domingo, 30 de agosto de 2015

Alfarrábios do Melo

Reformulação.

A administração que acaba de tomar posse do Flamengo encontra diante de si o desafio de recuperar um clube que começa a se afastar da disputa dos principais títulos, após mais de uma década de protagonismo. Recebe um time qualificado, mas repleto de jogadores sem identificação com a instituição, desmotivados e incomodados com a falta de estrutura (salários e premiações atrasados, entre outros problemas).

Com efeito, a temporada flamenga pode ser considerada decepcionante. No primeiro semestre, o time amargou a pior campanha em um Estadual nos últimos 14 anos, terminando em uma inimaginável quarta posição, chegando ao requinte de não vencer nenhum clássico, perdendo quatro dos seis disputados. Já no Campeonato Brasileiro, mesmo após forte reforma no futebol, a equipe andou namorando a zona de rebaixamento, da qual se afastou após ligeira melhora. A âncora da temporada foi a conquista da Copa do Brasil, num trajeto facilitado pela eliminação precoce das equipes tidas como favoritas.

O diagnóstico para o fracasso é decretado. O Flamengo, após o fim da “Geração Zico”, optou por trilhar um caminho distinto do que lhe é peculiar. Foi às compras montar um time que desse retorno rápido. Investiu em jogadores com experiência em outros centros, outras realidades. Abriu mão inclusive de fomentar a criação de ídolos, permitindo que alguns jogadores usassem o clube como um rápido trampolim para suas aventuras europeias. A ideia foi ostentar uma equipe cara e cheia de medalhões forasteiros. Na prática, um time frio, distante e sem postura vencedora.

Agora é preciso rever tudo.

Com as finanças combalidas, a nova diretoria anuncia que não fará “loucuras” para contratar reforços. A primeira medida é dispensar o caro e valorizado treinador Jair Pereira, trazendo para seu lugar o talentoso e promissor Vanderlei Luxemburgo, que levou o modesto Bragantino ao título paulista e ao 8º lugar do Campeonato Brasileiro. Luxemburgo, além de estar em ascensão na carreira, é rubro-negro, jogou no Flamengo e conhece o clube, é cria da casa.

Cria da casa. A premissa passa a gravitar em torno desse ponto.

A primeira etapa é a dispensa ou a negociação de vários atletas. Bobô e Zanata acertam sua ida ao Fluminense, o zagueiro Fernando (autor do gol do título na Copa do Brasil) é vendido ao futebol português, o lateral Nelsinho (que chegou a criticar duramente o clube durante sua passagem) é devolvido ao São Paulo e o ponta-esquerda Paulinho Carioca (ex-Fluminense) é remetido ao México.
Luxemburgo recebe a missão de remontar o elenco com os jogadores das divisões de base. A geração campeã da Copa São Paulo de 1990 enfim viverá sua transição definitiva para os profissionais, fechando um ciclo iniciado em 1988, ainda com Telê Santana no comando. Chega o momento de jogadores como Rogério, Júnior Baiano, Fabinho, Luís Antônio, Marquinhos, Nélio, Marcelinho, Djalminha e Paulo Nunes serem efetivamente aproveitados na equipe principal, agora disputando o posto de titulares.

Há espaço para alguns reforços, que irão compor o elenco. O lateral-esquerdo Leonardo é vendido ao São Paulo (para onde havia sido emprestado), e em troca chegam o vitorioso e experiente goleiro Gilmar, o elogiado zagueiro Adílson e o espevitado meia Paulo César, como aposta. Do Guarani virá o raçudo volante Charles Guerreiro, da Portuguesa chega o habilidoso meia Toninho. Para a lateral-esquerda, o Flamengo recruta o ex-seleção Dida e para a zaga o rubro-negro aproveitará um litígio de Wilson Gotardo com o Botafogo e assim ganhará um líder natural. Os reforços, assim, conjugam perfis que aliam liderança, competitividade, experiência e talento, abrindo espaço para uma ou duas apostas.

