quarta-feira, 15 de junho de 2016

Alfarrábios do Melo

O CENÁRIO

O Flamengo patina em suas contradições.

Anda em círculos, sem conseguir resolver a dicotomia entre sua índole popular, irreverente, que agrada a personalidade do carioca, e um perfil elitista, encastelado, de sua cúpula.

São tempos de transformação. O profissionalismo, antes velado, torna-se aberto, escancarado. Jogadores de qualidade não mais aceitam atuar, treinar, dedicar parte de suas vidas à prática do esporte não-remunerado. Ainda mais quando o esporte deixa de se constituir mero folguedo e se torna algo sério, que demanda envolvimento crescente. Dedicação quase exclusiva.

Enlodado em suas dúvidas, alinhado, num primeiro momento, a um romântico e obsoleto amadorismo, o clube não consegue mais reter jogadores de primeira linha. Monta equipes fracas. Acumula participações desastrosas nos Campeonatos Cariocas (quarto, oitavo, décimo, sexto, nas últimas edições). Empilha goleadas sofridas para equipes de médio/pequeno porte. Começa a se tornar preocupante objeto de chacota do povo da cidade. Para piorar, o campo da Rua Paissandu será devolvido, pois o clube não tem dinheiro para arrematar o terreno da Família Guinle, que o quer de volta.

É quando chega o presidente.

O presidente é publicitário, conhece marketing, tem faro apurado, visão de mercado e, principalmente, enxerga o Flamengo como uma marca. Detentor de uma filosofia extraordinariamente avançada para a época, expõe aquilo que pretende para o Flamengo. Estarrecidos, abismados e incrédulos, os sócios compram a ideia do dirigente e o apoiam. Vai começar. O clube será virado ao avesso.

O presidente entende que o Flamengo é um clube muito grande para o Rio de Janeiro. E para o Brasil.

AS IDEIAS

O FLAMENGO E SUA GENTE

Uma das primeiras medidas é o estímulo à adesão de novos sócios. As condições para a aquisição de títulos são facilitadas. O torcedor é chamado a fazer parte do clube, a ser “dono” do Flamengo, a se sentir fazendo parte da rotina da instituição.
O clube também se aproxima de setores da sociedade, especialmente ligados à Educação e ao Fomento ao Esporte. Trabalha parcerias com escolas públicas, criando escolinhas e centros de apoio de comunidades carentes, o que angaria a simpatia do governo (que ganha poderosa ferramenta de propaganda) e se constitui em uma estratégia de captação de jovens valores (os mais talentosos, em seus respectivos esportes, já se tornam atletas/jogadores do clube).
O Flamengo também estimula iniciativas de massificação da marca. Torna-se célebre um concurso, amplamente divulgado na imprensa, entre as escolas do Rio de Janeiro, com o objetivo de mobilizar as crianças para elaborarem frases enaltecendo o Flamengo, premiando as melhores criações. A vencedora dá bem o tom do que pretende a direção do clube: “O Flamengo ensina a amar o Brasil sobre todas as coisas”. O concurso alcança tamanha repercussão que uma das frases será eternizada anos mais tarde em seu hino extra-oficial: “Uma vez Flamengo, Flamengo até morrer.”

O FLAMENGO NO CAMPO
“Flamengo para o preto e para o pobre”. Uma das preocupações do presidente é montar um plantel mais identificado com seus torcedores. Há muito o futebol deixa de ser um esporte de elite e assume um caráter completamente popular. A despeito de suas equipes de jogadores universitários, de classe média, o rubro-negro sempre angariou adeptos por sua postura aguerrida em campo. No entanto, é o momento de criar um vínculo mais consistente de identificação. Não basta ao torcedor simpatizar com o atleta que molha a camisa. O torcedor precisa se enxergar dentro das quatro linhas.
A opção pelo profissionalismo, embora tardia, é abraçada enfaticamente pelo presidente que entende que o esporte remunerado assumirá um viés ainda mais popular, visto que atrairá a gente simples para ganhar a vida chutando bola. O Flamengo precisa se preparar e, mais do que isso, precisa conduzir esse processo.
O clube não está propriamente nadando em dinheiro. Mas surgem inacreditáveis negócios de oportunidade. Primeiro, chega o center-half (volante). A Maravilha. Jogador de refinada elegância, destaque em Copa do Mundo, em aparente declínio físico após passagem apagada no Uruguai, mas ainda ostentando enorme prestígio junto ao público.
Depois, o Divino. Zagueiro de técnica incontestável, um dos melhores do mundo em sua posição. Campeão no Brasil, no Uruguai e na Argentina. Está no Boca Juniors mas não pode atuar, por conta de uma suspensão (brigou com um árbitro). O Flamengo consegue contratá-lo por empréstimo. O Divino se encantará, e permanecerá no clube. Não vai voltar mais pra Argentina.
Por fim, a fagulha. O Diamante. Jogador mortífero, letal, venal, goleador. Simplesmente o melhor do país. No entanto, irascível, encrenqueiro e temperamental, costuma ter vida curta nos clubes por onde passa. Andou arrumando confusão no Botafogo, que facilita sua saída. O Flamengo vê a oportunidade e traz. Fará história.
A Maravilha, o Divino e o Diamante. Todos craques. Todos negros. Todos ídolos.

