domingo, 25 de outubro de 2015

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos,

O Flamengo está próximo de completar 120 anos de vida. Com isso, essa semana dou início a uma série de textos que remetem aos primórdios da nossa história. O primeiro deles irá detalhar a primeira temporada da vida flamenga no futebol. Com efeito, o que se tem em mente é que no longínquo 1912 o Flamengo jogou com uma camisa esquisita, meteu uma goleada estrondosa na estréia, perdeu o Fla-Flu e não ganhou o campeonato. Para saber um pouco mais sobre este campeonato, convido-os a ler as linhas que se seguem. Para temperar, foram acrescentados alguns termos da época (sem exageros). Então, boa leitura.

(nas próximas semanas, retroagiremos ainda mais na história do clube)

* * *

1912. Vai começar a temporada. Após o confuso campeonato anterior (com abandonos e cisões), a Liga Metropolitana de Sports Athleticos aumenta o número de participantes para oito, abrindo assim quatro vagas. Duas delas são ocupadas por Bangu e São Cristóvão (vencedores da Segunda Divisão), e para as demais são convidados o SC Mangueira (equipe de uma fábrica de chapéus, sem relações carnavalescas) e o novo CR Flamengo, team que abrigou os rebeldes do Fluminense, campeão do ano anterior. O Fluminense, por sinal, que nutre excelente relação com o Flamengo (há intercâmbio de atletas e até dirigentes), cede seu campo para a utilização do rubro-negro, além de interceder pela participação do club, convencendo a LMSA que a presença do Flamengo irá elevar sobremaneira o nível da competição, fazendo-a preponderar sobre a Liga ora comandada pelo arqui-rival Botafogo.

MANGUEIRA 2-16 FLAMENGO
03/05, Ground do América, Rua Campos Sales, Tijuca. Tarde chuvosa. 16 horas. É dada a saída pelo Flamengo. Bola com Galo, que passa a Gustavo, que vem buscar jogo na meia-esquerda. Gustavo domina e faz um belo lançamento à ponta-direita, onde Arnaldo está livre. O right-side forward avança e, antes que a bola passe a linha de fundo, consegue alcançá-la e cruzar para trás, rasteira. O baixinho e arisco Gustavo (1, 58 m), que acompanha o lance, vem na corrida e emenda de primeira, um balaço. 1’, 1-0. O Mangueira dá a saída. Gilberto faz o desarme e aciona Gustavo, que chuta. Após a bola espirrar lá e cá, Gustavo, ele de novo, aproveita a sobra e amplia. 2-0, com 2’. Esses são os dois primeiros minutos da história do futebol do Flamengo.
O restante da partida resume-se a um match-training, dada a diferença técnica dos teams. Ironicamente, o gol mais bonito é de Octavio, do Mangueira, em um shoot de longe. Até hoje a maior controvérsia do cotejo é seu real placar. Os jornais da época falam em 15, 16 e até 17 gols marcados (cinco deles de Gustavo, o destaque). 16-2 é o placar considerado oficial pelo Flamengo.

FLAMENGO 6-3 AMÉRICA
19/05, Laranjeiras. Primeira demonstração de força do Flamengo (que já havia vencido o rival em trainings). O primeiro tempo ainda apresenta certo equilíbrio, terminando 3-2 para o rubro-negro. Mas, no segundo half-time, o América não resiste à pressão do veloz ataque flamengo, que constrói a vitória com naturalidade. Borgerth, Arnaldo e Gustavo, duas vezes cada, dividem os gols.

FLAMENGO 1-2 PAYSANDU
09/06, Laranjeiras. O Paysandu, eleven formado apenas por ingleses, já começa a chamar a atenção por suas três categóricas vitórias iniciais. E o match não decepciona a numerosa assistência que aflui às arquibancadas do ground do Fluminense. Um prélio renhido, disputado com denodo e galhardia, um belíssimo embate entre a excepcional dupla de backs do Flamengo (talvez a melhor do país) e a devastadora linha de forwards do adversário. Mas a partida será definida nos detalhes. Disciplinado taticamente, o team alvianil percebe que a defesa flamenga marca em linha, e explorando essa falha chegará à vitória. O Paysandu abre o placar a dois minutos do intervalo. Com 4’ do segundo tempo, o Flamengo empata num chute forte de Amarante e se atira à frente, mas o Paysandu, em um de vários contragolpes, chega aos números finais, apesar da pressão fortíssima do rubro-negro (em um lance, Amarante chuta por cima do gol de dentro da pequena área, com o goleiro já batido). É a primeira derrota da história flamenga, num jogo celebrado pelos jornais como “um dos melhores do ano”.

