quarta-feira, 6 de julho de 2016

Alfarrábios do Melo


1987. CAMPEONATO BRASILEIRO. FINAL
O embalado Flamengo e o traiçoeiro Internacional demonstram mútuo respeito nos bastidores, evitando declarações mais contundentes. O treinador colorado Ênio Andrade exalta a “competitividade” e o “equilíbrio” do rubro-negro, enquanto Carlinhos, técnico flamengo, pede “cuidado” contra um time particularmente perigoso em jogos eliminatórios.
O tom ameno é seguido por Zico, Andrade, Bebeto, Taffarel, Luiz Carlos Winck, Amarildo, enfim, as referências dos dois elencos. Até que alguém resolve entrevistar Renato: “Ah, vamos parar com isso. O time do Internacional, para se tornar forte, precisa de uns seis reforços. Não somos o Cruzeiro (em referência ao adversário eliminado pelos gaúchos nas Semifinais). O colorado pode perder as esperanças. Já deu pra eles.”
O Flamengo, após empate no Beira-Rio (1-1), derrota o adversário no Maracanã (1-0) e se sagra tetracampeão brasileiro. Renato é o melhor em campo no jogo em Porto Alegre, protagonizando as principais jogadas, dando uma assistência e respondendo às vaias, xingamentos e objetos arremessados com sorrisos debochados, gestos provocativos e tapas no peito mostrando o escudo.

1990. COPA DO BRASIL. SEMIFINAL
Nem mesmo a folgada vantagem obtida no jogo de ida (3-0 no Maracanã) tira do Flamengo o foco para a esperada “guerra” nos Aflitos, contra um Náutico que irá jogar a vida nas Semifinais da Copa do Brasil. O adversário está inflamado e mordido com as tentativas, tornadas infrutíferas, do rubro-negro de transferir a partida para o Arruda. Irá lotar o alçapão e gritar a plenos pulmões pelo milagre. Outro dia, pela mesma competição, o Goiás empurrou 4-0 no Cruzeiro. Os alvirrubros acreditam serem capazes de fazer algo parecido.
E o milagre parece mais palpável quando o Náutico abre o placar aos 10', enlouquecendo o estádio. Pouco depois, uma bola alçada e uma cabeçada na trave. O Flamengo parece grogue. É o momento certo em que os grandes jogadores precisam aparecer. Renato vai pro meio, pede bola, livra-se de um contrário e abre para Djalminha dar um corte pro lado e emendar a bomba, empatando o jogo. Ainda na primeira etapa, Renato cai para a esquerda, senta um defensor no chão, põe a bola entre as canetas de outro e segue em direção à área. Na saída do goleiro, manda um toquinho de bico, no canto. É o gol da virada e da classificação, que congela o estádio. No segundo tempo, diante de um Náutico entregue, o Flamengo transforma a guerra em um amistoso, tocando bola sem pressa. Ainda leva o empate a um minuto do fim, mas a vaga para a final já está no bolso com os 2-2.

1993. COPA LIBERTADORES. PRIMEIRA FASE
O Internacional contrata vários jogadores para a Libertadores, à qual se classificou por ter conquistado a Copa do Brasil no ano anterior. Está motivado e se julga apto para, enfim, conquistar o torneio continental que julga ser sua obsessão. A estreia se dará contra o Flamengo, campeão brasileiro e adversário direto pela briga por uma das vagas de um forte grupo que ainda conta com os temidos colombianos Nacional (Medellín) e América (Cali).
O Flamengo espera uma guerra no Beira-Rio, mas nenhum aparato parece ser suficiente para a língua de Renato. O atacante concede longa entrevista enaltecendo sua capacidade de provocar e perturbar a torcida colorada. Apela para que os gaúchos lotem o estádio, pois gosta de vencer em campo cheio. Narra que possui um longo histórico de vitórias contra seu “freguês”. E avisa que irá repetir o gesto já tornado tradicional, mandando a torcida silenciar após um gol seu.
O Internacional, como esperado, entra mordido e apela mesmo para jogadas violentas. Mas não supera um Flamengo mais bem postado e entrosado (manteve boa parte da base do ano anterior). Renato, ainda fora de forma, entra na segunda etapa e, como esperado, bagunça a defesa gaúcha e cria algumas chances, apesar (ou por causa) das vaias inclementes. Mas o jogo termina mesmo em um 0-0 que é tido como conveniente pelo Flamengo. O rubro-negro acabará se classificando e o Inter ficará pelo meio do caminho.

