Ando querendo voltar a me divertir com futebol.
Donde, sempre que posso, agora me vejo dedilhando os canais da tevê em busca daquele joguinho despretensioso, que somente me irá arrancar risadas e entretenimento puro. Nada de envolvimento.
Assim, na última quarta-feira, vi-me com os olhos pousados diante do empolgante confronto entre o Bahia, time aqui da terra, e o simpático Luverdense, força emergente lá do interior do Mato Grosso.
Cervejinha, pão, algum queijo e vamos encarar a pelada, pois.
Começa a peleja. O Bahia sai com a bola, que é esticada pro lateral, que aciona um atacante pela esquerda. Ele passa por um contrário e cruza rasteiro. O atacante chega atrasado e a bola sai.
Quarenta segundos e o time da casa já criou uma chance clara de gol.
É o estalo.
Remeto-me de imediato às tardes ensolaradas de domingo, em que, ainda garoto, era levado pelo meu pai à Fonte Nova para ver futebol ao vivo, de carne e osso. Flamengo no rádio e o Baêa no estádio. O dendê, o suor, o mijo, a cerveja, a fumaça do churrasquinho. O negão vendendo caipirinha no tambor. O cara da pipoca apostando o placar do jogo. A gorda baiana vendendo seus acarajés de cara suspeita. Os fogos, o coro de “Bora Baêêêa”, as palmas compassadas ditando o ritmo do time. O empurra-empurra da saída.
(Aos navegantes desavisados: eu não ia ao estádio torcer para qualquer equipe. Ia pelo espetáculo. Aliás, os dias que o Baêa perdia eram até mais divertidos, pois se encenava uma espécie de “netvasco” ao vivo e eu tinha que controlar o riso. Isto posto, volto ao texto).
Entre um gole e outro, sinto-me como se estivesse num jogo dos anos 80, 90. Toda aquela atmosfera se materializa límpida, pura, alva, pelas entranhas. É como se eu estivesse no meio da arquibancada, o jogo comendo ali na minha frente, eu de volta no tempo. Parece que tô vendo alguém berrar "Bora Minha Porra" do meu lado.
Não, não é o álcool, comecei agora, nem venha.
Enquanto isso, o Bahia segue atacando, um maluco bate uma falta rasteira, o goleiro se estica todo e manda a córner. Daqui a pouco alguém cruza, o atacante cabeceia pra fora, rente. O visitante não passa do meio-campo. Penso, não vão aguentar 15 minutos. O gol sai aos 13.
Não. Hoje não há mais a baiana, não tem mais o negão da caipirinha, não tem mais pipoqueiro, não mais empurrão, não tem nada disso. O futebol se profissionalizou, virou “bízines”, é tudo muito certinho, limpinho, educadinho. “Mudernizou-se”.
Mas uma coisa continua igualzinha.
Certinho como aconteceu naquele distante janeiro de 1980 (primeira vez que pisei num estádio) e continuaria vista nos janeiros e fevereiros e dezembros seguintes. A essência. O que faz um garoto tricolor baiano de 15 anos torcer pro time dele da mesma forma que seu pai, seu avô, fazia nas priscas eras.
A postura do time. A índole agressiva. A capacidade de enfrentar e atacar qualquer adversário que pise em seus domínios. Independente de ser inferior, é o sentido de buscar o confronto, a briga. Time ruim, modesto, mas “osádo”. Que não baixa a cabeça.
Ou seja, nesses primeiros 15 minutos eu me vi diante de Osni, Baiaco, Beijoca, Leo Oliveira, Bobô, essa turma. Por mais medíocre que seja a equipe atual deles (e é mesmo ruim de doer), a essência do clube se mantém. O acento. A identidade. O Bahia joga com a mesma postura de trinta anos atrás.
E aí chegamos ao ponto.
