domingo, 8 de novembro de 2015

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos,

Hoje deixo a segunda parte da trilogia que, em alusão aos 120 anos de história do Flamengo, conta um pouco dos primórdios da história do clube. Aqui se falará da primeira vitória e da polêmica que acarretou. Boa leitura.

II – A PRIMEIRA VITÓRIA

1898, 05 de junho.

Um domingo majestoso, solar, que convida a todos os cariocas a saírem de suas casas e curtirem as belezas naturais da cidade, entregando-se aos recreios e divertimentos próprios de suas merecidas folgas.

Mas neste dia tudo converge à Enseada de Botafogo, onde está prestes a ter início a Grande Regata de 1898.

A União Fluminense de Regatas (esboço de Federação que congrega as principais agremiações praticantes do rowing) não mede esforços para fazer desta a mais perfeita competição de todas as épocas. Um suntuoso pavilhão é construído à beira-mar para a recepção dos convidados. Ao seu redor, lances e mais lances de arquibancadas poderão acomodar parte de uma multidão ávida pelo início das competições. Um destes lances é especialmente reservado para acomodar os associados dos clubes.

O mar cintila em um azul ofuscante. Nele, as mais diversas embarcações, entre barcas, rebocadores, lanchas e iates, engalanadas com adereços e ornamentos vários, como bandeirolas, corbeilles, faixas e outros fru-frus, compõem um luxuriante mosaico de cores e formas, carregando adeptos entusiasmados entoando gritos de ordem e “vivas” para suas cores preferidas.

O intenso alarido que já toma conta de todo o local e seus arredores se transforma em furor quando uma salva de tiros anuncia a passagem do Exmo. Sr. Presidente da República, Prudente de Moraes, que desfila pela Enseada a bordo de um iate, arrancando entusiásticas manifestações de apreço (com chapéus sendo atirados ao alto, palmas incessantes, entre outras demonstrações).

O início das regatas se aproxima.

Serão nove páreos, divididos entre canoas, baleeiras e escaleres.

O GR Flamengo está inscrito em cinco deles. Competirá no primeiro (canoas a 4 remos), com Tupy, no segundo (baleeiras a 6 remos), com Iaycy, no quinto (baleeiras a 4 remos), com Jandaya, e no nono (escaleres a 10 remos), com Aymoré.

Além do terceiro (baleeiras a 2 remos), com Irerê.

Dois anos e meio após sua fundação, o rubro-negro ainda persegue sua primeira vitória. Há muito deixou de ser mero azarão, para conquistar várias posições de honra, empilhando segundas e terceiras colocações. No entanto, a falta de triunfos se transforma em pilhéria, e o carioca, sempre gozador, agracia o clube com a pecha de “Clube do Bronze”, dado o excesso de medalhas do tipo. Os rapazes da República Paz e Amor, externamente, brincam com o fato, mas entre eles há a briga quase obsessiva pelo topo. E é hoje. Vai ser hoje. Tem que ser hoje.

Na bolsa de apostas informal que se instala na Enseada, apenas Tupy, no primeiro páreo, é razoavelmente cotada. Nos demais, os barcos do Flamengo são tidos como azarões, ou nem isso. A briga, apontam, se dará entre GR Gragoatá (clube mais estruturado no momento) e o CR Botafogo. Melhor assim, pensam os flamengos. O fator surpresa sempre pode desequilibrar.

Enquanto no horizonte brilham as ricamente decoradas bandeiras da União Fluminense, do Botafogo e do Flamengo (especialmente encomendadas para o evento), um estampido dá o sinal de que as disputas, enfim, irão começar.

As coisas não iniciam bem para o Flamengo. Nos dois primeiros páreos, Tupy e Iaycy sequer chegam perto das embarcações vencedoras, terminando a competição em posições intermediárias. Agora, vai começar o terceiro páreo. Alinham Dora e Vera (ambas do GR Gragoatá), Wega (CR Botafogo) e Mimosa (CR Icarahy), que enfrentarão a flamenga Irerê. Os favoritos são as duas baleeiras do Gragoatá, com certa cotação para Wega, do Botafogo.

O percurso é curto, de 800 metros. O tiro é dado, e logo na largada Irerê surpreende, saltando na ponta. Após alguns metros, Mimosa se recupera e consegue alcançá-la, dando início a uma sensacional luta pela primeira posição. Os outros barcos ficam para trás. Irerê e Mimosa agora travam uma verdadeira batalha náutica, literalmente batem remos, esbarram-se. Alternam a primeira posição a cada hiato de respiração. Na multidão, ninguém pisca. Alguns gritam, outros rezam. Todos suam. Agora os barcos estão na reta final, é a hora da atropelada. Os flamengos da Irerê colocam nos seus remos toda a força, toda a flama, todo o clamor de um grupo. Sentem-se parte de um todo, irradiam-se e arrepiam-se da força de um conjunto que está aprendendo a dar seus primeiros passos. E, inebriados, sentem a explosão de uma energia nova, inédita, incomparável, que lhes consumirá as entranhas e lhes exigirá nada menos que o esforço, a dedicação, a entrega plena. E a glória.

