sábado, 17 de outubro de 2015

Alfarrábios do Melo



1978. Os jogadores do Flamengo estão concentrados em São Conrado para a disputa de um Fla-Flu. De repente, alguém descobre que não há morangos para a sobremesa de domingo. Começam a pipocar as brincadeiras, pois há uma “lenda” entre os jogadores que dá conta que o Zico só faz gol se comer morango antes do jogo. Os boleiros, bem-humorados, começam a infernizar a vida do supervisor Domingos Bosco. Aporrinham tanto que Bosco manda dois auxiliares procurarem o fruto. Algum tempo mais tarde, após rodar boa parte da cidade, aparecem os rapazes com os benditos morangos. Silvestres, catados na beira da estrada. Bosco, aliviado, espera a hora da sobremesa, e aparece com uma bacia dos tais morangos, que coloca diante de Zico. “Toma aqui, meu craque, seu morango. Ó, tem chantilly também, viu? Agora, meu craque, já pode fazer seus gols. Imagina se meu craque iria ficar sem morango!”. (como curiosidade, o Flamengo venceu por 4-0, Zico marcou dois).

1987. Sem ambiente no São Paulo, o arisco, veloz e encrenqueiro ponta-esquerda Sidney é emprestado ao Flamengo, a pedido do treinador Antônio Lopes, que precisava de um especialista na função. Sidney, por conta de seu complicado comportamento extracampo, havia passado do céu (título brasileiro, convocações à seleção, chance de ir à Copa do Mundo) ao inferno (cortado da seleção que foi ao México, reserva no São Paulo, envolvimento em brigas e confusões). No rubro-negro, começa com um ou outro lampejo, mas rapidamente se rende aos encantos da “Cidade Maravilhosa”. Após três meses, é devolvido sem deixar a mais remota saudade. Vai parar no Santos, onde some. Mais tarde, analisando sua passagem pelo Flamengo, diz que “na verdade, não levei aquele clube a sério. Aquilo foi como umas férias pra mim.”

2005. O Flamengo vai sendo derrotado pelo Ceará em Campo Grande-MS, pela Copa do Brasil, em uma atuação deprimente de uma equipe que não demonstra vontade, aplicação, organização. No intervalo, o clima não é bom, alguns jogadores começam a discutir entre si. Interpelado acerca de sua suposta displicência, o volante Jônatas emenda: “Eu sou pica. Pica não marca. Se virem e corram pra mim”.

* * *

Se é verdade que o Flamengo encontra-se disputando uma vaga para a Libertadores do ano que vem (terminou a última rodada a DOIS pontos do quarto colocado, faltando oito jogos, ou 24 pontos, para o final da competição), e isso indica uma clara e inquestionável evolução, em termos de resultados, de um clube que andou patinando em posições intermediárias (ou até pior que isso) nas últimas SEIS temporadas (com a exceção do time impagável de 2011), também é verdade que a postura da equipe atual de futebol ainda está longe, muito longe, completamente divorciada daquilo que entendemos ser adequada para um grupo minimamente competitivo, que se pretende confrontar com objetivos à altura de uma instituição do porte do Flamengo.

Em síntese, o time possui alguns bons jogadores, pratica um futebol que em alguns momentos até é razoável, mas não reúne nenhum traço de competitividade, de ambição, de capacidade de lidar com adversidades. Sintetizando ainda mais, um time frouxo (que já tive a infelicidade de abordar neste texto), que não transmite a menor confiança de que irá alcançar a tal vaga na competição continental.
O Flamengo possui em seus pilares a cultura da irreverência, da informalidade, da democracia. “Onde encontrares um flamengo, encontrarás um amigo”, prega uma famosa frase que ficou eternizada no tempo. Mas, como frisava o cientista Paracelso lá pelo século XVI, “dosis sola facit venenum” (só a dose faz o veneno). Donde, afabilidade, cordialidade, permissividade em excesso terão o condão de intoxicar relações de trabalho, esfiapando liames que deveriam se sustentar pela sólida trama da hierarquia, derretendo compromissos com a estrita conduta corporativa.

Durante miríades de anos, criou-se a sensação de que o problema das relações de trabalho envolvendo os profissionais que militavam no Flamengo se subsumiam à questão salarial. Uma vez que o clube atrasava as remunerações, não reunia os requisitos morais de desenvolver cobranças mais intensas quanto à postura de seus atletas, tornando-se deles meio que refém. Os jogadores não recebiam em dia, e isso lhes dava uma espécie de “salvo-conduto” para pequenas (ou nem tanto) transgressões, desde que “se garantissem em campo”.