Há quanto tempo não vemos o Flamengo jogando exatamente como Flamengo? O que define a identidade do Flamengo como instituição, característica que necessariamente transborda para dentro das quatro linhas?
Uns dirão, o futebol bonito, de toques. Outros defenderão a índole aguerrida, com jogadores valentes. Outros mais, talvez, na minha opinião os que melhor se aproximam da interpretação correta aludirão que o verdadeiro Flamengo é aquele time que é capaz de estabelecer uma ligação com sua torcida, independente de seu perfil, da sua forma de jogo.
Quer algo menos Flamengo do que aquela coisa amorfa, apática, pegajosa, que se deixou envolver por 75 minutos em pleno Maracanã por um adversário inexpressivo, coalhado de jogadores decadentes?
Ou o time que perdeu o Estadual jogando um futebol blasé, apagado, preguiçoso, medroso, amplamente dominado por qualquer adversário que se dispusesse a atuar com um traço de disposição?
O Flamengo está se reinventando, está se reestruturando, está renascendo. Mas desse profundo processo de reconstrução precisa emergir uma instituição com caráter e personalidade definidos. Um clube capaz de perseguir o maior dos objetivos. Que caminhe, ande de braços dados com sua gente. Que faça o seu torcedor, espraiado de norte a sul, acordar pilhado, com aquele friozinho na barriga em dia de jogo, seja contra quem for. Que passe meses sem perder jogo no seu estádio, seja o Maracanã, seja a tal "Arena" que nunca sai. Que faça dos visitantes um inferno. Que se imponha, que expire na jugular do adversário, que impeça seu oponente de trocar três bolas certas, seja o Barcelona, seja o Borroló de Minas. Que transforme o goleiro adversário na melhor figura do jogo. Que faça sua Nação chegar ao Estádio com fome de predador e a certeza, “vamos amassar”. Que essa mesma multidão saia do campo saciada e de barriga cheia, farta de vitória. Eufórica. Correspondida.
Esta não é uma enésima loa de saudade do Zico. Futebol bonito a gente gosta muito, mas não é imprescindível para nos cativar. O que nos encanta é ATITUDE, DETERMINAÇÃO. A Tropa de Elite do Papai Joel jogava um jogo até limpinho, mas tecnicamente beirando o tosco. Correria, transpiração. Mas atraía, porque voava no pescoço, bola era prato de comida. E perseguia a vitória. Não precisa ir longe, o time do Elias, do Brocador. O time do saco de cimento. Por breves momentos, conseguiram estender a mão ao torcedor. Mostraram personalidade, mostraram que queriam GANHAR. E aí a gente foi junto.
Que não se cometa o erro de buscar aplicar no Flamengo fórmulas bem sucedidas em outros clubes. O que funciona num Cruzeiro, num Grêmio, num São Paulo necessariamente não irá se tornar panaceia dos males no Flamengo. Porque são clubes, instituições de caráter distinto. Valores diferentes, objetivos diversos.
Enfim, que os responsáveis pelo processo de ressurreição do Flamengo entendam, enxerguem e vislumbrem que, mais do que aplaudir o fantástico trabalho administrativo que vem sendo realizado, nós queremos mais. Queremos jogar junto, queremos rir nas vitórias, sofrer nas derrotas, queremos urrar, queremos aplaudir, vaiar, queremos deixar nossas vidas no estádio, no rádio, no telão ou na tevê. Queremos rezar durante os jogos, queremos ostentar nossos ídolos, queremos nos fardar do Manto até que ele esgarce desbotado.
Sim, queremos vitórias, queremos títulos, queremos glórias. Mas por isso até podemos esperar mais um pouco.
Entretanto, o que ansiamos ardentemente, o que clamamos, rogamos, suplicamos, para já, para agora, é a chance, a oportunidade de respirar, de cantar, de anunciar a alegria de ser rubro-negro.
O que nós queremos, senhores, é voltar a viver Flamengo.
Queremos acordar.
Boa semana a todos.