrando o seu oponente, apesar de uma ruidosa
torcida que durante todo o tempo hostiliza os forasteiros (é muito
forte o sentimento anti-lusitano na capital federal). O triunfo dos
gajos anima a colônia portuguesa, que enxerga possibilidades de
montar uma equipe própria no futebol.
O Vasco
da Gama, a essa altura, já é um clube respeitado no remo,
cultivando uma sólida e áspera rivalidade com Botafogo, Icarahy e,
principalmente, o Flamengo. Acontece que os rapazes do Flamengo, por
ocasião dos momentos relativamente frequentes de vitórias sobre os
portugueses, costumam zombetear, tripudiar, festejar além do limite
considerado tolerável (“O basco é uma putêêêêêência...”).
A plateia carioca adora, mas cada gracinha acende um misto de
ressentimento e ódio, que por vezes transporta a rivalidade a níveis
inflamáveis. É o caso de uma partida Flamengo x Vasco válida pelo
Campeonato de Water Polo, em que todos os presentes saem na mão após
uma discussão surgida dentro da piscina. Jogadores, treinadores,
árbitros, jornalistas e o público, todo mundo bate e apanha, num
sururu monumental que redunda na eliminação dos dois clubes da
competição.
Em 1915 o
Lusitano FC, clube que somente admite portugueses, detém uma vaga e
o direito de participar do Campeonato Carioca do ano seguinte. As
vagas são restritas, não atendendo à demanda dos inúmeros clubes
de futebol que vão surgindo pela cidade. No entanto, a agremiação
portuguesa, com dificuldades, pensa em fechar as portas. Mas, na bacia das almas, costura-se um acordo com o Vasco, que absorve a estrutura do Lusitano
e herda a sua vaga na Federação, conseguindo, portanto, o direito
de fazer parte do Campeonato Carioca de 1916. Na Terceira Divisão.
A
Terceira e última divisão do futebol carioca promete ser acirrada,
acenando, a princípio, com uma vaga na série imediatamente
superior. Ao todo, sete equipes estão inscritas para sua disputa,
completando as 21 vagas disponíveis para o Campeonato da Cidade, em
suas três divisões (sete em cada nível).
Os
participantes são os seguintes:
- Parc-Royal FC – fundado pelos funcionários da Casa Comercial Parc-Royal, que vende roupas e tecidos. É mais ou menos como se a C&A montasse um time pra jogar o Campeonato Carioca. Manda seus jogos no Estádio do São Cristóvão, em Figueira de Mello;
- SC Brasil – sediado na Praia Vermelha, Urca, onde manda seus jogos. É conhecido como “o time da faixa vermelha”, em alusão ao seu uniforme;
- Ríver FC – o tricolor da Piedade foi fundado em 1914, por ex-alunos do Colégio Salesiano de Santa Rosa (Niterói), que queriam seguir batendo sua bolinha. Conseguiram um terreno na Piedade, onde construíram seu campo, apesar do terreno pantanoso;
- CR Icarahy – representante da Seção de Desportos Terrestres de um dos principais clubes de remo do Rio de Janeiro, também iniciou recentemente as atividades no futebol;
- Ingá FC – é excluído da competição, por não pagar a taxa de inscrição;
- CR Vasco da Gama;
Assim,
com a desistência do Ingá, a Terceira Divisão será disputada por
seis equipes. A partida de estreia acontece entre Vasco e Paladino,
no Estádio do Botafogo, na Rua General Severiano.
O match
disputado em 03 de maio pode ser resumido em três palavras: Gol do
Paladino. O céu está nublado, mas não chove, venta um pouco... Gol
do Paladino. O público é pequeno, composto na maioria por membros
da colônia portuguesa e alguns curiosos e... Gol do Paladino. O
árbitro trila o apito, o jogo não é muito movimentado... Gol do
Paladino.
O que se
vê em campo é um passeio, uma superioridade constrangedora do time
de camisas azuis e vermelhas listradas. É o Barcelona? É o
Bonsucesso? Não, é mais um Gol do Paladino!
