domingo, 13 de dezembro de 2015

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos.

A recente viagem ao Rio de Janeiro, além de votar e conversar muito sobre Flamengo, serviu-me para levar a cabo outro projeto pessoal, o de conhecer alguns pontos-chave da história do clube. E são alguns detalhes desse "percurso histórico" que deixo aqui agora, no texto da semana. Para conferir certo requinte à coisa, chamei o consagrado Ruy Castro, cujos excertos abrem cada etapa da viagem.

Boa diversão.

O PERCURSO - Praia do Flamengo - Praça Luís de Camões - Palácio do Catete (entrando pelo Jardim e saindo pela fachada principal) - Rua do Catete - Rua Marquês de Abrantes - Rua Paissandu.

O LAMAS

“Os rapazes da praia do Flamengo não gostavam nem um pouco daquilo. E quatro deles resolveram tomar providências: José (Zezé) Agostino Cunha, Mário Spíndola, Augusto da Silveira Lopes e Nestor de Barros. (…) Numa noite de setembro de 1895, sentados a uma mesa do Café Lamas, no Largo do Machado, eles fizeram a pergunta histórica: “Por que nós não criamos um grupo de regatas do Flamengo?”

“Donde, a cada vitória do Flamengo sobre o Vasco no remo, o Lamas regurgitava e seus torcedores saíam pela rua do Catete pendurando tamancos e postas de bacalhau na porta dos estabelecimentos ligados à Coroa portuguesa.”


Inaugurado em 1874, o Lamas é onde nasceu de fato o Flamengo. Nasceu no sentido que foi em suas mesas que um grupo de jovens sonhadores, Zezé, Mário, Augusto e Nestor, indignados com o assédio dos rapazes do vizinho bairro de Botafogo às suspirantes moçoilas locais, resolveu criar um grupo de regatas para fazer frente a essa incômoda situação. Após a inauguração, o Café Restaurante seguiu servindo como ponto de encontro para as comemorações, lamúrias, discussões e tudo o mais que se relacionasse ao cotidiano do CR Flamengo.

O Lamas mudou de endereço. Não está mais no Largo do Machado, de onde foi remanejado anos atrás em função das obras do metrô. Mas, mesmo em sua localização atual, na Rua Marquês de Abrantes, na beira da Praça José de Alencar (bem perto do ponto original), é possível, entre um chope e outro, respirar o fundo e denso ar carreado da mais intensa essência flamenga, seja em seu interior vetusto, seja em seu despojado (quase improvisado) ambiente externo. O Botafogo não causa mais indignação, talvez somente suscite sorrisos desdenhosos. Mas, entre política interna, futebol, história, perspectivas, enfim, tudo o que envolve contexto flamengo sendo posto sobre a mesa, certamente Zezé se sentiria à vontade.


A PRIMEIRA SEDE – O 22

“Um dos rapazes, Nestor, morava numa casa de cômodos no número 22 da Praia do Flamengo. O térreo desse endereço passou a ser frequentado pela turma – para todos os efeitos, era a “sede” do grupo – e servia também como garagem para o barco.”

“E, então, começaram as adesões, inclusive de aspirantes da Marinha. O 22 da Praia do Flamengo começou a acolher tanta gente que, no dia 17 de novembro, outro domingo, realizou-se ali a assembleia de fundação do grupo. Não um clube, mas, modestamente, um Grupo: o Grupo de Regatas do Flamengo, dedicado aos esportes náuticos.”

“A cada vitória no remo, a garagem era palco de comemorações ao som de cavaquinhos, violões e reco-recos, municiadas por barris de chope (…) O carnaval saía as ruas e ia da Praia do Flamengo ao Largo do Machado com a multidão atrás.”

O “casarão do Nestor” abrigava a República Paz e Amor, onde estudantes, remadores e jovens ligados ao Flamengo aprontavam o diabo nas redondezas (é célebre a história em que os jovens costumavam subir em árvores para colher frutas, inteiramente nus, para o desespero do Convento do Sagrado Coração de Jesus, situado ao lado). Com o tempo e as vitórias, o Flamengo foi se expandindo, o casarão foi comprado, reformado, ampliado e se tornou a primeira sede de fato do, agora, Clube de Regatas, até ser desativado nas décadas seguintes. No final dos anos 1970, inteiramente sem uso e com o clube atravessando severa crise financeira, o terreno foi vendido para a instalação de um empreendimento comercial.

O endereço também foi renumerado com o tempo, hoje é o 66. Lá, atualmente, estão espetados dois grandes prédios de 14 andares cada. Chama a atenção a fachada nas cores rubro-negras. Sem entrar no mérito das circunstâncias que envolveram a venda da sede, não deixa de ser lamentável constatar que uma das mais ricas passagens da história flamenga, sua gênese, sua essência, encontra-se diluida no meio de um punhado de arranha-céus. Não obstante, a passagem pelo 66 encerra uma experiência única e arrepiante para aqueles que tiveram a oportunidade de conhecer como o Flamengo veio ao mundo.


OS JARDINS DO PALÁCIO DO CATETE

“Ao mesmo tempo que o clube conquistava seus primeiros títulos no remo (…), sua seção, digamos, terrestre dedicava-se a esportes menos ortodoxos: carnaval, trotes e alegres molecagens.”