Os jovens e os reforços irão se juntar a uma base de jogadores já montada. Zé Carlos, Ailton, Alcindo e Zinho são os jogadores com “tempo de casa” que, junto com Gaúcho e Uidemar, contratações bem-sucedidas do passado, formam um competente “elenco de apoio”.

Resta a questão da liderança maior. Para esse papel é eleito Júnior, o último remanescente da Geração Zico, que desde que retornou da Itália tem exercido um papel secundário (jogou de zagueiro com Espinoza e chegou a ser barrado por Jair Pereira durante a temporada anterior). O “Capacete”, que andava desmotivado, é convencido a continuar a carreira e ganha carta branca para se tornar a principal referência da jovem equipe flamenga que começa a se formar. Irá exercer, em termos de liderança e comando, papel semelhante ao outrora desempenhado por Zico.

Mas, para isso, é preciso resolver outra questão. Renato Gaúcho, ídolo e principal jogador do time na temporada anterior, está em boa fase e desfruta de prestígio junto aos torcedores e à crônica. No entanto, o craque não desfruta de bom relacionamento com os jovens da base e nutre uma velada rivalidade com Júnior, que não aprova o temperamento expansivo e irrequieto do atacante. Nesse contexto, surge uma proposta agressiva de Emil Pinheiro, que quer levar Renato para o Botafogo. O Flamengo inicialmente resiste (talvez como jogo de cena), mas a negociação acontece sem maiores obstáculos por parte do rubro-negro, o que magoa o atacante, que preferia permanecer na Gávea.

Assim, o elenco para a temporada de 1991 está montado, de uma forma completamente coerente com a premissa de devolver ao Flamengo sua identidade e algumas das características que fizeram do clube uma instituição vencedora ao longo de sua história. Não por acaso, jogadores, comissão técnica e dirigentes, apesar das dificuldades, parecem entusiasmados com o ano que está prestes a iniciar.

Vai começar uma história.

* * *

Mas o caminho está longe, muito longe, de ser fácil. O jovem time começa muito mal a temporada, sendo abatido por sucessivas goleadas. Os jornais gritam que o Flamengo montou um dos “piores times de sua história”. O time chega a permanecer algumas rodadas na lanterna do Campeonato Brasileiro. A recuperação, sempre sob desconfiança, começa apenas aos poucos, gradativa. Quando o time parece enfim estar crescendo, sofre uma contundente eliminação na Libertadores para o Boca Juniors. O treinador Luxemburgo, impaciente com a demora nos resultados, entra em atrito com vários jogadores e dirigentes e força a sua saída, enquanto há rumores de que esteja negociando um contrato com o Guarani. Algumas contratações não vingam, como Paulo César (que foge para sua terra natal em plena vigência de contrato), Toninho e Dida, todos devolvidos. Adilson até agrada, mas o clube, sem dinheiro, o devolve ao São Paulo. Nenhum jogador negociado será reposto.

Carlinhos assumirá o comando após a saída de Luxemburgo. Manterá as linhas gerais do trabalho do antecessor, embora promova algumas mudanças que tornarão a equipe mais equilibrada e ofensiva. O time-base será praticamente mantido e aprimorado. O perfil da equipe conjugará velocidade, forte marcação no meio, uma bola parada letal e muita, muita, mas muita raça e disposição. Fará um Estadual impecável, a ponto de, após uma vitória sobre o Vasco (2-0), arrancar de um jornalista europeu que assistiu ao jogo a declaração de que a atuação do Flamengo foi “a mais perfeita em termos técnicos e táticos que vi uma equipe de futebol desenvolver em toda essa temporada”.

Um dos “piores times da história do Flamengo” conquistará o Estadual de forma inapelável, irretorquível, com direito a goleada na Final. E, mesmo sem ainda saber, estará pronto para voos maiores.

Como sempre foi inerente à essência flamenga.


À nossa natureza.