Gol do
Paladino... bem, em dado momento, um jogador de branco consegue fazer
uma jogada diferente e marcar um gol. Gol do Paladino? Bem, isso
também, mas agora o gol é do Vasco. Marcado por Adão Brandão.
Cabe um
parênteses para falar de Adão Brandão. Português de Penafiel,
consta que não era muito dado aos estudos, o que deixou sua família
um tanto desapontada. A manifestação dessa insatisfação se deu de
uma forma bem sutil, com o rapaz sendo expulso da família e
enxotado, com a roupa do corpo, para o Brasil, com a carinhosa
recomendação de jamais retornar. Sabe-se lá como o sujeito lidou
com isso, mas a questão é que ao menos uma bola sabia chutar, e com
isso foi selecionado para integrar o “eleven” dos vascaínos.
Conta-se que Adão, por conta do seu feito, qual seja ter marcado o
primeiro gol da história do Vasco, ganhou estátua, placa e o diabo
lá no Memorial dos Vascaínos. Talvez a placa diga algo como:
“Em
homenagem a Adão Brandão, autor do primeiro gol do CR Vasco da
Gama, marcado em 03.05.1916, na partida Vasco 1-10 Paladino, pela
honra lusitana, quando o placar assinalava oito tentos a zero para o
adversário.”
Enfim,
depois do feito histórico de Adão Brandão, Gol do Paladino, e
antes que o jogo acabe, Gol do Paladino. E assim termina a estreia
vascaína na história do futebol carioca. Gol do Paladino.
Após
essa importante e bonita página escrita pela colônia portuguesa nos
anais do nosso esporte bretão, os associados do CR Vasco aguardavam
ansiosamente seus onze heróis, para lhes proporcionar uma recepção
condigna e adequada ao momento. Narra-se que laranjas podres, ovos e
tamancos foram atirados em profusão sobre os protagonistas da épica
batalha contra o Paladino, tão logo estes puseram os pés na sede do
clube.
O
restante da campanha do Vasco na Terceira Divisão foi bastante
regular, uniforme e dotado de uma impressionante constância. Perdia
todas. O pacto com a derrota foi firmado com impressionante
seriedade, era pétreo, rígido. Senão, vejamos.
Depois do
Paladino, o Vasco enfrenta o SC Brasil. 5-1 pro time da Praia
Vermelha. Alguns dias depois, é a vez do Icarahy tirar sua
casquinha, 4-0. Aí vem o jogo com o time da C&A, quer dizer, do
Parc-Royal. O negão Sebastian não está em campo, mas o trio
Carlucci, Nicomedes e Fittipaldi acaba com o jogo. 4-2 pra C&A.
Aí, para finalizar o primeiro turno, o jogo mais fácil, contra o
modesto River. Termina 4-3. Pro River.
No meio
do Segundo Turno, o SC Brasil desiste da disputa, alegando
dificuldades financeiras.
Bem,
pode-se dizer que nesse turno o Vasco evolui, auferindo resultados
algo melhores. Já consegue perder de pouco, o que não deixa de ser
um avanço. E os adversários começam a fazer a filinha do
pescotapa. Paladino 2-0, Parc-Royal (prazer em conhecer) 3-0, Icarahy
4-1. Até que, a 29 de outubro, o incrível, o inimaginável, o
bizarro, o sobrenatural, acontece. O Vasco vence uma partida!
É no
campo do São Cristóvão. O adversário é o River, vice-lanterna,
que, na última rodada, praticamente larga o campeonato de mão. Só
consegue colocar 9 jogadores em campo. E, mesmo com dois a menos,
abre o placar. Mas o Vasco, numa fantástica “jornada de
superação”, consegue reverter o placar contra o duro oponente,
fazendo 2-1. “É o time da virada, é o time do amor, ô, ô, ô...”
E assim termina o Campeonato Carioca da Terceira Divisão, com a seguinte
classificação: 1.Icarahy 15, 2.SC Brasil 14, 3.Parc-Royal 12,
4.Paladino 10, 5.River 7, 6.Vasco 2.