BANGU 4-7 FLAMENGO
30/06, Rua Ferrer, Bangu. O Flamengo não conta com o fullback-right (precursor da lateral-direita) Curiol, e a solução adotada acaba por bagunçar toda a estrutura da equipe. Com efeito, o inside-right forward (equivalente ao camisa 8, meia-atacante) Amarante é recuado para a função do ausente, passando o fullback-right (zagueiro) Nery para o ataque (!), no lugar de Amarante, entrando Cintra na zaga. Não poderia mesmo dar certo, como não deu. Contra um dos times mais fracos do campeonato, o Flamengo protagoniza péssima jornada, atuando de forma vulnerável, agravada pela visível falta de motivação da equipe. O placar não é mais apertado em função da desastrosa atuação do goleiro banguense, que falha em quatro gols, um deles após um shoot de quase 40 metros!

FLUMINENSE 3-2 FLAMENGO
07/07, Laranjeiras. O Fluminense, que perdeu seus principais jogadores justamente para o rubro-negro, faz campanha regular, ocupando posições intermediárias. Assim, o Flamengo é tido como favorito pleno. Mas o adversário encara o match como um assunto de honra, e exerce, desde o primeiro minuto, uma resistência que desnorteia e enerva o eleven rubro-negro. O Flamengo, novamente desfalcado de Curiol, mantém a escalação que não funcionou em Bangu. Ademais, segue repetindo o posicionamento errado de sua defesa, que marca em linha. O duelo, de assistência numerosa, inicia extremamente movimentado, e aos 5’ já está empatado em 1-1, score que persiste até o intervalo. No segundo half-time, após chances criadas pelos dois teams, que praticam um jogo duro e até violento, o fullback reserva Cintra comete hands (mão na bola). Freekick (pênalti), que Baena quase defende, mas não evita o segundo gol adversário. O Flamengo se lança em uma luta quase suicida ao ataque, perde gols inacreditáveis (e quase sofre outros tantos), até que a 5’ do final chega ao empate, em um tiro de longe do fullback Píndaro. Enquanto os rubro-negros comemoram, o adversário se lança à frente e, após uma série de peripécias, chega ao gol a poucos segundos do apito final. Uma derrota inesperada, que terá conseqüências fatais no desfecho da competição.

FLAMENGO 4-0 RIO CRICKET (14/07, Laranjeiras), FLAMENGO 5-0 SÃO CRISTÓVÃO (28/07, Laranjeiras)
Para o restante do campeonato, o Flamengo perde um importante jogador. Gustavo, seu principal forward e goleador, embarca para a Europa, para concluir seus estudos de Engenharia (retornará em 1917). Este fato, somado ao mau desempenho da defesa, enseja uma completa reformulação na escalação da equipe. Com a volta de Curiol, o criticado Cintra retorna ao segundo team, e a formação base fica assim definida: Baena, Píndaro e Nery; Lawrence, Amarante e Gallo; Curiol, Arnaldo, Gilberto, Bahiano e Alberto.
As alterações dão certo, e o time já se mostra mais sólido e combativo nas partidas contra os perigosos Rio Cricket e São Cristóvão, vencendo-os sem dificuldades por placares elásticos (ressalvando-se que o time alvo atuou bastante desfalcado). Mas a mudança para um jogo menos vistoso não agrada a crônica, que recheia de críticas as atuações flamengas. Destaque para a saraivada de censuras ao comportamento do inside-left forward (o ponta-de-lança, camisa 10) Bahiano, que se esmera em dribles e firulas desnecessários, num comportamento considerado “antidesportivo e desleal” pelos periódicos cariocas.

