Reformulação.
A administração que acaba de
tomar posse do Flamengo encontra diante de si o desafio de recuperar um clube
que começa a se afastar da disputa dos principais títulos, após mais de uma
década de protagonismo. Recebe um time qualificado, mas repleto de jogadores sem
identificação com a instituição, desmotivados e incomodados com a falta de
estrutura (salários e premiações atrasados, entre outros problemas).
Com efeito, a temporada flamenga
pode ser considerada decepcionante. No primeiro semestre, o time amargou a pior
campanha em um Estadual nos últimos 14 anos, terminando em uma inimaginável
quarta posição, chegando ao requinte de não vencer nenhum clássico, perdendo
quatro dos seis disputados. Já no Campeonato Brasileiro, mesmo após forte
reforma no futebol, a equipe andou namorando a zona de rebaixamento, da qual se
afastou após ligeira melhora. A âncora da temporada foi a conquista da Copa do
Brasil, num trajeto facilitado pela eliminação precoce das equipes tidas como
favoritas.
O diagnóstico para o fracasso é
decretado. O Flamengo, após o fim da “Geração Zico”, optou por trilhar um
caminho distinto do que lhe é peculiar. Foi às compras montar um time que desse
retorno rápido. Investiu em jogadores com experiência em outros centros, outras
realidades. Abriu mão inclusive de fomentar a criação de ídolos, permitindo que
alguns jogadores usassem o clube como um rápido trampolim para suas aventuras
europeias. A ideia foi ostentar uma equipe cara e cheia de medalhões
forasteiros. Na prática, um time frio, distante e sem postura vencedora.
Agora é preciso rever tudo.
Com as finanças combalidas, a
nova diretoria anuncia que não fará “loucuras” para contratar reforços. A
primeira medida é dispensar o caro e valorizado treinador Jair Pereira,
trazendo para seu lugar o talentoso e promissor Vanderlei Luxemburgo, que levou
o modesto Bragantino ao título paulista e ao 8º lugar do Campeonato Brasileiro.
Luxemburgo, além de estar em ascensão na carreira, é rubro-negro, jogou no
Flamengo e conhece o clube, é cria da casa.
Cria da casa. A premissa passa a
gravitar em torno desse ponto.
A primeira etapa é a dispensa ou
a negociação de vários atletas. Bobô e Zanata acertam sua ida ao Fluminense, o
zagueiro Fernando (autor do gol do título na Copa do Brasil) é vendido ao
futebol português, o lateral Nelsinho (que chegou a criticar duramente o clube
durante sua passagem) é devolvido ao São Paulo e o ponta-esquerda Paulinho
Carioca (ex-Fluminense) é remetido ao México.
Luxemburgo recebe a missão de
remontar o elenco com os jogadores das divisões de base. A geração campeã da
Copa São Paulo de 1990 enfim viverá sua transição definitiva para os
profissionais, fechando um ciclo iniciado em 1988, ainda com Telê Santana no
comando. Chega o momento de jogadores como Rogério, Júnior Baiano, Fabinho, Luís
Antônio, Marquinhos, Nélio, Marcelinho, Djalminha e Paulo Nunes serem
efetivamente aproveitados na equipe principal, agora disputando o posto de
titulares.
Há espaço para alguns reforços,
que irão compor o elenco. O lateral-esquerdo Leonardo é vendido ao São Paulo
(para onde havia sido emprestado), e em troca chegam o vitorioso e experiente
goleiro Gilmar, o elogiado zagueiro Adílson e o espevitado meia Paulo César,
como aposta. Do Guarani virá o raçudo volante Charles Guerreiro, da Portuguesa
chega o habilidoso meia Toninho. Para a lateral-esquerda, o Flamengo recruta o
ex-seleção Dida e para a zaga o rubro-negro aproveitará um litígio de Wilson
Gotardo com o Botafogo e assim ganhará um líder natural. Os reforços, assim,
conjugam perfis que aliam liderança, competitividade, experiência e talento,
abrindo espaço para uma ou duas apostas.
