quarta-feira, 20 de julho de 2016

Alfarrábios do Melo

 Saudações flamengas a todos,

1991. Maracanã. 110 mil. Flamengo e Botafogo decidem, num domingo incrivelmente chuvoso e ensolarado, a Taça Rio. O clima feérico parece prever as alucinantes reviravoltas que estão por vir no campo. O Flamengo, mais aguerrido e competitivo, entra pressionando, acua o adversário e com 17 minutos já vence por 2-0, gols de Gaúcho (numa belíssima cabeçada) e Zinho (num frango de cinema de Ricardo Cruz). O Flamengo deixa o adversário grogue e roda a bola, para delírio da maioria rubro-negra no estádio. Cria chances, mas não mata o jogo. Isso será fatal mais tarde.
Segunda etapa. O treinador botafogo, Ernesto Paulo, substitui o tímido lateral Paulo Roberto pelo agressivo Odemílson. E “queima os navios” ao trocar o volante Djair pelo irrequieto atacante Vivinho. As alterações incendeiam a partida, e o Botafogo vem pra cima. Diminui com Carlos Alberto Dias já aos 9', e começa a pressionar. Mas, aos poucos, o Flamengo vai, ao menos, mantendo o Botafogo distante de sua área, tentando reter a bola. A partida se torna nervosa. Esgotado, o Botafogo parece no limite das forças, arrefece a pressão e aos 30' a massa flamenga começa a pressentir a vitória, cantando a plenos pulmões. Carlinhos, buscando dar mais combatividade ao meio-campo, tira o cansado Maestro Júnior e coloca o volante Zé Ricardo. Será seu erro.
A perda da referência, do comando, da liderança, da qualidade e do toque de bola do Flamengo mostra-se devastadora. O Botafogo se inflama e avança todas as suas peças. Ao rubro-negro restam as bicudas e o bumba meu boi. Começa a saraivada. Bola na trave, defesa de Gilmar, o diabo. Ninguém respira. Passamos dos 40'. O empate não sai, embora o jogo se concentre nos arredores da área flamenga. Até que Júnior Baiano, talvez tentando emular Domingos, talvez se esquecendo de que não está em uma pelada no chão batido de Feira de Santana, resolve sair driblando em sua pequena área. Perde a bola e daí sai o empate, novamente com Dias. O lado direito do Maracanã explode, o Flamengo sai “derrotado”, Júnior reclama de ter saído e o clima não parece nada bom para o jogo-extra da quinta-feira. Mas o Flamengo conseguirá reverter a expectativa negativa e levará a melhor no duelo seguinte, conquistando a taça.

2016. Estádio Comendador Souza, Barra Funda, São Paulo-SP. Flamengo e Bahia se enfrentam pela Quarta Fase da Copa São Paulo de Futebol Júnior. Apesar do caráter teoricamente eliminatório da partida, o Flamengo já entra em campo classificado, por conta de peculiaridades do regulamento e de sua boa campanha na Primeira Fase. No entanto, o rubro-negro encara a partida com seriedade e como um teste importante, uma vez que o Bahia é o primeiro adversário de certa expressão que enfrenta no torneio.
O Flamengo, solto, começa bem, envolvendo o adversário. Logo consegue um pênalti, que Cafu desperdiça. Mas segue criando chances em abundância e, em uma jogada de Paquetá, chega ao primeiro gol, com Felipe Vizeu. Pouco depois, o mesmo Vizeu amplia para 2-0, após cruzamento do lateral Thiago Ennes. Ainda antes do final da primeira etapa, o Flamengo quase amplia, e as equipes vão para o intervalo após ampla e cristalina vantagem rubro-negra.
Na segunda etapa, o Bahia, precisando ao menos levar o jogo para os pênaltis para sonhar com uma vaga extra, avança completamente suas linhas. O Flamengo, aparentemente acomodado, tenta cozinhar em banho-maria, circulando a bola, mas perde o controle da partida. As alterações, especialmente a saída do meia-atacante Matheus Sávio, não ajudam, e o Bahia agora exerce uma pressão quase insuportável. Manda bola na trave, marca um gol, que é anulado. O goleiro flamengo Thiago vai tendo muito trabalho, mas o tempo vai passando e sua meta não é vazada. O Bahia parece cansado, já cede espaço para os contragolpes flamengos. Mas, aos 38', enfim os baianos conseguem diminuir, o que acende a sua torcida presente no pequeno estádio. O Flamengo mal dá a saída de bola, e num passe errado cede o empate ao adversário, um minuto depois. Antes dos 40', o jogo já está empatado, tornando-se sensacional. Segue-se uma troca de golpes e chances perdidas (o Flamengo se enche de brios e sai da trincheira, mas agora é tarde). Entretanto o jogo termina mesmo nos 2-2, indo para os pênaltis. Mais inteiro fisicamente, o Flamengo é mais eficiente e derrota o adversário, seguindo invicto no torneio que acabará vencendo.

* * *

A narrativa resumida das duas partidas acima merece alguma reflexão.

É bem verdade que o empate-derrota no tablado da Ilha do Governador, sábado passado, contra um adversário que pouco mais tinha a oferecer do que correria e rancor, frustrou e irritou nossa torcida, que tinha como certos os três pontos após Paolo Guerrero, novamente marcando gol em um clássico, ter anotado o terceiro gol flamengo. Daí, as reações espalharam-se em impropérios contra jogadores, diretoria, treinador e outros atores menos cotados. Normal.