AMÉRICA 0-1 FLAMENGO
25/08, Campos Sales. O América está em ascensão no campeonato e sonha com o título, especialmente após derrotar o líder Paysandu, incendiando a competição. Mas o time rubro sofre uma baixa inesperada quando Jonathan, seu melhor atacante, inesperadamente embarca para São Paulo na véspera da partida. É o sinal, Mais polêmica partida do Flamengo no campeonato, o match é extremamente truncado e violento. Os jogadores Baiano (Flamengo) e Peres (América) distribuem pontapés e bordoadas sob a passiva complacência do referee Villas-Boas (que é o captain do São Cristóvão. À época os jogos são apitados por capitães de outros teams). Logo no início do jogo o América ataca. Uma bola é cruzada, todo mundo se embola, e no meio do batebufo do caterefofo o rubro Belfort vai marcar, mas se embola em um zagueiro, escorrega e cai. No embalo, justo Baiano e Peres dividem a bola, e sobra um bico de chanca na perna de apoio do captain americano, que sai de campo com séria luxação. Cada team acusa o adversário da autoria da “deslealdade”. O América, com 10, passa a resistir bravamente, sustentando um heróico empate, mas, a 30 segundos do apito final, Curiol faz bela jogada pela ponta e cruza para Borgerth, que arremata sem defesa para Marcos, Flamengo 1-0. São os números finais.
Os jornais, que já andavam demonstrando certa preferência aos rubros antes do jogo, colocando-os como favoritos, explodem em críticas. “A vitória foi decorrente exclusivamente da sorte”, “o árbitro foi de uma parcialidade que tocou o cinismo”, “o juiz parece ser parente de um dos jogadores do club vencedor”, “a nosso ver o jogo terminou empatado”, “todos os nossos parabéns de hoje vão ao vencido”, entre outras pérolas. A diretoria do América, esquecendo-se do “detalhe” de, como mandante, ter indicado o árbitro do cotejo, envia um ofício ao São Cristóvão solicitando que, quando da ocasião do próximo encontro entre os dois clubs em campo americano, o team alvo envie outro captain, pois o Sr. Villas-Boas acaba de ser proibido de colocar os pés no club tijucano. Sobra também para o fujão Jonathan, que é sumariamente eliminado dos quadros sociais do América.

FLAMENGO 14-0 MANGUEIRA
08/09, Laranjeiras. Um treinamento de luxo do Flamengo, que conta com uma equipe razoavelmente modificada. Sete vira, 14 acaba, num jogo em que o fraquíssimo adversário somente consegue transpor a linha central duas vezes em toda a partida. Destaque para Arnaldo (5 gols) e para a curiosa alteração do Mangueira no intervalo, que fez com que um jogador da linha assumisse a posição de goal-keeper, indo o titular para o meio do campo (não eram permitidas substituições, mas trocas de posição eram lícitas). O substituto, com belas defesas, acaba sendo mais elogiado que o goleiro original.

FLAMENGO W-0 BANGU
22/09, Laranjeiras. O Bangu, talvez temendo um destino parecido ao do Mangueira, não envia seu time principal a campo. Uma vez que a preliminar, entre os segundos teams, termina 10-0 para o Flamengo, imagina-se que a simpática agremiação suburbana tenha mesmo escapado de um revés histórico.

PAYSANDU 1-1 FLAMENGO
06/10, Laranjeiras. É a final antecipada do campeonato. O Paysandu lidera a competição com dois pontos de vantagem sobre o próprio Flamengo, e à equipe inglesa resta apenas mais um jogo após o duelo contra o rubro-negro. O Flamengo precisa vencer para ter a chance de se igualar na pontuação, forçando assim um match de desempate. No entanto, o rubro-negro mantém seu desenho tático mais combativo e forte na defesa, que vem dando bons resultados. O Paysandu ignora a vantagem e começa pressionando. Logo consegue um pênalti, cometido por Nery, mas H.Robinson desperdiça, chutando para Baena defender. Pouco depois, o goleiro C.Robinson vai repor a bola, mas é desarmado por Miguel (ou Borgerth, segundo alguns jornais), que arromba rede com bola e goleiro junto. Flamengo 1-0. E assim termina a primeira etapa. Na volta do intervalo o Flamengo se posta mais atrás, resistindo à pressão do Paysandu e estocando rápido, em contragolpes. Mas, a 10’ do final, Lawrence comete hands dentro da área, e mais um pênalti é marcado contra o Flamengo. O atacante Sidney Pullen (melhor jogador do Paysandu) desta vez é quem cobra, e não perde. 1-1. Com o empate o Flamengo se atira à frente, mas pouco consegue ameaçar o gol dos ingleses. O empate se mantém até o final, e o Paysandu com isso se torna o virtual campeão da temporada. Ao Flamengo, resta lamentar a inesperada derrota para o Fluminense, que lhe tirou os dois pontos que tanta falta fazem agora. Ou mesmo a imerecida derrota para o próprio Paysandu no primeiro jogo, que o rubro-negro dominou a maior parte do tempo.