É cabeça a cabeça, pescoço a pescoço. Os barcos cruzam a faixa.

E vence Irerê! O Flamengo vence!

Os abraços, lágrimas, hurras dos populares compõem um dos grandes momentos da tarde. Não há quem se mantenha indiferente à exaltada comemoração daquela gente da Paz e Amor, que atira vestes e objetos ao alto, espoca fogos, abre bebidas, transforma desconhecidos em amigos de infância, convida estranhos a dividir, mais tarde, barris de cerveja no 22.

A Enseada vive um carnaval temporão. E ainda faltam seis páreos.

Nas demais etapas, o Flamengo, talvez ainda atordoado pela conquista, vê sua baleeira Jandaya abalroar um cone de sinalização e ter de abandonar o quinto páreo. Ao menos Aymoré colhe o segundo posto no nono páreo.

E assim, após duas horas e meia de emocionantes embates, encerra-se mais um dia de regatas. Certamente uma jornada histórica, que não será esquecida por muitos dos que a presenciaram. Como previsto, o GR Gragoatá conquista o maior número de premiações, tendo vencido três páreos, dentre os quais o principal (quinto), que lhe conferiu o troféu do “campeonato”.

Mas, além da festa dos vencedores, aquele domingo ainda reserva vários desdobramentos ao longo da semana. O dia está longe de terminar. Durará meses.

A bomba pipoca assim, seca, sem eufemismos ou meias-verdades. O CR Icarahy entende ter sido prejudicado no Terceiro Páreo e recorre à União Fluminense, pedindo a desclassificação de Irerê, com a consequente transferência da vitória ao seu barco Mimosa.

Na verdade, a organização do evento, em sua única falha, não conseguiu repor a ausência de alguns juízes que deveriam fiscalizar a disposição das raias e a respectiva passagem das embarcações. Ademais, o balizamento recebeu uma série de críticas, por ter sido incompleto e pouco visível, mesmo para determinados barcos. Isto posto, e diante de tão encarniçada batalha pela primeira colocação, o CR Icarahy julgou ter sido afetado por uma conduta irregular do adversário (o Flamengo), recorrendo assim ao tribunal da União Fluminense, uma decisão que suscitou críticas dos principais jornais da cidade, entendedores que as condições precárias de algumas raias prejudicaram os dois competidores.

E o que era surpresa se transforma em estupefação, quando a União Fluminense, em julgamento polêmico, resolve DEFERIR as alegações do CR Icarahy, penalizando Irerê e lhe tirando o primeiro posto. Assim, o resultado do Terceiro Páreo, em caráter oficial, é reformado: em 1º lugar Mimosa (CR Icarahy), em 2º lugar Irerê (GR Flamengo).

A decisão enche de consternação o mundo rower da capital federal. Torna-se quase um consenso que o julgamento revestiu-se de caráter político, uma vez que o CR Icarahy possui eminentes e influentes membros na diretoria e na comissão julgadora da União Fluminense. Os jornais praguejam, defendem que, na pior das hipóteses, o páreo deveria ter sido anulado por completo, pois as condições do local afetavam a todos os competidores. Mas o julgamento não é alterado.

Ao Flamengo só resta uma decisão, drástica e fulminante. Por unanimidade, seus associados decidem requerer a desfiliação da União Fluminense de Regatas, o que é levado a termo pela diretoria.

Abre-se uma crise sem precedentes no rowing carioca. Em agosto são disputadas novas regatas na Enseada de Botafogo, mas o evento é consideravelmente esvaziado pela ausência do Flamengo. A diretoria rubro-negra, revoltada, sequer cogita reverter sua decisão. Somente após longas, delicadas e tensas negociações, levadas à frente pela diretoria do GR Gragoatá (movida talvez pelas ótimas relações que mantém com o Flamengo, talvez pela latente rivalidade com o Icarahy, também de Niterói), o Flamengo, em setembro, retorna ao seio da União Fluminense de Regatas, com a prerrogativa de indicar membros para compor a respectiva diretoria. Não deixa de ser uma vitória política do clube.

E o cenário rower retorna à sua normalidade. E, como às vezes sói acontecer no mundo esportivo, a resposta demorará um pouco, mas ribombará envolta por uma ironia de uma crueldade fascinante, daquelas que poderiam preencher calhamaços de um roteiro de filme, daqueles de mocinho.

* * *

1899, 15 de Outubro.

A semana chuvosa encheu de apreensão os organizadores da Grande Regata organizada pelo CR Icarahy, na enseada de mesmo nome, em Niterói. Mas, no domingo, o sol abre sorridente, jocoso, em júbilo. E a airosa agremiação niteroiense pode se esmerar na organização de uma belíssima festa, buscando proporcionar a associados, convidados, competidores e ao público em geral um espetáculo primoroso na organização de suas regatas.

