Sonhava ser jogador de bola.
Como toda criança sonha ser
policial, bombeiro, astronauta, piloto de avião, eu queria jogar bola. Eu me
imaginava marcando gols de bicicleta para estádios lotados, fazendo jogadas geniais, chapéus, lambretas, enfim, idealizando as líricas fantasias
de menino.
Um dia, lá pelos meus dez, onze
anos, entrei numa escolinha.
Passa-se o tempo.
Agora estou com 15, 16 anos. O
sonho de jogar bola se foi. O prazer, não. Sigo na escolinha. Agora, não mais a
porta de entrada para um utópico devaneio de garoto, mas um espaço para
aprender um pouco mais de uma paixão cada vez mais arraigada. E a oportunidade
para bater uma bola com uma galera legal e alguns nomes que outro dia via na tevê ou no estádio.
Interagir e aprender as manhas do jogo com figuras como Fito Neves, Léo
Oliveira, André Catimba, Alberto Leguelé, Dirceu, jogadores que protagonizaram
o cenário esportivo baiano nos anos 70 e 80. Instrutores que ensinam
pacientemente a bater numa bola, a nunca esperar receber parado um passe, a
técnica de condução, como chutar a gol, como cabecear de olho aberto, essas
coisas.
Certo talento eu tenho. Sou um
atacante, digamos, perigoso. Sei fazer gol. Falta-me a compleição e a resistência física, o
que compenso com técnica, raciocínio e visão de jogo (um estilo semelhante ao
do Walter “deita e rola”). Mas é algo assombrosamente distinto do nível dos
caras, que chutam bolas na gaveta como mascam chicletes. Outro dia o Léo
Oliveira pega uma bola lá atrás e me grita, “corre”. Eu corro no vazio, sem
pensar, simplesmente corro. Ameaço parar. O cara berra, “continua correndo,
porra!”, de repente a bola me aparece no pé, como por mágica. Só me resta tirar
do goleiro, ainda atônito com o lançamento absurdo, transcendental, esotérico,
de seus, sei lá, 40, 50 metros.
Dia desses, aparece o
atacante.
O Fito está treinando um time desses pequenos no interior baiano, e
pede ao colega para ir lá quebrar um galho. O cara vai, passa o recado dele e
depois vai participar do baba com a gente. Isso se repete mais umas três ou
quatro vezes. O atacante é gente boa, bom de papo, sem estrelismo, sem
frescura. Jogou no Bahia, foi goleador, protagonista do hepta baiano, passou
pelo Atlético-MG de Reinaldo e Cerezo, jogou e fez gol pelo forte time da Ponte
Preta, andou pelo Nordeste. Ícone do futebol regional. Cansei de ver os gols dele
nas retrospectivas do Varela, da TV Itapoan. Sempre artilheiro.
Indo pra casa, espero o ônibus.
Olho pro lado, lá está o atacante, par de chuteiras nas mãos. Conversa rápida.
Percebe-se que estamos indo ao mesmo destino. Súbito, o convite, “eu tenho que
fazer uma hora pra esperar minha esposa sair do trabalho. Bora tomar uma
cerveja”
Os franceses começam a beber
cedo, aos oito, nove anos. Uma taça de vinho diluída com água no almoço. Não
sou gaulês, mas também comecei precoce. Lá pelos nove, dez anos. Cerveja, não
vinho. Golinho controlado em latinhas “para experimentar”, rapidamente cheguei
a conseguir diferenciar as marcas, escolher uma preferida, distinguir o sabor.
Tudo em família. Era como uma celebração. Fugaz, moderada ao extremo
(uma lata para três: pai, mãe e filho), mas instigante. Unia.
“Bora”.
A birosca ao lado do ponto de
ônibus, já a poucas quadras de casa, não passa de uma barraquinha de madeira
com um isopor e dois tamboretes que escoltam uma mesa torta de madeira agastada
e de tinta descascando. O dono, poucos dentes à boca e riso fácil,
destampa uma garrafa fosca de tão gelada. Os copos de geleia enchem-se
rapidamente. O brinde.
E começa a aula do que é o
futebol cru, bruto, de raiz, sem glamour.
O atacante vai passando as dicas
e as manhas. “Futebol é sujo, manja aquela coisa do peixe que devora o peixe
menor? Pois é. Se você vacilar, já era”. Peço detalhes, eles vêm caudalosos.
Centroavante pra se criar tem que estabelecer um diálogo em que o idioma é a
porrada. Não tem papo com zagueiro. É seu oponente, seu antagonista, o cara que
vai fazer sua carreira empacar. E você a dele. Então a briga pelo espaço é
árdua, pesada, nem sempre leal. Lealdade é coisa de aristocrata desocupado.