RIO CRICKET 1-1 FLAMENGO
20/10, Icaraí, Niterói-RJ. O Flamengo precisa vencer esta partida e torcer para que o Paysandu perca para o Fluminense, o que manteria aceso o sonho do milagre. Mas nada disso acontece. Já algo desmotivado, o Flamengo não consegue se impor ao violento Rio Cricket, perde Borgerth contundido e não sai de um empate. No fim, ainda perde Miguel e Baiano, terminando o jogo com oito atletas. Enquanto isso, o Fluminense até apõe certa resistência no início, mas é sobrepujado pela maior força coletiva do Paysandu, que chega aos 4-2 e assim se sagra o campeão carioca de 1912.

FLAMENGO 4-0 FLUMINENSE
27/10, Laranjeiras. Mesmo testando alguns reservas e se dando “ao luxo” de atuar boa parte do tempo com um jogador a menos (um de seus jogadores chegou atrasado para a partida), o Flamengo, ao contrário do jogo do primeiro turno, atua de forma bem mais tranquila, concentrada e disciplinada, não tomando conhecimento do adversário e chegando à goleada com facilidade. O goleiro do Fluminense impede uma derrota ainda mais elástica. O Flamengo seguirá goleando o adversário nos jogos e anos seguintes, mas a derrota na primeira partida continuará sendo o jogo a ser lembrado por todos.

SÃO CRISTÓVÃO 0-3 FLAMENGO
01/11, Campos Sales. Sem motivação maior do que cumprir uma formalidade, o Flamengo jogou apenas o suficiente para construir um placar folgado contra o frágil adversário. Na primeira etapa o jogo ainda se arrastou em um enfadonho 0-0, mas na volta do intervalo o Flamengo acelerou o ritmo e chegou sem dificuldades ao placar, confirmando assim a segunda colocação na temporada.

* * *

E assim termina o ano. O Paysandu conquista o titulo de Campeão Carioca, somando 24 pontos, contra 22 do Flamengo. O team inglês, embora desprovido de luminares (exceto o outstanding forward Sidney Pullen, jogador de grande categoria), destaca-se pelo sólido conjunto e pela força de seu ataque. O Flamengo, mesmo coalhado de talentos individuais (Baena, Borgerth, Arnaldo, Curiol, Píndaro, Nery, sem falar em Gustavo, que jogou metade do campeonato), muitas vezes apresentou falhas em seu jogo coletivo, somente encontrando o equilíbrio no returno, quando acertou sua defesa (basta constatar os gols sofridos nas duas metades do campeonato, 14 e 3). Ademais, em vários momentos a equipe apresentou-se com certa leniência e excessiva irreverência, precisando “adoptar caracter mais competitivo”, nas palavras de periódicos da época.

Mas, à guisa de compensação, o Flamengo conquista o campeonato dos segundos teams (algo como os aspirantes), numa arrancada sensacional, em que desconta uma diferença de quatro pontos para o América, derrotando-o em match-desempate (4-2). É a Caxambu Cup, o primeiro troféu da história do futebol flamengo, conquistado já em seu primeiro ano de existência (o team principal ainda irá aguardar até 1914).

Este é o primeiro ano da história do futebol do Flamengo. Da nossa história.


Para maiores informações e detalhes, Livro “Uma Viagem a 1912”, de Marcelo Abinader, ou os jornais da época