domingo, 8 de março de 2015

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos,

E se foi o moicano.

Mais um jogador termina seu ciclo no Flamengo, seguindo a inexorável e imutável lei que atinge a todos, rigorosamente todos, com seu veio implacável, mesmo que alguns a ela resistam tenazmente: ninguém é eterno no futebol.

Pois, finalizada a bonita festa que a Nação Flamenga proporcionou no Maracanã quarta-feira próxima passada, em que o rubro-negro derrotou um catadão do Nacional-URU (aliás, o adversário ideal para esse tipo de jogo: clube renomado que manda a campo uma equipe inofensiva. De qualquer forma, o Flamengo também encheu seu time de garotos), e tendo Leonardo Moura recebido sua homenagem e ingressado em definitivo na galeria de figuras históricas do rubro-negro, cumpre procurar esboçar uma análise, um debate, vislumbrado em perspectiva.

Por que Leonardo Moura foi uma figura tão controvertida?

Sim, pois, a despeito de sua figura normalmente sorridente, afável, pouco dado a declarações bombásticas, normalmente cioso de uma imagem construída visando a evitar atritos públicos, Leonardo Moura terá sido, sem a mais remota sombra de dúvida, o epicentro de algumas das mais acaloradas, renhidas e encarniçadas discussões acerca de seu papel, sua função, seu espaço dentro do Flamengo. Muitos o subestimavam, vociferando-o indigno de ostentar a faixa de capitão do Flamengo. Outros o elevavam ao patamar de um rasputin, uma eminência parda, um elemento amplamente influente junto a jogadores, treinadores, dirigentes e jornalistas, capaz de interferir decisivamente na rotina do clube, do conserto da piscina à contratação de reforços.

Niteroiense, foi revelado pelo Linhares-ES e apareceu em 1997 nas divisões de base do Botafogo


como um dos seus principais jogadores. No entanto, tão logo se profissionalizou começou um périplo por um punhado de equipes no Brasil e no Exterior. Rodou pelo futebol carioca (Botafogo, Vasco e Fluminense), paulista (Palmeiras e São Paulo), Bélgica, Holanda e Portugal, sempre com passagens curtas, raramente superiores a um ano. Nessa época, formou a imagem de um jogador habilidoso, muito veloz e técnico mas frio e pouco combativo, atributos que o iriam acompanhar pelo restante da carreira. Em seus encontros com o Flamengo, os momentos mais marcantes foram os Fla-Flus do Estadual de 2004, em que o vasto espaço deixado às suas costas ajudou a consagrar o lateral-esquerdo Roger Guerreiro, autor de um cacho de gols contra os tricolores ao longo da temporada.



Em 2005 chegou ao Flamengo em meio a um ano turbulento e difícil, em que a perspectiva de rebaixamento, mais do que real, parecia certa, líquida e consumada. Suas atuações e gols (notavelmente contra o próprio Botafogo) ajudaram o Flamengo a operar o milagre da salvação, e desde então Leonardo Moura se tornou titular e dono da lateral-direita, posição problemática desde a saída de Charles Guerreiro (para se ter uma ideia, apenas no PRIMEIRO SEMESTRE da temporada de 1995 foram tentados na função o próprio Charles, Fabinho, Henrique, Gustavo e o improvisado Marcos Adriano, nenhum com êxito).

Se ele deu certo, então por que tamanha celeuma em torno de seu nome?

Alega-se que o Leonardo Moura de 2015 não é sequer sombra do lateral lépido que nadou de braçada no Flamengo e no próprio futebol brasileiro entre 2006 e meados de 2009, chegando a ser convocado à Seleção em 2008. É um argumento verdadeiro, até porque, salvo alguns bons (ou ótimos) momentos em 2010 e 2013, o moicano efetivamente experimentou sensível queda de rendimento desde o hexa. No entanto, quando se constata que o frangueiro Rogério Ceni, titular do São Paulo desde o final dos anos 1990, vive engolindo penosas com uma frequência cada vez mais intensa e segue como ídolo intocável no Morumbi, e os próprios casos de Fábio Luciano e Ronaldo Angelim, cujas últimas atuações pelo Flamengo beiraram o constrangedor em alguns casos mas seguiram respeitados, a questão da queda de futebol perde um pouco a força na tentativa de explicar, por si só, a rejeição ao ex-capitão flamengo.

Outros, ainda se atendo apenas aos gramados, invocam que Leonardo Moura sempre abriu verdadeiras crateras, avenidas, pelo seu setor, tornando-se um ponto nevrálgico da equipe e comprometendo seu sistema defensivo. Pode ser, e é, mas é necessário colocar em perspectiva que uma das marcas do Flamengo é dispor de laterais ofensivos e voltados para o gol, mesmo que isso custe a necessidade de aperfeiçoar um sistema de cobertura mais sofisticado. Os mais antigos se recordarão que o Flamengo da Era Zico sofria inúmeros gols com bolas lançadas às costas de Leandro e, principalmente, Júnior. Os mais novos se lembrarão de Leonardo, Athirson, Juan, entre outros laterais que marcaram época na história recente do Flamengo. Todos ofensivos e maus marcadores. Então, a questão da “Avenida Léo Moura” não soa capaz de se sustentar como pilar das queixas.