Dentro do campo é guerra. É jogar areia na cara do bicho quando tá subindo pra
cabecear. É amarrar um prego ou alfinete com a ponta pra fora pra espetar
quando esbarrar. É fazer botinha de esparadrapo com biqueira mais dura pra dar
na perna do cara. É descobrir o nome da mãe, da irmã, e cochichá-lo na orelha do
cara gemendo e simulando... você entendeu. É entrar no campo com atadura na
perna boa e deixar a lesionada sem nada, deixar a perna boa de isca pro
zagueiro bater. É dar uma no cara, estender a mão e, baixinho, mandar levantar pra apanhar de novo. Guerra.
E vai continuando. Pergunto se
boleiro derruba treinador mesmo ou se é conversa. Lógico que derruba, quando
querem alguns titulares começam a “se machucar”, outros cavam cartões, outros
correm errado na hora exata pra forjar a tal “falha fatal”, os atacantes
começam a perder gols fáceis, zagueiros não fazem direito a cobertura, alguns se escondem no marcador, há várias
técnicas, não precisa ficar andando em campo ou reclamando de alteração, dá pra
ser menos óbvio. E jogador detesta professor de gabinete que cospe regra ou o
cara frouxo sem comando.
Aí falo de árbitro. Tem juiz
ladrão mesmo ou é só choradeira? É o que mais tem. Você acha que um Bahia, um
Vitória, vão perder prum itabuna da vida com um lance duvidoso? Nunca. Na
dúvida a bola é sempre do time grande, ou do time amigo da federação. Outra
coisa, quem vai prestar atenção no que acontece em jogo de Ponte Preta contra
um pindamonhangaba qualquer num sábado de tarde? Jogador inclusive sabe, com cinco, dez
minutos, quando o juiz tá conversado. Alguns são tão cínicos que até avisam
meio torto, tipo chega pro capitão do time e grita “tão batendo muito, vou
marcar tudo”, é a senha. Se se jogar na área... então tem essas coisas. É sujo,
é porco. Se não tiver malícia pra lidar, é engolido.
Por exemplo, garoto começando. Se
ele se espalha muito, já tem esquema com o preparador físico pra arrebentar ele
no treino, fazer correr mais pra já ir morto pro coletivo. Ou com o médico. Dá
uma nele no coletivo e manda o médico segurar no Departamento, não libera, deixa de molho. Ou
faz a coisa mais diretamente. Tinha um ponta novato que tava desmoralizando o
lateral titular. No fim do treino o cara encostou no guri e avisou que se
ele não "se ligasse" ia receber uma “visita” de uma galera amiga "das bocadas" pra dar um "recado". E picou-lhe o tapão
pra mostrar qual seria o tipo de recado. Eles fazem panela, e se quiser se criar tem
que entrar na onda dos caras. Pedir a bênção.
Vou escutando tudo, olhos
brilhando, ávido. Longe de me indignar, é uma espécie de mundo que se vai
abrindo. Cada detalhe sórdido é sorvido com um fervor quase eufórico,
religioso, a sede pelo mais insignificante pormenor, a ânsia típica dos
aprendizes.
O atacante olha o relógio e me
avisa, “ih, deu a hora. Tenho de ir. Mocreba, pendura aí, depois a gente
acerta”. Eu me levanto e tiro da mochila o chaveiro de casa.
O jogador nota nele um escudo do Flamengo. Súbito, o olhar se torna distante. A
postura jocosa, fanfa, expansiva, se transfigura. Um suspiro mal disfarçado e o
murmúrio, a confissão baixa, séria, triste.
“Flamengo... Tu torce pro Flamengo? É, eu não joguei... no
Flamengo...”
Dura pouco. Logo o atacante se
recompõe e ganha seu caminho, após um aceno rápido. Meio tonto com a cerveja,
também sigo meu rumo. Aquela breve e intensa conversa terá sido a última, não
nos esbarraremos mais. Outros ex-jogadores, massagistas, fisicultores, também
ensinarão. Mas aquela horinha de conversa com o atacante terá sido a mais
intensa, a mais visceral, a mais sanguínea. Nunca mais verei futebol da mesma
forma, acabou o romance, a poesia, o lirismo. A cerveja demarca o advento de
uma realidade implacável, exposta sem véus ou subterfúgios. É como um rito.
De certa forma, naquela mesota empenada,
sentei-me um garoto. E me levantei homem.