domingo, 6 de março de 2016

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos,

A cada partida do Flamengo, independente da competição (ou mesmo em amistosos), costumo perceber um alto índice de reclamações acerca de uma suposta parcialidade nas transmissões de tevê aberta e fechada, por parte de narradores, comentaristas e mesmo repórteres.

Com efeito, é impossível deixar de atentar para o fato, diante dos trabalhos de profissionais como Luiz Carlos Jr, Roby Porto ou Paulo César Vasconcellos, por exemplo, que, de forma deliberada ou não, costumam, digamos, deslustrar com algum excesso a atuação flamenga nos prélios que estão cobrindo, ou quando irrompem amostras do ancestral bairrismo de outros centros (notadamente São Paulo e Rio Grande do Sul).

Donde, surge a indagação, primitiva, basilar: “sempre foi assim?”

Teria o fenômeno da segmentação, decorrente do advento dos canais de transmissão fechada e o posterior surgimento do “pay-per-view”, trazido em seu bojo a praga do clubismo, redundando na adoção de uma conduta forçosamente parcial da maior parte da crônica? Ou as queixas apenas refletiriam o mau humor do torcedor que, invariavelmente, seja de qual time for adepto, gosta de encarnar a personagem que luta “contra tudo e todos”? Ou as mídias sociais apenas estariam reverberando com mais ênfase críticas que, no fundo, sempre existiram?

Tomando emprestado uma expressão momentaneamente vulgarizada, não sei se seria capaz de opinar, não com a profundidade que o tema merece. No entanto, o que posso, e irei fazer, é traçar um painel com alguns dos principais cronistas que compunham o ambiente midiático dos anos 80/90. Evidentemente, a lista não é exaustiva. E cada um, diante dos perfis aqui expostos, pode tentar tirar suas próprias conclusões. Afinal, essa é a graça da coisa. A diversidade.

Aos nomes.

OS “ANTAGONISTAS”

SÉRGIO CABRAL
O pai do atual Governador do RJ costumava comentar as transmissões de carnaval da Globo. No entanto, com o início das operações do canal fechado SporTV, foi um dos primeiros comentaristas da emissora, sendo responsável pela cobertura dos jogos no Rio de Janeiro, temporadas de 1993 e 1994. Cabral, vascaíno histórico, coalhava de ironias os jogos flamengos, sempre buscando “eleger” um jogador mais limitado e em cima dele utilizar à farta termos como “perna-de-pau”, “medíocre”, o que inconscientemente era transferido para todo o time. Como sói ao tipo de perfil, as derrotas rubro-negras eram atribuídas à incontestável superioridade adversária, enquanto os sucessos se deviam a fatores externos. Um caso clássico é a histórica goleada de 5-2 aplicada pelo Flamengo sobre o Corinthians em 1994 (jogo dos três gols do jovem Magno), que se deveu, segundo o comentarista, basicamente à expulsão de Viola, ocorrida no final da primeira etapa. Felizmente, sua trajetória no meio foi breve.

SÉRGIO NORONHA
Egresso da Rádio Globo, onde foi o comentarista titular no início dos anos 80, conseguiu manter certa neutralidade na TV, tendo inclusive sido reputado, de forma errônea, por muita gente como rubro-negro. Mas foi na rádio que sua veia vascaína saltou mais forte. Fazia a linha “crítica”, na qual se escorava para atacar, muitas vezes acima do tom, as peripécias de Zico & Cia, nível de exigência que era mitigado quando estavam em campo os colegas de Roberto Dinamite. Na televisão, denunciou-se ao reclamar exageradamente da defesa do Vasco na Final do Estadual de 2000, após o gol de empate marcado por Reinaldo. “não pode deixar o jogador livre assim, isso é decisão!”.