1993. SUPERCOPA LIBERTADORES. SEMIFINAIS
A maioria dos prognósticos aponta para, na melhor das hipóteses, severas dificuldades a serem enfrentadas pelo Flamengo no jogo de volta contra o Nacional, de Montevideo, no mitológico Estádio Centenário. Com efeito, o rubro-negro vencia por confortáveis 2-0 no jogo de ida (disputado no Pacaembu), mas sofreu um gol bobo nos descontos, esfarelando sua vantagem para o árduo confronto decisivo.
O Nacional, que possui um bom time (base da Seleção Uruguaia e razoável campanha na Libertadores), começa o jogo pressionando muito, exigindo grandes defesas de Gilmar. Aos poucos, o Flamengo vai colocando a bola no chão e conseguindo encaixar o contragolpe, especialmente nas investidas de Renato. No final do primeiro tempo, abre o placar, numa cabeçada de Nélio. Na volta do intervalo, o Flamengo surpreende o adversário, ao tomar a iniciativa do jogo de forma agressiva. Numa bola esticada, o lateral Marcos Adriano divide com o goleiro Jorge Sere e na sobra Renato acerta belíssima cabeçada, encobrindo Sere e ampliando o marcador. O Flamengo ainda marcará mais um gol, o que será demais para o fanático torcedor uruguaio, que decretará, a pedradas, o final da partida. Com os 3-0, o Flamengo está na Final da Supercopa.

1993. SUPERCOPA LIBERTADORES. FINAL
O Flamengo, às voltas com partidas decisivas na Supercopa e no Brasileiro, e com poucas opções de elenco, vive uma cruel maratona de jogos, também compartilhada pelo adversário, que leva vantagem por priorizar algumas partidas e rodar melhor o elenco. Após um empate (2-2) no Maracanã (obtido “graças” a uma expulsão infantil de Júnior Baiano), o Flamengo chega a um Morumbi lotado na condição de azarão, para a disputa da Final da Supercopa.
Mas não é o que se vê assim que a bola rola. Empurrado por Renato, o rubro-negro toma a iniciativa e, atuando com bravura e coragem, domina completamente o jogo, impondo-se ao premiado São Paulo de Telê em pleno terreno adversário. Já aos 9', abre o placar com Renato, de cabeça. O atacante, que está em dia iluminado, sente-se inteiramente confortável em campo. Os grandes jogos são seu bálsamo. Renato inferniza a dupla de zaga são-paulina, cria chances, perde gols, é a cara e a alma de um Flamengo guerreiro, valente.
Mas no segundo tempo o time sucumbirá ao cansaço. Não suportará o ritmo forte do jogo. Recuará. Sofrerá com a saída de Renato, esgotado. E amargará um empate (2-2) que ainda será conquistado com ardor, em um chute forte de Marquinhos quando o fim parecia iminente. Fim esse que, à guisa de castigo, desvendar-se-á em uma cruel cobrança de pênaltis. A derrota de um time que jogou como campeão.

1993. CAMPEONATO BRASILEIRO. SEGUNDA FASE
Com um time já dando evidentes sinais de esgotamento físico, o Flamengo simplesmente se recusa a aceitar a iminente eliminação do Brasileiro. Os jogos finais se sucedem com inacreditável constância: no início o rubro-negro impõe sua capacidade técnica superior e abre vantagem, para cedê-la na segunda etapa, fatigado e sem condições de suportar a pressão do adversário. E assim o time perde pontos preciosos para Corinthians, Santos e Vitória.
A tabela marca uma partida contra o Corinthians, no Morumbi. É um jogo “de vida ou morte” para as duas equipes, que jogam suas últimas fichas na competição. O adversário, com campanha irretocável até então, é o favorito. Mas o Flamengo desconhece a obscuridade. Sem negar sua índole, parte para cima do adversário, encurrala o pretenso protagonista, silencia o estádio.
Mas há, além do forte oponente de Viola e Rivaldo, outro elemento relevante. Renato Marsiglia erra praticamente todos os lances duvidosos capitais. “Estranhamente”, sempre contra o Flamengo. E assim Renato leva uma patada nos minutos iniciais, dentro da área. Segue o jogo. Um impedimento absurdo bloqueia o que seria um gol flamengo. Na segunda etapa, Rivaldo dá uma voadora em Gilmar, que salta e evita o choque e, irritado, vai tomar satisfações. O árbitro, rigoroso e alerta para coibir o antijogo, expulsa... Gilmar.
Mas, quando uma equipe possui o espírito da vitória talhado em suas entranhas, não se rende. Jogando com dez, diante de um estádio cheio, um adversário em melhor momento, um árbitro parcial e ainda lutando no limite de suas forças físicas, o Flamengo jamais se deixa dominar, entregar. Renato, enquanto tem pernas, segue chamando o jogo, desfilando em seu salão de festas, exibindo seu protagonismo e sua vocação para os grandes momentos. Marca um belo gol, perde outros tantos, cria oportunidades. Até o final, mesmo extenuado, empurrará o Flamengo para cima do adversário e o rubro-negro, numa derradeira oportunidade clara, por pouco não sairá com a vitória. No fim, o 2-2, que acaba sendo ruim para as duas equipes, será saudado com os justos aplausos de quem presenciou o melhor jogo daquela competição.


Seis exemplos. Em todos, Renato. Mas aqui não importa o protagonista. Importa o protagonismo. Grandes momentos de glórias, vitórias, ou ao menos luta, bravura, honra. Atitude e coragem. Passagens em que o Flamengo foi grande, se fez grande, se percebeu grande. Que ganhou, que perdeu, que soçobrou, que conquistou. Sempre como grande.

Mas se se quer grande, há que se pensar grande.



Boa semana a todos.