(A essa altura, creio ser desnecessário pontuar que não se trata aqui de comparar jogadores, mas contextos...)

Há também a questão da frieza em campo, da alegada falta de brio, o encolhimento em “jogos grandes”, coisas do tipo. No entanto, jogadores como Bebeto, Sávio e Romário guardavam algo dessas características, o que não os impediu de serem idolatrados pela torcida flamenga.

Saindo das quatro linhas, há as suspeitas, por muita gente levantadas, de que o capitão operaria como uma espécie de “informante” (o famigerado X-9), abastecendo jornalistas e mesmo torcedores organizados com informações de bastidores do elenco. Mesmo que se confirme esse tipo de rumor, não seria algo inédito. Outros jogadores conviveram com suspeitas semelhantes, como Tita, Rogério Lourenço, Gilmar Rinaldi, e todos esses tiveram suas saídas lamentadas (salvo Tita, cuja relação com o Flamengo realmente se desgastara demais). Ademais, o futebol não é propriamente um convescote de vestais. 

Então, por que a estridência? Torno à questão original: por que o nome de Leonardo Moura suscita tanto amor e ódio?

Ousarei tentar responder. Para mim, tudo passa pelo simbolismo. Leonardo Moura é um símbolo.

O moicano é o último remanescente de um Flamengo que se reergueu parcialmente após o período em que sofreu o mais brutal processo de apequenamento de sua história (2002-2005). Um Flamengo que, após quatro anos da mais absoluta penúria, conseguiu se tornar respeitado mas, por apressar etapas e buscar recuperar seu protagonismo através de atalhos suspeitos, carreou frustração e o consequente escárnio. Um Flamengo improvisado, bipolar, capaz de remeter seu torcedor às mais extremadas sensações em questão de dias. Um Flamengo vencedor. Perdedor. Instável.

Léo Moura é o Flamengo duas vezes campeão da Copa do Brasil, mas é o Flamengo que cai goleado em Minas pelo Atlético. É o Flamengo hexacampeão brasileiro, mas é o Flamengo que flerta com o rebaixamento cinco vezes. É o Flamengo que arranca pra Libertadores, mas é o Flamengo que cai duas vezes na Primeira Fase. É o tri estadual, mas é o time que leva de três do Resende.

O Moicano é o Flamengo dos 5-4 no Santos, mas é o Flamengo que leva de cinco do Coritiba pra derrubar o Cuca. É o Flamengo de Angelim, de Pet, do Imperador, mas é o Flamengo da Chatuba, da Eliza Samudio. É o Flamengo "Rei do Rio" que brutaliza os rivais, mas é o Flamengo do Cabañas, da “Festa do Hexa preparada”, da La U, da dancinha em jogo decisivo da Libertadores em Assunção. É o Flamengo que brilha e agoniza, é o Flamengo que dá e tira, é o Flamengo que orgulha e envergonha. É o Flamengo que grita “Nunca caí”, como se isso altaneiro fosse.

Um Flamengo suscetível, capaz de carbonizar treinadores (ou mesmo jogadores) ao sabor dos humores de seus ventos, um Flamengo que transpira sangue desde que isso lhe interesse, um Flamengo que elege quais desafios enfrentar. Um Flamengo impulsivo, reativo. Caótico. Um Flamengo, a despeito de sua grandeza, parado no tempo.

Pode parecer injusto, talvez até seja, até porque o moicano não foi o responsável direto por todas essas glórias e dissabores (em alguns desses momentos, nem em campo estava). Mas a relação de simbolismo prescinde desse tipo de detalhe. Por melhor que tenha atuado, por mais futebol que, em vários momentos, tenha mostrado, Leonardo Moura é a imagem viva e arquetípica de um Flamengo que, ao se mostrar derramado, exposto, arreganhado diante de nossos olhos, suscita-nos esgares e uivos esganiçados, exclamantes e inflamados. O Flamengo de Leonardo Moura reflete-se disforme, berrante, contrastante, inquietante. Mas nunca agradável. Donde, a cada pecha de “velho”, “morto”, “X-9”, a rigor, a estrito rigor, ataca-se na verdade a imagem de um Flamengo que, a cada dia, se anseia em ver fazer parte dos livros de história e dar lugar a uma instituição compatível com sua colossal e inalcançável grandeza. Léo Moura é o símbolo maior de um Flamengo que se quer ver extinto.

Sucesso, Leonardo. Você, mais do que uma figura histórica, simbolizou uma Era. Boa, ruim, mas, sem sombra de dúvidas, uma Era.

Vai na paz.