O Vasco é
o lanterna da Terceira Divisão, ostentando, já na sua fundação, o
expressivo título de Pior Clube do Rio de Janeiro, uma vez que obtém
o último lugar da última divisão do futebol carioca.
Mas o
desfecho será surpreendente.
O futuro
das demais cinco equipes não será lá muito pródigo. O CR Icarahy
permanecerá perambulando pelas divisões de baixo do futebol
carioca, sem jamais ascender à elite. Com o fim do amadorismo,
fechará as portas. Sorte melhor terá o SC Brasil, que será figura
recorrente nos Campeonatos das décadas de 1920 e 1930. Também
sucumbirá ao advento do profissionalismo. O Parc-Royal desmanchará
sua equipe, mas o plantel se reagrupará sob o nome de Progresso FC,
passando a atuar no Campo da Rua Morais e Silva (na região do atual
Maracanã), mas será extinto no final dos anos 1920, sem apresentar
feito relevante.
O
Paladino FC também não conseguirá chegar à Primeira Divisão.
Após várias mudanças de sede, fincará raízes em Campo Grande. No
bairro distante, em dificuldades, acederá a uma fusão com um clube
local, dando origem ao Campo Grande AC, precursor do simpático
“Campusca”, que desenvolverá passagem marcante nos campos
cariocas entre as décadas de 1960 e 1990.
O River
FC conseguirá ascender à Primeira Divisão nos anos 1920,
disputando com frequência os Campeonatos com e sem asterisco até o
final da década de 1930, quando descontinuará a Seção de Futebol.
O Ríver será derrotado pelo Flamengo em 1933, na última partida da
história do rubro-negro em sua Era do Amadorismo. Ironicamente, o
placar do match será 16-2, o mesmo da estreia flamenga. Ciclo fechado.
Muitos anos mais tarde, nas quadras de sua sede, na Piedade, um
garoto magrinho surgirá como uma força da natureza, marcando cinco,
seis, dez gols por jogo. Chamará a atenção, motivará visitas de
observadores. Um deles se encantará, e abrirá portas do futebol
profissional para o garoto Arthur. Ou Arthurzico, como o conhecem.
E o
Vasco?
Bem, na
qualidade de Pior Time do Rio de Janeiro seria natural que se
deparasse com um descenso, um rebaixamento. No entanto, como não há
uma Quarta Divisão, ou Peladas do Aterro, ou Campeonato de Paróquias
da Quermesse, o jeito é mantê-lo mesmo na Terceira Série. Em tese.
No
entanto, uma rebelião dos clubes menores, que anseiam por mais vagas
nos campeonatos da cidade, acaba gerando uma reestruturação radical
no quantitativo de vagas. Ao invés de sete, as divisões passarão
ao contar com 10 clubes cada. Uma vez que o Guanabara FC (que
disputara a Segunda Divisão) desiste do campeonato do ano seguinte,
a Segunda Divisão acaba absorvendo todos os clubes da Terceira
Divisão do ano anterior. Assim, ao invés de ser rebaixado ou mesmo permanecer onde está, o lanterna Vasco SOBE para a Segunda
Divisão em 1917.
Vasco. Contra tudo e contra todos. Ganhando sempre no campo.
E assim
se encerra a história do primeiro ano da vida futebolística do
brioso clube da colônia portuguesa, cujo nome homenageia o Grande
Navegador Português Vasco da Gama, Segundo Vice-Rei da Índia. O CR Vasco da Gama, que, a exemplo da maioria dos clubes,
ostenta o Hino de Lamartine (o popular) e o Hino Oficial, cujo refrão
diz:
“Avante
então/Que pra vencer/Sem discussão/Basta querer/Lutar, lutar/Os
vascaínos/De terra e mar/Os paladinos”
Os
paladinos? Opa! Gol do Paladino.
Boa
semana a todos,
PS – já
que se fala dos primórdios do nosso vice preferido, interessante ler
isso aqui, sobre "o primeiro jogador negro".