PAULO STEIN
A Rede Manchete cobriu intensamente o futebol carioca na segunda metade da década de 1980, assegurando os direitos exclusivos de transmissão do Estadual e chegando a modificar o ancestral horário de 17 h dos clássicos, levando-os (numa iniciativa bastante criticada) para as 18:30 dos domingos. Sua equipe fixa de transmissões era composta por dois comentaristas botafoguenses (dentre os quais o, pasmem, mais lúcido de todos, o irrequieto João Saldanha) e por dois narradores tricolores. Um desses locutores, o risonho Paulo Stein, narrava as partidas de forma extravagante, recheada de “cacos” e interjeições, o que de certa forma ajudava a quebrar a tensão das partidas. No entanto, Stein não era capaz de disfarçar a nítida preferência pelos adversários do Flamengo, chegando a soltar alguns “vai, fulano”, “que pena, beltrano”. Seu ápice ocorreu no Fla-Flu da Taça Guanabara de 1989. Flamengo vencia por 3-0 e não dava o menor sinal de diminuir o ritmo. Em dado momento, aplicou um olé de quase dois minutos em cima do adversário apático e desnorteado. Stein, em desespero, não resistiu e largou “MAS O QUE QUE É ISSO? QUE COISA! E NINGUÉM PARA ISSO!”. E não parou mesmo. O jogo terminou 4-0.

MÁRCIO GUEDES
Era um dos comentaristas da acima citada equipe da Rede Manchete. Trabalhou ao lado de Galvão Bueno na Rede Bandeirantes nos anos 70 e na Globo, entre 1981 e 1983. Mas foi na Manchete que se tornou mais espontâneo e áspero. Botafoguense renitente e ferrenho, não economizava “poréns” e “entretantos” às atuações do Flamengo. Somente concedia algum tipo de elogio ao rubro-negro quando a vitória atingia o status de irreversivel. Invariavelmente, em sua visão, o Flamengo era inferior ao adversário, seja em tese, seja dentro do campo. Gostava de alardear que alguns jogadores flamengos eram superestimados. Um dia, antes de um clássico, deu a um Fluminense já eliminado e no meio da tabela o favoritismo contra um Flamengo líder e invicto (“é franco-atirador”, vai jogar mais à vontade, tem tudo para surpreender). Uma passagem icônica vem da Final do Brasileiro de 1980, quando cobriu a transmissão pela Bandeirantes, junto com o narrador paulista Fernando Solera. Guedes conduziu seus comentários no sentido de transmitir a luta do “Galo Vingador”, valente em um ambiente hostil, sempre “entendendo” as reações violentas de seus jogadores, que apenas “reagiam às pancadas” dos flamengos. Quando o machucado Reinaldo empatou o jogo, quase foi ao êxtase. Mas Nunes marcou o terceiro gol, e o repórter de campo, provavelmente flamengo, após entrar descrevendo o gol, quebrou o protocolo e, ao invés de devolver a palavra ao narrador, preferiu berrar, “É O TERCEIRO GOL! É O GOL DO TÍTULO! GOL DO TÍTULO, MÁRCIO GUEDES!!!”. Nos tempos de hoje, dir-se-ia “chupa...”

TELMO ZANINI
Está aqui por causa de um único jogo. A decisão da Taça Guanabara de 1995, entre Flamengo e Botafogo, transmitida pelo SporTV. Partida recheada de bons jogadores, como Gotardo, Túlio, o ainda jovem Beto (que atuava pelo Botafogo), Marquinhos, Nélio, Sávio e, naturalmente, Romário, o melhor jogador do mundo, que iria atuar mesmo com um braço preso a uma tipoia. Zanini, que comentou a partida, não demorou a mostrar “os dentes”, quando, antes ainda da bola rolar, elegeu o Botafogo o “favorito incontestável, porque tem mais time e jogadores melhores”, além de insinuar que Romário já iniciava um irreversível processo de “decadência”. No entanto, os fatos não demoraram a contradizê-lo, quando o Flamengo, em exibição soberba, abriu 2-0 e perdeu a oportunidade de desenvolver uma goleada histórica no primeiro tempo. Romário, autor dos dois gols, foi elogiado laconicamente no intervalo por Zanini, que preferiu pontuar as chances desperdiçadas, “vão fazer falta”. No início do segundo tempo, Romário tenta um passe mais plástico, de letra. Zanini vê aquilo como “desprezo”, embora o jogo siga normalmente, sem qualquer reação do adversário. O Botafogo acerta uma substituição, consegue reagir e, após um pênalti esquisito, empata. Zanini mal contém a vibração. Subitamente se torna loquaz, não larga o microfone. “O Flamengo caminha para perder o jogo mais fácil do ano, e o grande culpado será Romário”, “jornada heroica do Botafogo. Sinto a virada iminente”, “Romário, com que cara você vai voltar pra casa?”. Mas Márcio Teodoro erra, Romário fatura o terceiro e definitivo gol. “Que bobeada lamentável desse zagueiro”, “É muita sorte para um jogador só”. O Flamengo é o campeão, e Zanini se torna figura raríssima nas transmissões do clube.