O FLAMENGO DE VANGUARDA
Além da formação de uma equipe por quem sua gente tenha vontade de torcer, o presidente enxerga no Flamengo o potencial de internacionalização. Um clube que pode ser um dos maiores do mundo. Quer ver um futebol praticado como nos grandes centros. E traz o Gringo. A ideia é promover uma revolução na forma de pensar e praticar o jogo no País, criando uma consciência e uma aplicação tática, mudando a mentalidade do brasileiro, que joga futebol quase como uma pelada. Naturalmente isso irá gerar uma equipe mais competitiva. E vencedora.
A modernização chega ao nível de detalhe dos uniformes de jogo. O Gringo propõe e o presidente abraça. As camisas do Flamengo são escuras, o que dificulta a identificação dos jogadores nos jogos noturnos, em campos precariamente iluminados. A ideia é fazer o time atuar de camisas brancas à noite. E assim o Flamengo se torna uma das primeiras equipes cariocas a dispor de dois uniformes oficiais, com escudo e desenho específico (a ideia é tão bem recebida que o Fluminense logo a adota).
A vanguarda também se dá na relação com a imprensa. O presidente vê na mídia um papel fundamental para a qualificação da marca. Aproxima-se dos principais jornais, especialmente o Jornal dos Sports (dirigido por seu cunhado), que se tornam portais de amplificação das iniciativas e dos êxitos do clube. O Flamengo grande é alardeado com estardalhaço e faz seu povo sorrir.

O FLAMENGO E SUA CASA
Ao ser forçado a devolver o terreno da Rua Paissandu, o Flamengo precisou buscar alternativas mais baratas para erigir seu campo. Chegou-se a cogitar a Praia Vermelha, na Urca, mas as conversas com a Prefeitura e o Governo Federal fizeram convergir a decisão para a cessão de um terreno na Gávea, área ainda erma e algo distante do centro da cidade. O presidente, ao assumir, já dispunha do terreno na Gávea, cedida alguns anos antes. O clube ainda hesitava em iniciar obras na polêmica região, mas o presidente resolve arregaçar as mangas e dá início, sob ampla publicidade, às obras que irão erguer o Estádio da Gávea. O projeto prevê a construção de um estádio fechado, totalmente em concreto, mas o clube somente dispõe de recursos para erigir, em um primeiro momento, um lance de arquibancadas. E assim se faz.

OS RESULTADOS E AS CONTROVÉRSIAS

O programa de emissão de novos títulos se revela um estrondoso sucesso. O clube salta de 927 para 9.648 associados em um espaço de cinco anos. A arrecadação gerada pela iniciativa é revertida para a construção da Gávea. Mais do que isso, cria uma torrente de torcedores ainda mais arraigada ao clube, carteirinha de sócio exibida com orgulho a curiosos.

As arrecadações nos jogos do Flamengo aumentam dramaticamente. Todos querem ver seus ídolos, todos fazem fila para assistir ao Divino, ao Diamante. Os craques flamengos assumem ares de estrela, viram garotos-propaganda, anunciando pentes, chocolates, desfilam em carros luxuosos, dão autógrafos. O Flamengo excursiona pelo Brasil, mobilizando verdadeiras multidões que querem ver, tocar, estar perto de seus “semideuses”. O Flamengo, definitivamente, reergue-se e volta a assumir-se protagonista. Seu prestígio cresce exponencialmente. Ninguém persiste indiferente ao Flamengo.

Mas há os problemas.

A polêmica em torno da construção da Gávea jamais cessa. Para muitos, o rubro-negro está “enterrando dinheiro” em um “areal” e se tornando um “clubeco de subúrbio”, distante de suas raízes e de sua história. O presidente está “traindo os ideais que fizeram nascer o Flamengo”.

