

2005. O Flamengo vai sendo
derrotado pelo Ceará em Campo Grande-MS, pela Copa do Brasil, em uma atuação
deprimente de uma equipe que não demonstra vontade, aplicação, organização. No
intervalo, o clima não é bom, alguns jogadores começam a discutir entre si.
Interpelado acerca de sua suposta displicência, o volante Jônatas emenda: “Eu
sou pica. Pica não marca. Se virem e corram pra mim”.
* * *
Se é verdade que o Flamengo
encontra-se disputando uma vaga para a Libertadores do ano que vem (terminou a última rodada a DOIS
pontos do quarto colocado, faltando oito jogos, ou 24 pontos, para o final da
competição), e isso indica uma clara e inquestionável evolução, em termos de
resultados, de um clube que andou patinando em posições intermediárias (ou até
pior que isso) nas últimas SEIS temporadas (com a exceção do time impagável de
2011), também é verdade que a postura da equipe atual de futebol ainda está
longe, muito longe, completamente divorciada daquilo que entendemos ser
adequada para um grupo minimamente competitivo, que se pretende confrontar com
objetivos à altura de uma instituição do porte do Flamengo.
Em síntese, o time possui alguns
bons jogadores, pratica um futebol que em alguns momentos até é razoável, mas
não reúne nenhum traço de competitividade, de ambição, de capacidade de lidar
com adversidades. Sintetizando ainda mais, um time frouxo (que já tive a infelicidade de
abordar neste texto), que
não transmite a menor confiança de que irá alcançar a tal vaga na competição
continental.
O Flamengo possui em seus pilares
a cultura da irreverência, da informalidade, da democracia. “Onde encontrares
um flamengo, encontrarás um amigo”, prega uma famosa frase que ficou eternizada
no tempo. Mas, como frisava o cientista Paracelso lá pelo século XVI, “dosis sola
facit venenum” (só a dose faz o veneno). Donde, afabilidade, cordialidade,
permissividade em excesso terão o condão de intoxicar relações de trabalho,
esfiapando liames que deveriam se sustentar pela sólida trama da hierarquia,
derretendo compromissos com a estrita conduta corporativa.
Durante miríades de anos,
criou-se a sensação de que o problema das relações de trabalho envolvendo os
profissionais que militavam no Flamengo se subsumiam à questão salarial. Uma
vez que o clube atrasava as remunerações, não reunia os requisitos morais de
desenvolver cobranças mais intensas quanto à postura de seus atletas,
tornando-se deles meio que refém. Os jogadores não recebiam em dia, e isso lhes
dava uma espécie de “salvo-conduto” para pequenas (ou nem tanto) transgressões,
desde que “se garantissem em campo”.



A administração atual
aparentemente também incorreu no mito do “salário atrasado”. Bastaria ajeitar o
cronograma de remunerações e, alakazum, teríamos um grupo de profissionais
comprometidos e dedicados apenas a morder gramados e tornozelos alheios,
transpirando sangue até alcançar os píncaros da glória. Balela.
O “Meu Craque” ainda está lá,
firme. O “meu craque” faz dois ou três bons jogos e se diz “no auge da
carreira” (Alan Patrick, em entrevista pro Globo), o “meu craque” diz que “se
fosse fácil todo mundo faria” (o medíocre César Martins), o “meu craque” faz
biquinho pra dar autógrafo (Paulinho), o “meu craque” faz carinha de nojo pra
torcida (Samir, Wallace...).
O “meu craque” é o pica, a
estrela. Não pode ser confrontado, cobrado. Está no Flamengo. Deu certo na
vida. Está imune a essas situações desagradáveis, como esporros, cobrança. Não
se contesta jogador consagrado. Jogador consagrado se reverencia. Não podem
vaiar, criticar, quem pensam que são?
Nesse processo de profunda
remodelagem institucional por que passa o CR Flamengo, a atual administração
está diante de uma oportunidade valiosa. A chance de promover uma revolução
cultural e de transportar para dentro das paredes do Ninho do Urubu uma
mentalidade mais impessoal, mais competitiva, mais institucional. Um modelo em
que o jogador será avaliado por seu desempenho, por seus méritos, e onde cada
conquista deverá ensejar a gana por êxitos ainda maiores. Ao invés de mera
muleta para justificar acomodação, um título deverá ser o combustível para
alavancar mais taças.
Mas para isso será necessário
coragem, determinação, força, foco. A plena noção de que o futebol, na
qualidade de “core business” (para usar um termo 'moderninho', gourmet) do
clube, tem a OBRIGAÇÃO de ser encarado como a prioridade máxima, absoluta,
centro de todas as atenções e energia. A tão necessária fase de transição está
chegando ao final. Agora, é a hora do futebol. Não há mais a opção do adiamento,
da postergação.
Naturalmente, existe uma cultura
organizacional, há valores, que devem ser cultivados, sem agredir a essência do
clube. Um compromisso com aquilo que se construiu ao longo de toda uma
história. No entanto, a preservação de uma identidade não está desvinculada da construção de uma mentalidade vitoriosa. Muito pelo contrário, como atesta o vasto cabedal de
taças disposta nas nossas estantes.
No entanto, é o momento de se
cortar os excessos, os vícios, os ruídos. De perder o medo do desconhecido. De
procurar, de cobrar, de desenvolver o inconformismo. Se ganhou de dois e podia
ser de três, porque parou? Dissecar exaustivamente cada revés e mesmo cada
êxito. Trazer profissionais vencedores, que não aceitem absolutamente nada
menos que o triunfo pleno. Descartar nomes vinculados ao “laissez-faire”, ao
mero controle de ponto, presos à única ambição de manter contratos longos e bem
remunerados. Para se manter no Flamengo, o profissional precisa vencer no
Flamengo.
E que, enfim, a lógica volte à
sua sequência natural. Primeiro, o jogador produz e conquista. Depois, é
festejado.
Uma boa semana a todos.