OS “NEUTROS” E OS “SIMPÁTICOS À CAUSA”

JANUÁRIO DE OLIVEIRA
Tornou-se conhecido nacionalmente quando passou a narrar jogos pela Rede Bandeirantes na primeira metade dos anos 1990. Na Band, usou e abusou de jargões e bordões que o tornaram um dos mais carismáticos locutores em atividade na época (“cruel, muito cruel”, “siniiiistro”, “super-ézio”, entre outros), mas mostrou seu melhor mesmo nas partidas que cobriu pela TVE (cujos VTs completos eram passados no final de semana). É bem verdade que Januário (gaúcho, mas assumido simpatizante do Fluminense) não disfarçava certo entusiasmo nas derrotas do Flamengo, mas a qualidade de suas transmissões era tão retumbante que esse aspecto era relevado. Na TV estatal, Januário desfrutava de maior liberdade criativa, e não raro enriquecia os jogos com “crônicas”, elegendo determinadas personagens, como o maqueiro, o gandula, o delegado do jogo, algum geraldino, vendedor de bebidas, enfim, nele concentrando suas atenções (olha lá, o geraldino tá dormindo... é, camarada, a pelada tá difícil, hein?), o que transformava qualquer joguinho periférico em um espetáculo interessantíssimo. São dessa época (anos 80) as expressões “tá lá um corpo estendido no chão”, “primeiro carreto da noite”, entre outras.

SÍLVIO LUIZ
Foi “a voz” do SBT/Record nos anos 80, imprimindo um estilo inconfundível em suas transmissões, onde o humor era um elemento de coesão entre as passagens dos jogos que narrava. O torcedor do Flamengo guarda com carinho as suas narrações dos jogos flamengos da Primeira Fase da Libertadores de 1981 (a rede de Silvio Santos transmitiu os dois jogos contra o Atlético-MG e as partidas contra os paraguaios no Maracanã. Somente quando o Flamengo foi jogar em Assunção a Globo conseguiu assumir os direitos do evento). Sílvio sabia quando ser neutro e quando torcer. Era irreverente, histriônico, mas nunca afetado. Depois, transferiu-se para a Bandeirantes, passando a narrar com frequência os jogos do Flamengo. Apesar de corintiano, sempre deixou transparecer certa admiração pela torcida rubro-negra, transpondo esse respeito para as suas narrações. Narrou com notável correção vários jogos do vitorioso período 1991/92, especialmente o jogo que deu ao Flamengo o Pentacampeonato Brasileiro.

LUCIANO DO VALLE
Chegou à Globo em meados dos anos 70, com a tarefa de protagonizar a cobertura de todas as transmissões esportivas da emissora. Cativava pela técnica precisa, cortante, com moderada e cuidadosa colocação de adjetivos, transferindo aos jogadores e à torcida o protagonismo de cada evento. Limitava-se a descrever as partidas, crescendo suavemente a voz à medida que os lances ganhavam relevância. Não havia intervenções desnecessárias ou repetição “ad nauseam” de estatísticas inúteis. Luciano narrava, e pronto. Nisso residia sua notável elegância. Um dos momentos mais emocionantes de sua passagem pela Globo remete-se à Final do Brasileiro de 1982, quando Zico empatou, na bacia das almas, o primeiro jogo contra o Grêmio, no Maracanã. “Ele é um jogador que nasceu com o gol! Ele é craque, é diferenciado!”. Mais tarde, após curtas passagens pelo SBT/Record, assumiu um ambicioso projeto na Bandeirantes. No canal paulista, reinventou sua forma de narrar, que se tornou mais solta, estridente e (excessivamente) informal.