Após vários desfiles, bailes regados a farta bebida e embalados por uma banda de fuzileiros navais que atravessa o mar instalada sobre uma das barcas ricamente ornadas e especialmente preparadas para o evento, enfim tem início a competição.

O CR Icarahy é o grande favorito para a conquista do maior número de páreos. Preparou-se arduamente para organizar e vencer a disputa. Seu grande xodó é a baleeira a 6 remos Mafraina, tida como seu melhor barco, que competirá no quarto páreo. Uma multidão se acotovela na beira da praia, onde irá acompanhar e torcer pelos remadores que defendem as cores das associações nativas.

O GR Flamengo, por sua vez, inscreve embarcações para cinco dos oito páreos. Mesmo ainda não ostentando nenhuma vitória no currículo, dessa vez uma de suas embarcações, a canoa a 4 remos Tymbira, é tida como favorita. Estará no segundo páreo.

Começam as regatas. Vem o segundo páreo, 1000 m. Tymbira larga na frente, abre um, dois, três corpos de vantagem e some. As canoas Altiva, do Club Boqueirão do Passeio, e Vespertina, do novo Club de Regatas Vasco da Gama, travam animada disputa pelo segundo lugar, mas quando o barco do Club Boqueirão enfim derrota seu oponente e cruza a faixa final, os remadores do Flamengo já estão se abraçando e colhendo os aplausos da multidão. Chegaram muito, mas muito antes, quase com um oceano de vantagem. O GR Flamengo enfim vence, agora de forma incontestável, impossível de ser anulada sob qualquer argumento. Os protagonistas do feito são os remadores Pinto Lima Júnior (patrão), Francisco Laport, Carlos S Costa, A Tourinho e Napoleão de Oliveira (este último, um dos sócios-fundadores do Grupo).

Mas o melhor ainda está por vir.

Quarto páreo. 1000 metros. A multidão se assanha na expectativa da vitória de Mafraina, o representante local. É dado o tiro de largada. Como esperado, o barco do CR Icarahy salta na frente e parece abrir boa vantagem. Mas logo é alcançado por Ypiranga, do GR Flamengo. Após um ano da polêmica regata de Botafogo, novamente Flamengo e Icarahy estão disputando palmo a palmo a liderança de um páreo. Os remadores flamengos, ainda mordidos com o incidente de 1898, dão tudo de si. Prepararam-se como cavalos para esse momento. Irão, de qualquer maneira, arrancar esse triunfo. Responderão ao agravo dos tribunais dentro da água, no teatro da competição, que é onde deveriam ser sanadas as lides. E os rapazes do Flamengo reduzem dramaticamente a diferença. Aturdidos, os remadores da Mafraina perdem a concentração. É o bastante para que Ypiranga os atropele na reta final, sob aplausos de uma parte pequena do público e nervosa frustração da grande massa. E ainda há um adendo: Mafraina corre sério risco de perder mesmo a segunda posição para um barco que arranca alucinadamente, a baleeira Vindicta, do CR Vasco da Gama. Mas Vindicta esbarra em um escaler que estava ancorado na beira da raia da ponta e é alijada da briga. Os remadores do Icarahy reagem, tentam um esforço final, mas ninguém, nada, nenhuma força da natureza, derrotará os moços do Flamengo. Os barcos cruzam a chegada.

Vence Ypiranga. Vence o Flamengo!

Um remador do Icarahy demonstra tamanho desnorteio que se atrapalha com a pá do remo, que sai das mãos e lhe atinge o peito, sem gravidade, porém. Os dirigentes do Icarahy se entreolham. Além de verem seu barco principal ser derrotado justo para um antagonista recente, ainda estão às voltas com um sério incidente que compromete a organização do evento (a colisão do barco do Vasco com o escaler, que lhe tira a chance do segundo lugar). Cogita-se pensar em anular o páreo, mas a ideia é logo descartada, por se revestir de suprema desmoralização dos organizadores. Ao CR Icarahy resta engolir o orgulho e brindar aos vencedores, os remadores Pinto Lima Júnior (patrão), Francisco Laport, Carlos S Costa, Alberto Loth, Ubaldino Amaral e os sócios-fundadores Napoleão de Oliveira e José Agostinho Pereira da Cunha.

A Regata termina sem maiores incidentes e com sua organização até elogiada. O Flamengo, o Icarahy e o Gragoatá, com duas vitórias cada, são os grandes vencedores do dia.

O Flamengo decide comemorar o grande triunfo, conquistado em pleno território icaraiense, oferecendo um baile nos festejos de seu aniversário, a 15 de novembro, que já se aproxima. Também se decide, em comemoração às primeiras vitórias, mandar construir uma baleeira a 6 remos, ainda mais moderna e sofisticada. Irá chamar-se Itapuca.

Ainda não se sabe, mas Itapuca será uma das protagonistas de um momento glorioso, que está por vir.


O dia do primeiro troféu.