Dentro de campo as coisas também não caminham tão bem. O Flamengo volta a se fazer respeitar nos gramados, passa a ocupar as principais posições da tabela, luta por cada taça ponto a ponto, jogo a jogo. Mas o título, a ansiada glória, não vem. Parece algo intangível, inalcançável, que escorre pelos dedos.

O trabalho do Gringo é muito bom. O Flamengo passa a jogar um futebol bonito, moderno, compacto, vistoso. Mas os jogadores não compram a briga. Não lhes apetece correr sem a bola, “olhar para o outro”, pensar jogo. Os treinos soam demasiado estafantes, repetitivos, com ênfase em preparação física, algo novo e desagradável.

E o desgaste gerado pelos títulos que não chegam começa a se tornar incômodo. Antes incensado, o Gringo começa a enfrentar focos crescentes de resistência. A gota d'água é o deslocamento do Maravilha para a posição de zagueiro. Vendo que o atleta não reúne mais a mobilidade necessária para atuar no meio, recua o jogador para a zaga. O Maravilha não gosta. Recusa-se. Protagoniza rumoroso caso de indisciplina. É afastado pelo treinador. A torcida, a imprensa e mesmo parte da diretoria, no entanto, posicionam-se a favor do jogador. Que, mesmo assim, não atuará mais pelo Flamengo.

O maior foco das contestações é a Boca Maldita, o grupo de conselheiros e associados que se reúne para comentar e cornetar o cotidiano do clube. A Boca defende a demissão do Gringo e o retorno do Alicate, ex-jogador, agora técnico, que “entende a língua dos players”, que sabe colocar boleiro na linha. O Alicate, aliás, é um dos membros mais renitentes e estridentes da Boca. Talvez por ser desafeto do presidente.

O Flamengo vai para onze anos sem títulos. É o maior jejum de sua história. O clube caminha para a próxima temporada sob uma pressão talvez inédita no mandato do presidente. Apesar de desfrutar de grande popularidade, o dirigente parece cansado, fustigado pelas críticas que parecem jamais cessar. Não aceita mexer em uma linha daquilo que pensou, que concebeu, para o time de futebol. Trocar o Gringo não lhe passa sequer pela cabeça. No entanto, os sinais de rebeldia do plantel começam a se tornar eloquentes. Os jogadores não disfarçam a solidariedade ao Maravilha. No final da temporada, alguns tropeços e mais um Carioca perdido por pouco. Clama-se por mudanças.


O EPÍLOGO

Dezembro, as festas de final de ano se aproximam. O presidente entra em seu Gabinete, conversa com um ou outro dirigente. Entrega uma carta. Nela, a renúncia. Está cansado, estafado. Precisa repousar, recobrar a saúde. Foram cinco anos de dedicação total, exclusiva, nem sempre reconhecida. Que se dê lugar a outro. O presidente recebeu um Flamengo claudicante, entrega-o com um faturamento VINTE vezes maior, dez vezes mais sócios, um estádio quase pronto, um time que briga por qualquer título, ídolos e, principalmente, uma instituição que sabe conversar e interagir com seu torcedor. Um clube cujos heróis já são ouvidos e acompanhados por todo um país. Um Flamengo que, definitivamente, já não pertence a uma cidade.

A renúncia do presidente atrai para si uma aura de reconhecimento e gratidão. Uma fantástica gama de homenagens e manifestações de simpatia se alastra por todo o mês de janeiro. O presidente já é uma das maiores personagens da história do clube.

O Estádio da Gávea será inaugurado com pompa e circunstância no final do ano seguinte. Aos poucos, a Gávea irá se tornar o centro de convergência dos assuntos afetos ao Flamengo, até a transferência completa das operações do clube. O Flamengo utilizará o campo, tal como construído, até os anos 1960. Depois o reformará algumas vezes, sem jamais lograr aumentar sua capacidade, de forma definitiva.

O futebol ainda viverá turbulências, decorrentes da manutenção do Gringo no comando da equipe. No entanto, o treinador não resistirá a uma derradeira onda de boicote dos jogadores, que ocasionará duas derrotas nos dois primeiros jogos do Flamengo em seu novo estádio, tornando sua situação insustentável. Sairá. O time se transformará. E, após mais algum tempo, enfim voltará a ser campeão. Nos seis anos seguintes, ganhará quatro campeonatos.

Com o Alicate de treinador.



Irônico e triste será o desfecho da carreira do Maravilha. A limitação física percebida pelo Gringo, que o fez escalá-lo na zaga, na verdade já é a manifestação inicial da tuberculose que abreviará a carreira do jogador. Fora do Flamengo, tentará retomar a vida profissional, mas a saúde o impedirá. O Maravilha falecerá precocemente, poucos anos após a briga com o Gringo.