Os jovens e os reforços irão se
juntar a uma base de jogadores já montada. Zé Carlos, Ailton, Alcindo e Zinho
são os jogadores com “tempo de casa” que, junto com Gaúcho e Uidemar,
contratações bem-sucedidas do passado, formam um competente “elenco de apoio”.
Resta a questão da liderança
maior. Para esse papel é eleito Júnior, o último remanescente da Geração Zico,
que desde que retornou da Itália tem exercido um papel secundário (jogou de
zagueiro com Espinoza e chegou a ser barrado por Jair Pereira durante a
temporada anterior). O “Capacete”, que andava desmotivado, é convencido a
continuar a carreira e ganha carta branca para se tornar a principal referência
da jovem equipe flamenga que começa a se formar. Irá exercer, em termos de
liderança e comando, papel semelhante ao outrora desempenhado por Zico.
Mas, para isso, é preciso
resolver outra questão. Renato Gaúcho, ídolo e principal jogador do time na temporada
anterior, está em boa fase e desfruta de prestígio junto aos torcedores e à
crônica. No entanto, o craque não desfruta de bom relacionamento com os jovens
da base e nutre uma velada rivalidade com Júnior, que não aprova o temperamento
expansivo e irrequieto do atacante. Nesse contexto, surge uma proposta
agressiva de Emil Pinheiro, que quer levar Renato para o Botafogo. O Flamengo
inicialmente resiste (talvez como jogo de cena), mas a negociação acontece sem
maiores obstáculos por parte do rubro-negro, o que magoa o atacante, que
preferia permanecer na Gávea.
Assim, o elenco para a temporada
de 1991 está montado, de uma forma completamente coerente com a premissa de
devolver ao Flamengo sua identidade e algumas das características que fizeram
do clube uma instituição vencedora ao longo de sua história. Não por acaso,
jogadores, comissão técnica e dirigentes, apesar das dificuldades, parecem
entusiasmados com o ano que está prestes a iniciar.
Vai começar uma história.
* * *
Mas o caminho está longe, muito
longe, de ser fácil. O jovem time começa muito mal a temporada, sendo abatido
por sucessivas goleadas. Os jornais gritam que o Flamengo montou um dos “piores
times de sua história”. O time chega a permanecer algumas rodadas na lanterna
do Campeonato Brasileiro. A recuperação, sempre sob desconfiança, começa apenas
aos poucos, gradativa. Quando o time parece enfim estar crescendo, sofre uma
contundente eliminação na Libertadores para o Boca Juniors. O treinador
Luxemburgo, impaciente com a demora nos resultados, entra em atrito com vários
jogadores e dirigentes e força a sua saída, enquanto há rumores de que esteja
negociando um contrato com o Guarani. Algumas contratações não vingam, como
Paulo César (que foge para sua terra natal em plena vigência de contrato), Toninho
e Dida, todos devolvidos. Adilson até agrada, mas o clube, sem dinheiro, o
devolve ao São Paulo. Nenhum jogador negociado será reposto.
Carlinhos assumirá o comando após
a saída de Luxemburgo. Manterá as linhas gerais do trabalho do antecessor, embora promova algumas mudanças que tornarão a equipe mais equilibrada e ofensiva. O
time-base será praticamente mantido e aprimorado. O perfil da equipe conjugará
velocidade, forte marcação no meio, uma bola parada letal e muita, muita, mas
muita raça e disposição. Fará um Estadual impecável, a ponto de, após uma
vitória sobre o Vasco (2-0), arrancar de um jornalista europeu que assistiu ao
jogo a declaração de que a atuação do Flamengo foi “a mais perfeita em termos
técnicos e táticos que vi uma equipe de futebol desenvolver em toda essa
temporada”.
Um dos “piores times da história
do Flamengo” conquistará o Estadual de forma inapelável, irretorquível, com
direito a goleada na Final. E, mesmo sem ainda saber, estará pronto para voos
maiores.
Como sempre foi inerente à
essência flamenga.
À nossa natureza.