JOSÉ CARLOS ARAÚJO
Trocou a Rádio Nacional pela Rádio Globo no final de 1984, assumindo o comando das transmissões do futebol. O “Garotinho”, como era conhecido, imprimiu uma narrativa enérgica, feérica e com um traço de irreverência, atraindo um público mais jovem. Jamais deixou sua preferência pelo Fluminense transbordar para suas transmissões, cobrindo as vitórias e títulos dos quatro cariocas com o mesmo entusiasmo profissional. Uma frase que costumava repetir nos jogos do Flamengo, particularmente simpática, falava em “o Mengão precisa atacar, essa galera não pode sair sem o gol, essa galera quer gritar o gol!”. A sua narração do gol de Leandro no Fla-Flu de 1985 jorrou como uma cachoeira, é um momento inesquecível, como aliás foi o jogo.

GALVÃO BUENO
O início de sua trajetória na Globo decorre da retomada, por parte da Vênus Platinada, dos direitos de transmissão da Fórmula 1 (a Globo havia desistido da competição, pois não havia mais brasileiros na ponta, mas a ascensão súbita do jovem Nelson Piquet a fez mudar de ideia). Galvão, que havia sido elogiado ao cobrir, pela Bandeirantes, a temporada das pistas em 1980, chegou à Globo já no segundo semestre de 1981. No entanto, estrearia em corridas no ano seguinte, deixando a cargo de Luciano do Valle o restante do campeonato corrente (que seria vencido por Piquet). Enquanto isso, Galvão passou a transmitir os jogos da Libertadores, em que o Flamengo avançava, e do Estadual (estreou na vitória do Flamengo sobre o Wilstermann por 2-1, em Cochabamba). Em grande forma, logo deixou sua marca, exibindo uma técnica notável de colocação de voz e uma capacidade de tornar qualquer partida em um espetáculo recheado de drama e emoção. Assistir a um final de jogo qualquer, com o placar ainda indefinido, na voz de Galvão Bueno se revestia de uma experiência ímpar, inesquecível (quem acompanhou os minutos finais da Decisão do Estadual de 1981, o “jogo do ladrilheiro”, sabe do que se está falando aqui). Além de muito bom narrador, Galvão nunca disfarçou sua torcida pelo Flamengo, que sempre ficou clara nas suas transmissões. Foi “a voz da Globo” na Era Zico (o que se consolidou após 1982, quando Luciano deixou a emissora), mantendo-se como o principal e o melhor narrador em atividade até meados dos anos 90, quando enveredou por uma linha mais verborrágica e invasiva, o que o tornou mais popularesco e polêmico. Um momento muito feliz de sua trajetória é a narração de Guarani 2-3 Flamengo, pela Semifinal do Brasileiro de 1982, quando cunhou a frase “Quem tem Zico, tem tudo”, resumindo em pouquíssimos termos o que foram aqueles anos inesquecíveis. Pertence a Galvão o privilégio de ter narrado ao vivo a Final do Mundial de 1981, contra o Liverpool.

JORGE CURY

Felizes aqueles que viram Zico jogar. É verdade. Porém, mais felizes são aqueles que viram Zico jogar ouvindo Jorge Cury na Rádio Globo. A química entre Cury e os jogos do Flamengo talvez só encontre paralelo com as transmissões de Ary Barroso em tempos mais remotos. Não que Cury torcesse abertamente, ou soprasse gaitinha nos gols. Nada disso. A beleza, o lirismo, a poesia, das transmissões do veterano narrador residia exatamente na forma como represava suas emoções em uma narração crua, contida, descritiva, tudo em uma voz rochosa, que se contrapunha ao delírio quase orgástico do momento do gol. Jorge Cury não narrava gols do Flamengo. Cury os gritava, berrava, urrava, tirando de dentro todo o alívio, o peso de sua expectativa por um êxito flamengo. No momento do gol, Jorge Cury se transmudava em menino, em criança, no garoto sem camisa, o calção sujo de barro, o pé preto de correr atrás da bola, o olho brilhando o sonho de ser Zico. Ouvindo Jorge Cury, cada flamengo se espelhava, se identificava, se resumia embrasado, febril, ardente. Vencedor. Mais que um narrador, era um amigo. Um chapa. Alguém que transformava o radinho em alguém da família. Acima de tudo, um flamengo. Um de nós.

Boa semana a todos,