Destarte, paradoxalmente, passou-se a atribuir ao elenco de jogadores uma autonomia absolutamente incompatível com os preceitos que regem uma relação pautada na perseguição de um ambiente competitivo e meritocrático. Multiplicaram-se as situações em que jogadores e elencos passaram a atuar “quando queriam”. Treinadores foram derrubados e colocados ao belprazer de lideranças de elenco. É célebre o caso de 1995, quando, após a queda de Luxemburgo, optou-se pela contratação do treinador Edinho porque “os jogadores gostavam dele”. Após o fim da Era Coutinho (que sabia dialogar, mas tinha voz forte), apenas treinadores “de conversa”, quando não churrasqueiros mesmo, prosperaram no clube, com o time à mercê de lideranças positivas (Zico, Júnior, Petkovic em 2009) ou negativas (como nos tempos da “Lei de Vampeta” e seus fingimentos).

É a Síndrome do “Meu Craque”. Criou-se toda uma estrutura para gravitar em torno do “meu craque”. O episódio dos morangos, exemplificado no início deste texto, ocorreu em uma época de mentalidade vencedora, mas a cultura se manteve. As vitórias se foram (ao menos naquele volume e nível), mas a idéia permaneceu. O “meu craque” aparecia num Gilmar Popoca, tido como “novo Zico”. O “meu craque” queria ir pra seleção mesmo mal conseguindo matar uma bola, como o Ailton (volante nos anos 80). Ao “meu craque” bastava chegar ao Flamengo para todas as portas se abrirem. O “meu craque” aparecia na base, era um Júnior “boneca”, um Erick Flores, um Adryan, um Muralha, um Bruno Paulo.

O “Meu Craque” passava todo o contrato gordo como uma leitoa, sem ser incomodado (Diego Souza, Obina...), o “meu craque” não gostava de ser substituído, o “meu craque” jogava a camisa longe (Felipe, irritado com as cornetas, em 2004), puta que o pariu, o “meu craque” é o melhor goleiro do Brasil (Diego, sim, Diego em 2005).

A administração atual aparentemente também incorreu no mito do “salário atrasado”. Bastaria ajeitar o cronograma de remunerações e, alakazum, teríamos um grupo de profissionais comprometidos e dedicados apenas a morder gramados e tornozelos alheios, transpirando sangue até alcançar os píncaros da glória. Balela.

O “Meu Craque” ainda está lá, firme. O “meu craque” faz dois ou três bons jogos e se diz “no auge da carreira” (Alan Patrick, em entrevista pro Globo), o “meu craque” diz que “se fosse fácil todo mundo faria” (o medíocre César Martins), o “meu craque” faz biquinho pra dar autógrafo (Paulinho), o “meu craque” faz carinha de nojo pra torcida (Samir, Wallace...).

O “meu craque” é o pica, a estrela. Não pode ser confrontado, cobrado. Está no Flamengo. Deu certo na vida. Está imune a essas situações desagradáveis, como esporros, cobrança. Não se contesta jogador consagrado. Jogador consagrado se reverencia. Não podem vaiar, criticar, quem pensam que são?

Nesse processo de profunda remodelagem institucional por que passa o CR Flamengo, a atual administração está diante de uma oportunidade valiosa. A chance de promover uma revolução cultural e de transportar para dentro das paredes do Ninho do Urubu uma mentalidade mais impessoal, mais competitiva, mais institucional. Um modelo em que o jogador será avaliado por seu desempenho, por seus méritos, e onde cada conquista deverá ensejar a gana por êxitos ainda maiores. Ao invés de mera muleta para justificar acomodação, um título deverá ser o combustível para alavancar mais taças.

Mas para isso será necessário coragem, determinação, força, foco. A plena noção de que o futebol, na qualidade de “core business” (para usar um termo 'moderninho', gourmet) do clube, tem a OBRIGAÇÃO de ser encarado como a prioridade máxima, absoluta, centro de todas as atenções e energia. A tão necessária fase de transição está chegando ao final. Agora, é a hora do futebol. Não há mais a opção do adiamento, da postergação.

Naturalmente, existe uma cultura organizacional, há valores, que devem ser cultivados, sem agredir a essência do clube. Um compromisso com aquilo que se construiu ao longo de toda uma história. No entanto, a preservação de uma identidade não está desvinculada da construção de uma mentalidade vitoriosa. Muito pelo contrário, como atesta o vasto cabedal de taças disposta nas nossas estantes.

No entanto, é o momento de se cortar os excessos, os vícios, os ruídos. De perder o medo do desconhecido. De procurar, de cobrar, de desenvolver o inconformismo. Se ganhou de dois e podia ser de três, porque parou? Dissecar exaustivamente cada revés e mesmo cada êxito. Trazer profissionais vencedores, que não aceitem absolutamente nada menos que o triunfo pleno. Descartar nomes vinculados ao “laissez-faire”, ao mero controle de ponto, presos à única ambição de manter contratos longos e bem remunerados. Para se manter no Flamengo, o profissional precisa vencer no Flamengo.

E que, enfim, a lógica volte à sua sequência natural. Primeiro, o jogador produz e conquista. Depois, é festejado.

Uma boa semana a todos.