“Amor havia de sobra na república do Flamengo. Paz, nem tanto.”

Os fundos do Palácio do Catete davam para um imenso jardim, quase um bosque. E a área vastamente arborizada faceava-se com o 22, separada deste por um alto muro. Sem dinheiro e condições de promover lautos banquetes de celebrações, o jeito era improvisar. E, nos domingos ou nos dias que precediam os grandes eventos, lá iam os rapazes da Paz e Amor aboletar-se traiçoeiramente em pontos estratégicos da murada, de onde alvejavam faisões, perus e toda sorte de aves que infestavam os jardins do Palácio presidencial. Desconfiada, a administração começou a deslocar guardas, intensificar a vigilância, reduzir a quantidade de animais soltos. Mas não havia jeito. Os jovens flamengos sempre arrumavam um jeito de descolar o almoço do dia. E os comensais mais chegados já sabiam: quando era dia importante ou de comemorar vitória flamenga, o cardápio do almoço era faisão. Coisa de rico.

Hoje o Jardim do Catete ocupa área bem menor, mas ainda impressiona por sua amplitude. Árvores, pássaros e até um laguinho compõem um ambiente bucólico, silencioso e profundamente relaxante, onde idosos e famílias com seus bebês desfrutam a placidez do local. Não é difícil localizar o muro que separa a antiga sede do Flamengo do jardim do palácio. Provavelmente nem se trate exatamente do mesmo muro, mas não deixa de ser divertido imaginar a execução do plano de caça aos faisões e perus concebido do outro lado.


O PRIMEIRO CAMPO DE TREINOS – PRAIA DO RUSSEL

“Nas tardes de treino, os jogadores trocavam de roupa na garagem dos barcos, no 22, da praia. Com suas chuteiras barulhentas, caminhavam até o Russel. A garotada virava rubro-negra. Moleques, alvoroçados, acompanhavam o grupo, faziam perguntas a Píndaro de Carvalho, transformavam (…) o Galo num autêntico ídolo. Estabelecia-se uma intimidade, que não seria possível com os finos e distantes moços do Fluminense.”

A caminhada da antiga sede à praça onde ficava o campo do Russel é curta, não dura dez minutos. Nas franjas do Hotel Glória inicia-se a Praça Luís de Camões, que se estende até as proximidades da Igreja do Outeiro. O campo onde os jogadores treinavam, sozinhos ou contra outros clubes, para gáudio da garotada que lotava seus arredores, hoje não existe mais. A praça abriga um Memorial em homenagem a Getúlio Vargas, além de um grande busto em homenagem ao antigo estadista. Também não existe mais a Praia do Russel, engolida pelas obras do Aterro. No entanto, há conservada ainda uma atmosfera de movimento, certa balbúrdia e liberalidade, que certamente devia permear os descontraídos treinamentos do Flamengo.


O PRIMEIRO ESTÁDIO – RUA PAISSANDU

“...em 1916 (no mesmo ano em que inaugurou seu primeiro campo, num terreno arrendado à família Guinle na rua Paissandu, pertinho do Fluminense)...”

O futebol do Flamengo nasceu sem estádio próprio. No seu primeiro ano, desfrutou das instalações das Laranjeiras, gentilmente cedidas pelo Fluminense, clube com quem mantinha ótimas relações. 

Nos anos seguintes, de 1913 a 1916, passou a mandar seus jogos no novíssimo estádio da Rua General Severiano, pertencente ao Botafogo, que inclusive sediou os dois primeiros campeonatos do rubro-negro (à época ainda atuando com a camisa cobra-coral). Somente em 1916 o Flamengo passou a usufruir de um mando “próprio”, ao alugar o campo utilizado pelo extinto Paysandu Cricket Club para treinamentos e nele erguer arquibancadas para cerca de 15 mil pagantes. O estádio da Rua Paissandu seguiu sendo utilizado pelo Flamengo até ser requisitado pelos Guinle (donos do terreno), já nos anos 1930. Como o clube não reunia condições de adquirir o terreno, não houve outra alternativa senão devolvê-lo aos proprietários.

A Rua Paissandu chama a atenção por ser bastante estreita e pela presença das mitológicas palmeiras imperiais que ainda a ladeiam. Trata-se de uma rua residencial, com alguns condomínios de bom padrão, e um ou outro casarão aqui e ali remetendo aos séculos passados. A rua desemboca na Rua Pinheiro Machado (antiga Rua da Guanabara), e já na esquina é possível vislumbrar o Palácio Guanabara, atual sede do Governo do Estado do Rio de Janeiro, e os muros da sede do Fluminense FC, além das arquibancadas do Estádio das Laranjeiras.

No exato local onde se situava o estádio hoje se erigem vários prédios. O silêncio e a tranquilidade são eloquentes. Há uma lenda que narra ser ainda possível ouvir os gritos de jogadores e torcedores do extinto estádio. Talvez. No entanto, mais que isso, não é possível passar imune às entranhas da existência flamenga, expostas de maneira tão suntuosa nesse percurso histórico. Após cerca de 45-50 minutos de caminhada com parada para fotos, sai-se, como se fosse possível, inundado por uma paixão, uma sensação de abandono, uma vertigem, uma friagem que revigora, reconforta e arrepia.

Sai-se ainda mais Flamengo.