Flamengo e Botafogo têm por característica realizarem jogos movimentados, corridos e usualmente cheios de alternativas. A equipe que está atrás no marcador dificilmente desiste da partida, pois não aceita, não admite ser subjugada pelo adversário. Donde, não é raro marcadores serem revertidos, empates heróicos buscados, derrotas já contadas virarem empates, vitórias escoarem pelos dedos. Além do exemplo citado, qual flamengo não lastimou os 3-3 na Taça Rio de 1989 (em que Gonçalves “ressuscitou um morto”)? Ou não ficou apreensivo com os 2-2 na Final do Estadual de 2009, que quase custaram o tri? Por outro lado, quem não comemorou o milagroso empate arrancado na primeira final do Estadual de 2007? Ou o gol do Imperador no lance final de um jogo em 2010? Ou o gol de Josiel, em jogada de Zé Roberto, quando o comentarista, nos descontos, falava da justiça da “vitória alvinegra”? Ou os emocionantes 4-4 de um jogo pelo Rio-São Paulo de 1999, arrancados quando o adversário já cantava goleada?

São peculiaridades de um jogo de alta rivalidade, em que qualquer descuido se torna mortal.

Invocou-se a “frouxidão” da equipe, ainda no rescaldo do pavoroso perfil anímico demonstrado pelo elenco flamengo de 2015, do qual ainda remanescem vários elementos, cuja presença no time traz um misto de indignação e impotência de um torcedor ansioso por ver em campo uma formação aguerrida, combativa, briosa e vencedora.

No entanto, embora admita que o Flamengo de 2016 ainda não faz correr em suas entranhas a flamejante e ardente seiva na qual se encharcou forjando sua personalidade de protagonista, e em vários momentos tenha trespassado uma postura apática, gélida, inerte e indiferente aos apupos e apelos de sua gente, não reputo a este senão o revés de sábado passado, em que pese o comportamento da equipe nos primeiros 45 minutos, deixando-se intimidar por um “américa” em negro e branco, tenha mesmo sido inaceitável.

Mas entendo que a questão ali foi estratégica e talvez tática. E aí entramos no segundo exemplo deste texto.

O Flamengo do Zé Ricardo já demonstrou, em várias partidas deste Campeonato Brasileiro, e mesmo em alguns momentos da Copa São Paulo que, dispondo da vantagem sob o braço, prefere entregar a bola ao adversário e tocaiá-lo em sua intermediária, buscando estocá-lo em contragolpes, assim matando o jogo. É uma estratégia válida quando se tem uma defesa intransponível e um meio-campo capaz de picotar o jogo, truncar e travar as ações do adversário ainda na origem, no terreno da linha central. Quando se cede espaços em excesso, permitindo que o oponente troque passes e busque a criação já na zona intermediária defensiva, ou mesmo, em casos extremos (como na partida contra o Atlético-MG e no início do jogo contra o Internacional), já nas franjas da grande área, o risco de uma falha, um bote errado, uma falta inconveniente se torna altíssimo, e não é raro haver o castigo numa das diversas bolas que ficam por ali pererecando perto do gol. Foi o caso sábado, poderia ter acontecido em Recife, ou mesmo domingo passado, em Brasília.

O Flamengo do Zé Ricardo já demonstrou capacidade de reação em outros momentos. É um time que está começando a aprender a jogar em desvantagem. Não é raro empatar ou mesmo virar jogos em que sai atrás do marcador, algo que até pouco tempo atrás soava impensável. Não é mais aquela equipe que basta ser atacada para que sofra um gol. Claro, ainda oscila durante alguns jogos, especialmente pela falta de jogadores de ponta, do “chefe” a quem os coadjuvantes recorrem para contornar dificuldades. O cara que acalma e estabiliza.

Poderia ser Diego esse cara? Ou Donatti?

O tempo dirá. Donatti é o típico “xerifão”, o zagueiro-zagueiro, o jogador dado a bicudas, esporros e mesmo àquela porrada marota, pra intimidar. É possível que o Flamengo ganhe casca e caráter com sua presença em campo, embora Réver e Juan também possam, cada um dentro de seu estilo, exercer certa ascendência sobre o grupo. Até porque, antes de mais nada, é preciso saber se o grandalhão argentino será capaz de entregar respostas técnicas que o capacitem a integrar a equipe titular. Um complicador é o excepcional rendimento alcançado pela dupla Réver-Vaz e o bom aproveitamento de Juan no primeiro semestre, o que o habilita a disputar uma das vagas na zaga titular.

Quanto a Diego, que vem para ser o Camisa 10 de fato (embora traje outro número): que o Flamengo não cometa com o excepcional jogador o erro de avaliação na abordagem a Paolo Guerrero. Que não exija de seu contratado aquilo que está acima de suas possibilidades. Que o deixe livre, à vontade, buscando se divertir em campo. Naturalmente, que deixe claro o que espera em termos de resultados coletivos, de patamar a ser alcançado, e qual a função de Diego, como jogador de alto nível, grande capacidade técnica e experimentado em centros mais avançados, nesse contexto. Protagonista em um clube protagonista.

Mas que não se busque um messias, um semideus, um Zico. Que se deixe Diego jogar como Diego. Que ele resolva dentro do campo. Não fora.

Assim sendo, iremos longe.

Muito longe.